A primeira travessia aérea do Atlântico Sul, realizada em 1922 por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, foi um dos maiores acontecimentos da vida pública portuguesa na década de 1920. No ambiente de euforia nacional que se viveu então, a travessia aérea foi vista como uma atualização da viagem de Pedro Álvares Cabral, não faltando por isso na fuselagem do moderno hidroavião a mesma Cruz de Cristo que adornava as velas dos navios de 1500. As peripécias da viagem aérea deixaram Lisboa inteira suspensa das notícias atualizadas hora a hora pelos painéis informativos e pelos altifalantes instalados nas redações dos principais jornais.
Apesar do enorme impacto social deste acontecimento – as manifestações de regozijo pela chegada dos aviadores ao Rio de Janeiro, bem como o seu regresso a Lisboa, levaram milhares de portugueses e brasileiros a sair às ruas – sobreviveram poucas imagens dessas manifestações e menos ainda da travessia propriamente dita. As mais conhecidas são as da partida de Lisboa e da chegada ao Brasil, assim como o regresso a Portugal dos dois aviadores, e encontram-se na atualidade Gago Coutinho e Sacadura Cabral – Os Heróis da Paz (1922) de Albert Durot e na amálgama de imagens de autor anónimo Gago Coutinho e Sacadura Cabral (1922). Muitas destas imagens seriam reaproveitados por dois filmes de compilação (A Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul, realizado em 1940 por Raul Faria da Fonseca e Fernando Fragoso; e Cruzeiro do Sul, realizado por Fernando Lopes em 1966), e seriam reproduzidas vezes sem conta em programas de televisão.
Gago Coutinho e Sacadura Cabral – Os Herois da Paz (1922) de Albert Durot
O filme de Albert Durot, experimentado operador de imagem francês radicado em Portugal, contém imagens da partida dos dois aviadores da Doca do Bom Sucesso, base da Aviação Marítima Portuguesa nos anos 1920, assim como a célebre cena de Gago Coutinho e Sacadura estudando a rota da travessia, citada frequentemente na imprensa da época para demonstrar o carácter científico da viagem. Na memória recente de todos estava então a travessia aérea do Atlântico Norte feita pelo americano Read, que se “limitou” a seguir à vista uma linha de cruzadores colocada entre o ponto de partida e a chegada. O célebre sextante de Gago Coutinho permitia determinar a rota em pleno voo, mesmo quando não fosse possível avistar o horizonte. Foi este instrumento, bem como as sofisticadas técnicas de cálculo utilizadas, que permitiu aos aviadores encontrar qualquer ponto em alto mar e saber sempre a sua posição exata – nomeadamente, na longa e difícil etapa entre Cabo Verde e os Penedos de S. Pedro e S. Paulo. Encontrar aqueles pequenos escolhos em pleno mar foi a prova definitiva da fiabilidade do método de navegação aérea introduzido por Gago Coutinho.
Gago Coutinho e Sacadura Cabral – Os Herois da Paz (1922) de Albert Durot
Não é um caso em que seja preciso ver para crer, mas a verdade é que este marco da história da aviação ganha um significado maior quando vemos esses famosos e exíguos Penedos no filme O Raid Aéreo Lisboa-Rio de Janeiro pelos Heroicos Aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral (1922) de Henrique Alegria. É também este filme que finalmente nos mostra as únicas imagens das etapas intermédias da travessia e as únicas imagens (fixas ou em movimento) do (segundo) hidroavião em pleno voo no Atlântico Sul. Depois da perda do primeiro hidroavião junto aos Penedos, gerou-se um consenso de opinião pública que levou o Governo de então a comprar e enviar aos aviadores um segundo hidroavião para a conclusão da travessia (seria preciso ainda um terceiro, dado que o segundo se perdeu poucos dias depois de registadas as imagens que aqui veremos). O segundo Fairey foi enviado num paquete de passageiros brasileiro, o Bagé. Aproveitando a inesperada oportunidade, seguiram também a bordo vários jornalistas, o fotógrafo Arnaldo Garcez e uma equipa da Invicta Film, constituída pelo realizador Henrique Alegria e pelo operador de imagem Artur Costa de Macedo. Henrique Alegria não era propriamente um realizador, cargo ocupado pelo francês George Pallu, mas sim o diretor artístico daquela produtora (isto é, o responsável pelas relações com os “artistas”, termo então usado para designar os atores). Embora produzido pela Invicta Film, Henrique Alegria via o filme como um projeto pessoal, o que originou mais tarde um amargo contencioso a propósito da autoria e das receitas geradas pelo Raid… (e que não foram poucas). Prova do seu empenho pessoal no filme é a manifesta satisfação com que o vemos em vários planos, cumprimentando os protagonistas da travessia, plenamente consciente de que aquelas imagens lhe conquistariam um lugar na história.
