Encerra-se a cobertura deste MOTELX com um grupo de filmes de qualidade mais baixa face à primeira colheita. Ainda assim, destaca-se uma excêntrica animação japonesa feita em cartão e um found footage sul-coreano que conseguiu enregelar toda uma plateia na sessão dupla da meia-noite.

Na apresentação do filme, o realizador Leigh Whannell, conhecido argumentista, actor e amigo de James Wan, disse que a proposta que fez à produtora Blumhouse foi simples: fazer um filme de baixo orçamento que tivesse o aspecto de uma grande produção à antiga; e que almejasse fazer um update de clássicos modernos como The Terminator (O Exterminador Implacável, 1984) ou RoboCop (Robocop – O polícia do futuro, 1987). O resultado concorre minimamente para isso, na medida em que este filme sobre o (des)controlo do homem pela tecnologia – um Frankenstein dos nossos dias – tem um certo sabor aos filmes de James Cameron ou Paul Verhoeven. Contudo, este é mais assumidamente um filme de acção e comédia, sendo do ponto de vista da reflexão política e metafísica sobre o lugar da tecnologia na sociedade uma tímida actualização dessas obras. Upgrade (2018) revela aspectos que são visíveis na obra de Wan, com ou sem Whannell, desde logo, os sticky shots – steadicams que seguem o movimento dos corpos dos actores – que o tailandês aprimora em Furious Seven (Velocidade Furiosa 7, 2015) ou, no argumento, o gosto por uma rede algo intrincada de twists e contra-twists. Ainda assim, nem as sequências de acção chegam perto das suas referências como o efeito surpresa do argumento é perto de pífio. Ao mesmo tempo, há o problema de as personagens estarem reduzidas à sua função thrillesca, ao que acresce a tal câmara pouco inspirada e um mundo distópico apressadamente desenhado, falho em imaginação. Sobra pouco para lá do entretenimento ameno.

Às vezes faço isto: face ao programa que (auto-)prescrevi, provoco um ou outro desvio. Não seria a primeira vez que um “tiro no escuro” se revelava certeiro. Mas The Ranger (2018) acabou por ser um tiro no pé. O terror vive do efeito, sendo este um caso em que o horror está naquilo que é e não naquilo que o filme provoca. Este espécie de slasher in the woods com apetite para a comédia grotesca é uma nulidade fílmica, tendo coberto a sala de um silêncio confrangedor, como um manto de indiferença. Esta obra procura ir beber a uma moda, já algo caduca, de revisitar o cinema de género operando sobre ele uma espécie de comédia fina, no limiar da sátira. Falo de filmes como The Cabin in the Woods (A Casa na Floresta, 2012) ou Hatchet (Hatchet – Pesadêlo no Pântano, 2006). O problema aqui é que não há propriamente um drama que se possa levar a sério, isto pese embora a tentativa frouxa de se contar uma história de trauma vivenciada em família, nem tão-pouco o festival de gore é imaginativo o suficiente para nos provocar a tão desejada gargalhada. Os adolescentes punks vão caindo, um a um, numa montanha vigiada de perto pelo mais zeloso dos guardas florestais. Nós assistimos com indiferença ao seu destino. Ansiamos pelo fim desta aposta rotundamente falhada.

Na minha antevisão, perspectivava Gon-ji-am (Gonjiam: Haunted Asylum, 2018) como o filme capaz de gerar mais arrepios na espinha à plateia. Agora que já vi o filme posso dizer que não estive longe da verdade. Este ruidoso e tecnologicamente aparatoso found footage vindo da Coreia do Sul culmina nalgumas das sequências mais arrepiantes que tenho visto neste campo específico do pseudocumentário de horror. Qual Grave Encounters (2011) asiático, Gon-ji-am é um showcase de tecnologias de captação e transmissão de imagem e som, fazendo uso de todo o tipo de minúsculas GoPros, um drone e câmaras ao ombro de última geração, que ensaiam no domínio do cinema a possibilidade do mais perfeito “directo paratelevisivo”. Esta ideia de directo – que privilegia, de modo particularmente interessante, a figura do grande plano, sendo uma espécie de The Blair Witch Project (O Projecto Blair Witch, 1999) 2.0 – é levada até às últimas consequências. O filme procura simular uma certa linguagem televisiva esteticamente pobre, “ruidosa”, dramaticamente empolada, para acabar tomado pelo tenebroso silêncio da mais arrepiante escuridão. E houve um momento em que a sala gelou: a aparição do demónio no rosto de uma das “repórteres”, produzindo nele uma desfiguração que lembra os quadros “Big Eyes” de Margaret Keane e gerando nas palavras uma aceleração convulsa, aguda e sibilina. Os minutos finais são assim recompensadores para quem gosta de apanhar um belo susto de quando em vez. Terror perfeitamente funcional.

