No número dedicado a Howard Hawks pelos Cahiers du Cinéma, Jean-André Fieschi descreve como o prazer na visualização dos primeiros filmes dos grandes cineastas reside na capacidade de se detetarem as marcas de realização e intenções artísticas que definirão as suas obras posteriores mais aclamadas, mas que, por uma questão de imaturidade, ainda não estão totalmente definidas. A frase utilizada por Fieschi é a de que “sentimos a deliciosa sensação de discernir a esplêndida mariposa futura no que ainda é uma pequena lagarta.” Aproveito-me da analogia entomológica para dizer que Only Angels Have Wings (Paraíso Infernal, 1939) foi o instante da carreira de Hawks onde a mariposa emergiu do casulo, isto é, o momento em que a visão do mundo do cineasta se cristalizou de forma definitiva.
Nem a aviação [The Dawn Patrol (A Patrulha da Alvorada, 1930) e Today We Live (A Vida é o Dia de Hoje, 1933)], nem sequer a profissão de carteiro aéreo [Ceiling Zero (Entre Nuvens, 1936)] eram novidades para o realizador quando iniciou Only Angels… Neles, Hawks havia já demonstrado o seu apego a dinâmicas de grupo masculinas, assim como o seu talento para retratar a competência pragmática atraída pelo perigo aeronáutico, em obras onde a construção formal oscilava entre a comédia e o melodrama. No entanto, foi nesta história de carteiros aéreos do aeródromo de Barranca aonde vai parar uma corista, Bonnie (Jean Arthur), que todas estas características se encontraram reunidas e depuradas, e que vieram a definir os “filmes de grupo” hawksianos: uma sociedade auto-suficiente e isolada do mundo, onde habita um conjunto de profissionais duros com um ofício arriscado e guiado por um código de conduta estóico, o qual se depara com a chegada de uma mulher espirituosa (se bem que em Arthur esteja ausente a frontalidade sexual intimidante de Bacall, Angie Dickinson e outras “mulheres hawksianas” vindouras), perturbadora da postura patriarcal do seu líder [“papa” é o nome pelo qual é referido o piloto-dirigente Carter (Cary Grant)]. Partimos deste último ponto para dizer que Only Angels… é tanto sobre um grupo como sobre um homem (Carter) e duas mulheres: a que o magoou (a personagem de Rita Hayworth) e a que o salvará (Bonnie). Entre a partida da primeira e a aceitação da segunda, o sexo feminino é reiteradamente visto pelo líder como uma ameaça (“nunca sou queimado duas vezes no mesmo sítio”, diz Carter), visão que será desmentida pela reconciliação com o seu desejo sexual, algo que paira sobre quase toda a obra de Hawks daqui em diante.
É através de Bonnie, a estrangeira delicada, que aceitamos compreensivamente a honradez nutrida pelos aviadores para com os seus mortos no prosseguimento inexorável e emocionalmente desprendido do trabalho inacabado.
Mas seria redutor resumir a relevância da personagem de Bonnie a um papel figurativo da possibilidade do retorno e aceitação do amor. Como coloca Robin Wood no seu magnífico estudo sobre o cineasta: “Ela é o nosso meio de acesso, de iniciação. Ao aceitá-la com toda a natureza incomum da sua situação – como representativa da nossa sensibilidade civilizada, fazemos a nossa adaptação ao código de grupo através do seu ajustamento, precipitada pela morte de Joe, à vida vivida sob a sombra constante da morte”. É a tal cena icónica do bife onde, após o despenhamento do piloto, o grupo se deixa recair num estado de indiferença perturbante (“Who’s Joe?”). Bonnie, reflexo das emoções empáticas da sociedade externa, chora e tenta chamá-los à atenção para a insensibilidade revelada. Só que o grupo ignora-a, cantando altivamente numa tentativa de silenciar o seu protesto e quaisquer traços afectivos civilizacionais demonstrados por ela. Tal sucede porque a integração dela tem de partir da dissolução dos seus sentimentos no estoicismo comunitário, o que sucede pouco tempo depois, no momento em que toca piano alegremente com os membros da comunidade [como tantas vezes na obra de Hawks, é na música que podemos encontrar representadas a unidade e a resiliência colectiva que asseguram o espírito de grupo sobre o qual o filme se alicerça, como na inesquecível “Whiskey, leave me alone” em The Big Sky (Céu Aberto, 1951), ou o piano em Hatari! (1962) (numa cena bastante similar a esta)]. É então através de Bonnie, a estrangeira delicada, que aceitamos compreensivamente a honradez nutrida pelos aviadores para com os seus mortos no prosseguimento inexorável e emocionalmente desprendido do trabalho inacabado.

