As razões para sorrir não são assim tantas. Afinal, do MOTELX queremos mais “ranger de dentes”, “pupilas dilatadas” ou “pêlos eriçados”. Mas a verdade é que o bom terror que aqui trazemos distingue-se pela inteligência e mordacidade mais lúdica. Um filme em particular, vindo do Japão, veio apresentar à plateia de aficionados do MOTELX uma nova palavra: “alegria”. É sorrir ou morrer. Mas vamos por partes.
Alguém me perguntava antes da sessão: mas de onde vem esta freira mesmo? De facto, a equação começa a ganhar níveis de complexidade assinaláveis. The Nun (The Nun – A Freira Maldita, 2018) é o spin-off da brilhante sequela de The Conjuring (The Conjuring – A Evocação, 2013). O “spin-off de uma sequela” – eis mais um fruto colhido dessa frondosa árvore que é o bestiário de James Wan. Se a Universal e a Hammer nos deram bestas variadas, não existem muitos casos como este na história do cinema: da cabeça de um só realizador proveio uma multitude de monstros. Chacun son cinéma. Todavia, e ao contrário dos dois filmes dedicados à boneca Annabelle, esta The Nun entra com o pé esquerdo no nosso imaginário. É verdade que há sequências de terror engenhosas, devedoras de Wan, mas o filme é pouco arriscado, seguindo à risca uma receita preguiçosa que mistura aventura, romance (surpreendentemente ou não, gótico) e uma intrincada – cansativa de seguir – narrativa de possessões e de “ressurreições” não suficientemente profanas para nos excitar. Apesar do trabalho de câmara interessante aqui e ali – o permanente jogo de hide and seek com a figura da tenebrosa freira resulta até certo ponto… – e de uma actriz deliciosa (a irmã mais nova da protagonista do original Vera, Taissa Farmiga), fica na retina o pouco esclarecimento narrativo e os caminhos fáceis, como a tal tendência para o filme de aventuras fantástico com apontamentos humorísticos e amorosos bastante irritantes – numa palavra, uma personagem para esquecer chamada “Frenchie”.
Foi especial – a mais gratificante no MOTELX até ver – a experiência de ver este filme no grande ecrã da sala Manoel de Oliveira. Costumo brincar entre amigos e dizer que nos lugares mais altos da Manoel de Oliveira parece que vemos os filmes num ecrã de telemóvel. Para Unsane (Distúrbio, 2018) fiz questão de me sentar num desses lugares. Queria encolher o ecrã até que este ganhasse aproximadamente a dimensão do Iphone que Soderbergh usou para filmar este thriller sobre paranóia sexual que tem o extra de desencobrir a máfia dos seguros de saúde nos Estados Unidos. Em certo sentido, Soderbergh continua outro dos seus bons filmes, Side Effects (Efeitos Secundários, 2013), na medida em que, num filme falsamente ligeiro, assaz venenoso, acompanhamos a odisseia de uma mulher (papelaço de Claire Foy) presa numa teia burocrática e por uma doença mental induzida ou exponenciada por fármacos. Essa desorientação aprisiona a mulher num “corredor do choque”. Para somar ao desespero, as pessoas à sua volta vão ganhando o rosto do homem que a persegue obsessivamente há anos. Soderbergh filma com requinte fazendo uso de uma câmara banal, transformando a “estética Iphone” numa espécie de pele formal/narrativa, que cobre com uma luminosidade clínica, e algumas texturas interessantes, este thriller de pendor político-sociológico que traz água no bico: será que esta mulher tem todos os parafusos? Será que ela é vítima do mundo ou é ela que o assedia com a sua loucura auto-prescrita?