Será a excentricidade maior deste MOTELX. Um filme fantástico de terror vertido em figuras – e paisagens – feitas em cartão. Um jogo de formas orgulhosamente infantil, deliciosamente perverso a partir de certo ponto, que congela no nosso rosto um sorriso idiota de fascinação e estranheza. Esta primeira longa-metragem do artista nipónico de animação Ujicha conta-nos a história de Bobby, um rapaz americano a viver no Japão profundo, que na companhia do seu melhor amigo, Akkun, vai viver a aventura da sua vida num suposto parque de diversões situado na floresta. A descida aos infernos que se segue mistura body horror com o mais louco, e hilariante, filme de acção, a ponto de Bobby acabar vítima de uma experiência à la Dr. Moreau que o desfigurará para sempre. Mas nada está perdido enquanto houver vontade de viver, vontade de aventura. E Bobby não se deixará demover pelas transformações macabras do seu corpo. Ele ajustará contas na companhia de improváveis amigos, destacando-se um morcego que gosta de lamber todos os líquidos viscosos decorrentes da matança. Sobre o cartão duro colorido Ujicha “pinta” com água, sangue falso e outras viscosidades um autêntico gore fest da – mas não “para a” – criançada. Como uns desenhos animados do Canal Panda tragicamente manufacturados pela mente mais perversa. Deliciosa diabrura em papel.

A vitalidade do cinema brasileiro, se calhar destoando com a situação social e política vivida no país, tem sido notada, e apreciada, por este crítico. Foi na qualidade de jurado que no passado Festin tive o prazer de participar na premiação de um filme que caberia numa selecção do MOTELX: Açucar (2017), obra que transformava a história secular de exploração desumanizante dos negros num monster movie digno de um filme de M. Night Shyamalan. Por outro lado, nomes como Kléber Mendonça Filho, Marco Dutra e Juliana Rojas – autores que lamentavelmente têm ficado de fora do radar do MOTELX – são já certezas no campo do melhor cinema de terror. Um cinema de terror que nasce das contradições e dos demónios que assombram a sociedade brasileira. Trata-se, portanto, de um horror embrenhado no tecido humano de uma sociedade à beira da implosão. Ora, Morto Não Fala tem todos os bons condimentos deste cinema de terror perfeitamente “engajado”. Em certa medida, é como um The Autopsy of Jane Doe (A Autópsia de Jane Doe, 2016) levado mais longe, na medida em que aqui os mortos falam e não cessam de reivindicar a sua presença no mundo dos vivos. O filme de Dennison Ramalho tira bom partido da sua história, baseada num romance de Marco de Castro, mesmo que me pareça que o filme não saiba habitar o lugar mais silencioso do medo, deixando-se consumir, apressadamente, pelos vários episódios da narrativa. Um melhor filme de terror carecia de outra respiração.

Adaptado de um conto de J. G. Ballard, este filme de Solveig Nordlund tem motivado um certo culto pelos cinéfilos apreciadores do fantástico e do terror. Ao contrário do que se passou com A Filha (2003), obra projectada anteriormente no festival, sinto que a eventual reavaliação não será totalmente feliz aqui. Aparelho Voador a Baixa Altitude (2002) é uma distopia situada na estranha paisagem de Tróia sobre uma espécie humana que já aceitou, resignada, o fim da sua existência na Terra. Perante a ameaça da anunciada extinção, um casal alimenta expectativas em torno da criança que ela (interpretação intensa de Margarida Marinho) traz no ventre. O filme caminha para um clímax que não chegará – a opção é de não filmar o parto, de não dar sequência a histórias sugeridas inicialmente, como a que envolve as estranhas criaturas que vivem na praia, os “beachniks”… A ausência de clímax é o principal problema deste filme de Nordlund: o facto de ter uma exposição longa, mas não ter uma culminação forte das suas premissas dramáticas transforma este título numa obra manca. A personagem de Miguel Guilherme fica reduzida a um papel passivo, e desenxabido, de observador perdido no drama, ao passo que o filme vai sendo tomado por um registo cómico muito pálido que mata por completo a atmosfera de suposta tensão e medo. De resto, sublinho que ao contrário do surpreendente A Filha (que tem em Nuno Melo e Joana Bárcia duas presenças cheias de força, corpos que se digladiam até à loucura), Nordlund filma sem nervo a interacção do casal, não conseguindo fazer desta o núcleo de um drama inquietante algures entre Der Stand der Dinge (O Estado das Coisas, 1982) e Children of Men (Os Filhos do Homem, 2006). Assim, Nordlund deixa fugir a possibilidade de assinar um verdadeiro clássico do body horror falado na língua de Camões.