O Raid Aéreo Lisboa-Rio de Janeiro pelos Heroicos Aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral (1922) de Henrique Alegria
Tendo chegado aos nossos dias sem intertítulos, o restauro do filme da Invicta foi precedido de uma investigação em imagens e documentos de época. Perdida a possibilidade de reconstituir o texto dos intertítulos originais, considerou-se desejável identificar o maior número possível de personalidades, locais e situações constantes do filme e construir a partir daí novos intertítulos (mesmo que meramente descritivos). Desde logo, foi importante a consulta das imagens do fotógrafo Garcez, que seguira e bordo do Bagé e que vemos em pleno trabalho em vários planos do filme. Muitas dessas fotografias podem consultar-se no arquivo fotográfico do jornal O Século, bem como nos arquivos fotográficos do Museu de Marinha e do Museu do Ar. Estas imagens, publicadas em revistas de época e devidamente legendadas, revelaram-se fundamentais para a identificação das imagens do Raid… e também para a confirmação da montagem do filme. As lacunas da investigação iconográfica foram complementadas com a leitura de duas compilações com as minuciosas reportagens de Norberto Lopes e Tomás Ribeiro Colaço, dois dos jornalistas que seguiram a bordo do Bagé. Exemplo dessa minúcia é o facto de ter origem neles, entre muitas outras, a informação sobre a “belíssima rapariga brasileira” que seguia a bordo do Bagé e que também impressionou Artur Costa de Macedo.
A correspondência da Invicta Film diz-nos que, tal como chegou até aos nossos dias, o Raid… está incompleto. Faltam-lhe vários planos da chegada ao Rio de Janeiro, de que apenas subsistem alguns fragmentos, não necessariamente pertencentes à montagem definitiva, mas que ainda assim foram incluídos no final deste restauro dada a sua relevância documental. Existiu ainda um segundo filme, estreado com o mesmo título mas com a indicação “segunda série”, dedicado exclusivamente ao programa social dos dois aviadores no Brasil. No seu conjunto, o Raid… tinha uma metragem bastante extensa tanto para os padrões do género (documentário/atualidade) como da época, mas não deixou por isso de registar um sucesso muito razoável em todo o país. A prová-lo, a sua exibição em várias cidades e, em Lisboa, tal como no Porto, a sua estreia simultânea em três salas.
Continuando onde o filme da Invicta termina, Visita ao Porto dos Heroicos Aviadores Almirante Gago Coutinho e Comandante Sacadura Cabral (1922), de Angel Beauvalet, é um dos vários filmes que registam os eventos sociais organizados em honra de Gago Coutinho e Sacadura Cabral depois do seu regresso a Portugal. Mostra-se ali um cortejo em honra dos aviadores na Rua Sá da Bandeira e uma visita à Quinta de Crestuma, propriedade de Ângelo Moraes, familiar do conhecido fotógrafo Cunha Moraes. O filme tem ainda a particularidade de ter sido assinado por um amador, Angel Beauvalet, que também era representante em Portugal de uma marca de “hidro-deslizadores”. A associação de Gago Coutinho àquela marca torna este filme um dos mais antigos exemplos da “publicidade feita por celebridades”. Na Quinta de Crestuma pode ver-se ainda, tomando parte na deliciosa sequência dos abraços que é um verdadeiro gag cómico, o distinto floricultor e fotógrafo portuense Aurélio da Paz dos Reis, mais conhecido por ter sido um dos primeiros realizadores de cinema portugueses.
Visita ao Porto dos Heroicos Aviadores Almirante Gago Coutinho e Comandante Sacadura Cabral (1922) de Angel Beauvalet
Todas as imagens: col. da Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema