O exercício proposto é o de nos procurarmos orientar por este auto-retrato do realizador João Pedro Rodrigues com a única informação de que as imagens que dele fazem parte foram na sua quase totalidade feitas por ele. Só assim poderemos aceder ao grau mais puro da linguagem cinematográfica, imagens e sons que dão lugar a sentidos por eles próprios. Pensamos que o filme justifica este propósito que pode ser visto como capricho. Para explicações sobre as escolhas dos materiais do filme e as relações que estabelecem com a obra de João Pedro Rodrigues aconselhamos a leitura da segunda parte da entrevista do Kino Scope.
Uma das sequências mais longas desta curta-metragem de vinte e um minutos mostra imagens da preparação de Morrer Como Um Homem (2009) filmadas com uma lente de visão nocturna. Os homens estão camuflados e momentos depois, já com luz do dia, vemos o próprio realizador a colocar no rosto as cores usadas pelos militares para que se confundam com a vegetação. Où en êtes-vous, João Pedro Rodrigues? (2017) é um auto-retrato camuflado. Tudo o que ali se vê oculta sempre qualquer coisa e o rosto do realizador é somente a parte dessa qualquer coisa que é mais objectiva. Ocultando o rosto, dissimulando-o com reflexos, enquadramentos de perfil ou seccionados acima do tronco, João Pedro Rodrigues conduz o nosso olhar para o que de facto existe na imagem, começando pelo seu corpo integralmente nu que desce umas escadas em caracol, essa estrutura arquitectónica que tem qualquer coisa de psicanalítico, que predispõe a mergulhar no que vem a seguir.
Où en êtes-vous, João Pedro Rodrigues? pode finalmente ser olhado como um filme memória.
É com um nu frontal que o filme começa. João Pedro Rodrigues mostra-se tal como é, mas elide o rosto. Quer que olhemos apenas para o corpo dele. O filme é uma tentativa de o situar naquilo que ele é enquanto realizador. O seu corpo é o corpo da sua obra. A parte pelo todo. Os pequenos apontamentos biográficos ditos por ele surgem de situações que têm a ver com a história dos filmes, da produção ou da exibição dos mesmos, ou de elementos que lhe serviram de inspiração. Venham eles do mundo natural (paisagens ou animais) ou do mundo intelectual [em duas alturas, o realizador lê na língua original excertos de Walden, de Henry David Thoreau, e de The Birth-Mark, de Nathaniel Hawthorne, cujas lápides cobertas de neve dão conta de uma proximidade na morte que Rodrigues articula neste auto-retrato, sugerindo inspirações que no caso de Thoreau tiveram consequência concreta na sua longa-metragem mais recente, O Ornitólogo (2016)].
Où en êtes-vous, João Pedro Rodrigues? é também um objecto que dispõe os seus elementos de acordo com uma ideia de montagem das atracções que tem qualquer coisa a ver com a pintura. Existe a metáfora mais directa da imagem do realizador a camuflar-se com tinta militar, mas o próprio uso de material filmado de natureza diversa (mais ou menos grão, maior ou menor fixidez do plano, diferentes graus de intensidade cromática), de uma dinâmica de cortes abruptos que sugerem vigorosas pinceladas que parecem responder algumas vezes a um impulso, aliás observável nas várias pinturas de que resultou o cartaz de O Ornitólogo, na pujança do traço e do jogo de cores primárias, sugerem-nos a ideia de um filme que se pudesse estar a construir em simultâneo com o acto da sua fruição. João Pedro Rodrigues situa-se em vários períodos, com várias pessoas, situações distintas, dando essa noção de impermanência que só a memória (e em parte o cinema também) tem a capacidade de tornar presente. Où en êtes-vous, João Pedro Rodrigues? pode finalmente ser olhado como um filme memória. A montagem procura fixá-la e libertá-la ao mesmo tempo.
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Où en êtes-vous, João Pedro Rodrigues? pode ser visto em streaming na mais recente plataforma de VOD nacional, o Filmin.