Confesso: Xavier Gens é um realizador que não me aquece ou arrefece A fria pele do seu cinema não me toca. Mas também tenho de confidenciar que não lhe reconhecia ainda esta capacidade para ser chato, chato, chato. Que filme molengão, desinspirado, “plástico”. Criaturas marinhas (pejorativamente apelidadas de “sapos”) atacam noite sim, noite não, o farol onde vivem dois homens na companhia de uma dessas criaturas, uma empregada doméstica/escrava sexual alienígena, mas devidamente amestrada. Cold Skin (2017) relata esta história darwinista de sobrevivência, que mastiga como se fosse borracha uma guerra disputada entre espécies. O filme não tem sabor, não tem um pingo de tensão e, pior que isso, é de um confrangedor vazio de ideias cinematográficas – parece um The Shape of Water (A Forma da Água, 2017) dos pobres. Gens veio a Portugal, na companhia do amigo Pascal Laugier – falo dele abaixo -, para falar sobre cinema extremo francês, mas trouxe um exemplar de cinema despersonalizado e chocho. Tinha sido melhor revisitar – e reavaliar, quem sabe – a sua alegoria sobre a Frente Nacional, Frontière(s) [Fronteira(s), 2007].
Oh, como este filme vai ser amado. Oh, como este filme vai ser odiado. Mandy (2018), do italo-canadiano Panos Cosmatos, é o último grito numa tendência do cinema de autor contemporâneo que gosta de flirtar com os anos 1980, que tem apetite pelo horror camp e gosta de envolver tudo num desavergonhado maneirismo áudio/visual. Bem, não vou mais longe: Nicolas Winding Refn parece ter passado por aqui para dar a sua bênção. Ele é o líder da “seita”, mas também aqui descobrimos a inclinação “ultra-onírica” de um certo cinema de autor francês que aparece representada neste MOTELX na figura de Yann Gonzalez – falo dela na minha antevisão ao festival aqui. O que temos aqui? Muita coisa. Demasiada coisa? Arrisco dizer que sim. Ele é cores intensas, ele é intriga de vingança reduzida ao osso mas com muito gore e algum body horror, ele é um actor carismático com tendência para o histrionismo, tentando (sem sucesso) uma composição emudecida (pobre Nicolas Cage, que continua refém da sua própria caricatura…), ele é música monotónica carregada de sintetizadores (siderante o trabalho do falecido Jóhann Jóhannsson), ele é a atmosfera pós-lynchiana cheia de fumos intoxicantes, ele é muitas acid trips da mente… Fora a fumarada chic-exuberante, este é um banalíssimo revenge flick, sem nada para contar, sem ser uma poderosamente sedutora – pelo menos no início… – narrativa de imagens e sons. Ainda assim, acabará por cansar um filme que aposta sempre tanto e tão alto, cena a cena, plano a plano. O excesso pelo excesso dá nisso. Nesse sentido, sim: entre amar ou odiar, prefiro dizer que seduz inicialmente, mas acaba por enjoar vai a coisa ainda a meio.
Até ver foi o filme mais festivaleiro deste MOTELX. As sonoras salvas de palmas finais vindas da plateia não mentem. A satisfação e – não temos de ter medo da palavra – a alegria era grande na sala, quase contagiante: acabáramos de assistir a um filme cujo principal tema fora o prazer de fazer cinema. Eis uma ode à aventura por trás de um filme, por trás de cada acto de cinema, em particular o de terror. Kamera o tomeru na! (One Cut of the Dead, 2017), vagamente reminiscente de Jigoku de naze warui (Why Don’t You Play in Hell?, 2013) de Sion Sono, é um metafilme totalmente despojado de qualquer pretensiosismo. Contudo, a ambição do japonês Shin’ichirô Ueda, nesta que é a sua primeira longa-metragem, não é pouca: fazer um filme de cerca de uma hora e meia sobre um plano. Um plano-sequência, mostrado na íntegra no início, que dura uma trintena de minutos. O conteúdo é um found-footage-zombie-gone-wrong, obra repleta de buracos, hesitações, trapalhices – um Peter Jackson de totós! No início, julgamos que é só isso: uma proeza técnica pobremente executada – não propriamente inédita se recordarmos, por exemplo, o “mui sério”, todo enfiadinho num plano, La casa muda (2010). Depois, passamos a revisitar os bastidores desse plano-sequência, para descobrirmos que por trás do terror está a mais escancarada comédia zombie, saborosos nacos de boa disposição capazes de rivalizar na intensidade do (sor)riso com um Shaun of the Dead (Zombies Party – Uma Noite… de Morte, 2004) ou, outro “filme festivaleiro do MOTELX”, um Død snø 2 (Dead Snow 2, 2014). A mensagem é simples, mas bonita. Ela está contida na solução que o grupo arranja para substituir uma grua irremediavelmente danificada: uma pirâmide humana composta pelos elementos que integram esta “família do cinema” devotada ao mais autêntico “amor à arte”.