Não é de estranhar que o aeródromo surja então como um espaço quase sartreano, onde os homens sentem a necessidade de estabelecer a sua identidade pessoal, de se definirem pela acção. Se alguém lhes perguntar o porquê de fazerem o que fazem, a resposta mais provável que ouvirá é a mesma que Kid (Thomas Mitchell) dá a Bonnie: “Estou neste negócio há 22 anos, não conseguiria dar uma resposta que fizesse sentido”. Hawks, como o cineasta físico que é, exprime a filosofia existencialista que percorre o grupo pelo trabalho. Daí que Kid sinta a necessidade urgente de provar que a miopia de que sofre não é impeditiva de voar, dado que se trata da única maneira de resguardar integralmente a consideração por entre os seus camaradas e, por conseguinte, a que nutre por si próprio, silenciando assim a sua crise existencial. De modo semelhante, a reintegração do cobarde de Richard Barthelmess (actor de Griffith, num desempenho absolutamente notável) tem de provir de um gesto expiatório que prove a sua disponibilidade em colocar o trabalho e o profissionalismo do grupo acima da própria vida, pois pelo exercício exímio do seu cargo e lealdade prestada à comunidade, o homem hawksiano justifica a sua existência nela e, consequentemente, a sua própria.
Mas se é em Only Angels… que se dá o momento da cristalização da visão do mundo de Hawks, não menos é o do aperfeiçoamento da sua mise en scène, caracterizada por planos médios e de conjunto, horizontalmente estáticos (a tantas vezes referida “câmara ao nível do olhar humano”) que, por vezes, alternam com outros mais aproximados por uma questão enfática, mas sem variações significativas ou ordem justificáveis a não ser a do instinto do cineasta, que acresce a intensidade emocional cénica (por exemplo, a morte de Kid, com o uso de grandes planos entre ele e Carter a contribuir para a formação do momento mais íntimo do filme). Que o ponto-de-vista em Hawks é o da comunidade ao invés do indivíduo, não é novidade. Mas mais interessante de analisar é o facto de que, de todos os filmes aeronáuticos de Hawks, este ser (a par de The Dawn Patrol, por motivos idênticos) aquele que melhor faz uso do ponto-de-vista da terra. Observemos este curto excerto da sequência da aterragem falhada de Joe.
Apesar de elementos como o dedo apontado de Kid, as ordens de Carter ou as respostas de Joe motivarem a isso, não existe nenhum corte para o avião, pois este está invisível para a comunidade, encoberta pela camada densa de nevoeiro. É Gerald Mast quem o coloca em Howard Hawks, Storyteller: “O contraponto sociedade dentro do enquadramento-motor fora do enquadramento, é em si próprio, uma metáfora para o contraste do filme entre a experiência humana comunitária e a experiência humana solitária. A forma habitual de falar sobre este contraste de contrapontos de som e imagem é afirmar que, ao utilizar som fora do enquadramento, o realizador respeita a integridade visual fundamental da imagem e do cinema, usando o som para completar a imagem visual, em vez de competir com ela ou repeti-la”*. Ou seja, o que não pode ser apresentado na imagem (reiteramos, que expõe o ponto-de-vista terrestre e da comunidade) por uma divergência espacial, surge de forma acusmática (as acções do indivíduo no ar e isolado), isto é, o som é usado como complemento da imagem e não como um elemento reiterativo do já visualmente exposto, estando a sua fonte invisível. Ao mesmo tempo, pela intensidade sonora relativamente baixa do barulho do motor, é fornecida uma sensação de distância do grupo, havendo a criação sónica de espaço. Nesta experiência audiovisual completa, o espectador é então obrigado a compartilhar do estado racional de ansiedade e incerteza dos membros do aeródromo, ao invés do confiante e precipitado de Joe, ouvindo o avião pairar sobre eles sem certezas definitivas do seu trajecto. E mesmo que na sequência integral haja três curtos instantes (poucos segundos numa sequência de cerca de 4 minutos) em que se corta para o avião (o momento em que Joe muda de direcção para uma nova tentativa de aterragem; quando bate de raspão numa árvore; e quando se despenha), todos eles são sustentados por motivos práticos que têm a funcionalidade de incrementar este estado de angústia terrestre.
É após esta cena com a morte de Joe que se ouvirá, da boca de Cary Grant, aquela que é, porventura, a frase mais violenta da obra hawksiana: “He just wasn’t good enough”. Violenta porque, sendo o profissionalismo o maior valor em Hawks, não há maior injúria a uma personagem do seu universo do que a colocação do dito em causa. “Think you’re good enough?” é a questão que John Wayne coloca a Dean Martin em Rio Bravo (1959), ou ainda “I just hope you’re good enough” diz também Wayne, mas desta vez a Robert Mitchum, em El Dorado (1966). É o último ponto que falta referir sobre o que fica completamente definido com Only Angels…: O herói em Hawks? O homem que se prova ser “good enough”. E basta.
*Excerto traduzido por Maria José Paletti, disponível no volume Howard Hawks da Cinemateca Portuguesa.