Não vou dourar a pílula: Solveig Nordlund não é das cineastas que mais me entusiasmam. Contudo, a recepção fria a A Filha (2003), no já longínquo ano de 2003, parece-me ter sido manifestamente injusta. O filme é uma história sobre obsessão edipiana sobriamente realizada – mérito aqui também para a direcção de fotografia do “lendário” Acácio de Almeida. O filme tem um Portugal muito particular como pano de fundo: um país que acabara de ser tomado de assalto pela moda da trash TV pós-Big Brother. O lixo catódico abanava consciências nos primeiros anos do novo milénio, arrastando para a lama os bons costumes e a boa moral. Todo este studium pode aparentemente datar A Filha, mas é verdade que também vem acentuar a dimensão documental deste filme; a sua tentativa de envolver uma história inquietante de “corpos substitutos” e pulsões incestuosas com um olhar implacável sobre o zeitgeist. Por outro lado, Nuno Melo está au point, demonstrando que sabia domar a sua irresistível tentação para o overacting. O resultado é, de facto, surpreendente, sobretudo para quem, talvez precipitadamente, não tenha os dotes de Nordlund para a realização em grande conta. É aqui que entra o papel de um festival como o MOTELX: não só este é um espaço para descobertas – recordo os filmes alegóricos de Noémia Delgado que descobrimos há dois anos – como reúne as condições ideais para notáveis reabilitações autorais – António Macedo terá sido o cineasta malquisto que mais ganhou com a existência deste festival, mas agora talvez devamos acrescentar o nome de Nordlund. Pelo menos o seu A Filha merece uma segunda oportunidade.
Quanto a mim, Pascal Laugier é um dos mais estimáveis cineastas do chamado cinema extremo francês, um cinema que baralhou os nossos neurônios durante a primeira década do século XXI. O seu Martyrs (Mártires, 2008) continua a ser hoje, para mim, o mais desconfortável tratado sobre a dor e o êxtase (Bataille…) no campo do cinema de horror. O sucesso deste filme levou Laugier até outras paragens. The Tall Man (The Tall Man – O Homem das Sombras, 2012) é uma produção americana/canadiana, cuja acção é empurrada pela mesma força que já antes conduzira Laugier espantosamente na direcção do imprevisto. Mas este Ghostland (Ghostland – A Casa do Terror, 2018) coloca tudo isto no patamar da mais pura “tese fílmica”. No caso, uma “tese metafílmica” que faz a obra desdobrar-se (quase) até ao infinito, como se esta fosse muito literalmente uma obra aberta, em permanente auto-revisão, procurando confundir na sua própria pele os limites – que aqui também são geográficos – entre realidade, fantasia e trauma. É engenhoso, cativante q.b. nos seus primeiros minutos – tudo acontece a uma velocidade estranha (uma velocidade muito à la Laugier) e, com muita razão, desconfiamos. Depois, o filme atira-nos para um abismo, e depois vem outro, e mais outro… E, de tanto se desdobrar, o universo do filme termina encolhido, com a dimensão da narrativa sem jeito que a sua fórmula complexa tanto procurou inchar. No fim, Ghostland acaba derrotado pelo seu próprio “excesso de inteligência”.