Quatro filmes que trabalham os géneros cinematográficos (e os outros também): uma comédia surreal de ficção científica, um filme de ladrões e prisões, uma terror do corpo e uma investigação pela intimidade do arquivo.
Diamantino (2018) de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt
Diamantino começa como paródia ou sátira (dependendo do grau de acidez que se lhe quiser atribuir) da maior estrela do futebol português contemporâneo, e o retrato começa na caricatura – como aliás grande parte dos trabalhos anteriores do realizador que tem brincado com personagens históricas como Manet, Brancusi ou Vaz de Camões, ou da modernidade, como Obama ou Justin Bieber. De facto, o realizador recupera Carloto Cotta no papel de Diamantino de modo não muito distante dos personagens que já desempenhara em The Hunchback (2016), Freud und Friends (2015) ou mesmo Fratelli (2012), isto é: o papel de cepo – que, segundo o Priberam, tem como sentido figurado “pessoa estúpida que não serve para nada.” Só que esse cepo acaba por se revelar algo muito mais tocante e sensível do que uma primeira impressão poderia conceber. Como referiu o realizador na apresentação do filme na abertura do QueerLisboa: “este é um filme sobre uma pessoa tão cândida, tão naife, que se permite experimentar coisas para as quais nenhum de nós teria disponibilidade.” E esse é o grande achado do filme, próprio de uma metragem mais larga: dar espaço ao seu personagem para sair da mera caricatura (que dada a sua força é algo difícil e nunca totalmente conseguido), mostrando-se afinal figura doce e romântica – como Os Humores Artificiais (2016) já ensaiara, num romantismo de derreter corações.
E é aqui que convém centrar o olhar: na ambiguidade que o filme sempre trabalha entre o brincar e o levar-se a sério, entre o conteúdo político e a simples rêverie surrealista, entre a paródia e a sinceridade para com o seu protagonista. É exactamente nessas áreas cinzentas que o filme parece deliciar-se, deixando o espectador sempre em riste, incerto se será de mau gosto fazer piadas sobre os refugiados ou ridicularizar o sotaque madeirense. Mas é aí que Abrantes e Schmidt encontram o seu espaço, trabalhando no gume da navalha do agora tão propalado “politicamente correcto”. Mas se observarmos o filme atentamente, percebemos que grande parte das suas saídas humorísticas têm um enorme poder disruptivo que parte sempre da posição do espectador, isto é, quase sempre rimos-nos juntamente com os “maus” da fita. A nossa postura de espectadores moralizantes é posta em causa sucessivamente, até que no final só há lugar para a empatia.
Cartas para um ladrão de livros (2017) de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros
Imagino que todos os cinéfilos tenham os seus pontos fracos, que é como quem diz, aquela combinação de elementos narrativos que sustenta o interesse mesmo que tudo o resto fique por fazer. Para um amigo meu são filmes com viagens no tempo, para mim são filmes de roubos e/ou fugas de prisões. No fundo o fascínio prende-se no trabalho de orquestração do evento (o assalto ou a fuga), onde tudo é previsto até à milésima parte para que depois tudo corra ao contrário do previsto. Enfim, já se sabe, estes sub-géneros cinematográficos são ricos em lugares comuns, clichés e fórmulas mais do que experimentadas, corrigidas e repetidas. E é exactamente por isso que é tão prazenteiro ver um filme de suspense onde tudo é previsível, ou melhor, tudo na medida de uma imprevisibilidade com a qual já se conta. Essa relação de familiaridade com os géneros fílmicos tem muito que ver com sistemas de publicidade e marketing, com a história da (falsa) concorrência entre os estúdios norte-americanos nos inícios do século XX, e com a cristalização que uma série de realizadores clássicos soube trabalhar em seu proveito.
E chego finalmente a Cartas para um ladrão de livros (2017). O filme de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros [apesar de toda a narração se centrar no primeiros dos realizadores, falando sempre na primeira pessoa – ambos já haviam estado no festival com o filme que venceu o prémio do público o ano passado no QueerLisboa, Entre Homens de Bem (2016) sobre o deputado brasileiro porta-voz da causa LGBT, Jean Wyllys] trabalha impecavelmente as fórmulas do filme de ladrões, a começar por uma banda-sonora toda feita de toques jazzísticos; seguida por uma confusão temporal que nos coloca a saltitar (da frente para a trás) entre 2012, quando o filme começou a ser rodado, e 2017, quando terminou; mas também ajudado pelo poder cativante do seu protagonista; pelo subtexto político-conspirativo que deixa no ar e, claro, pela história de amor à distância das grades do cárcere. Tudo é perfeitamente montado para fazer deste documentário – produção da Globo, e sente-se o tom televisivo constantemente – um verdadeiro crowdpleaser. O problema, se assim o quisermos descrever, prende-se com um desacerto de atmosferas entre a história-já-lendária de Laéssio Rodrigues – o “maior ladrão de livros raros do Brasil” – e a insistência na primeira-pessoa-do-presente-indicativo de Cavechin, centrando toda a narração nas cartas trocadas entre si e o protagonista (tentando fazer do filme um objecto epistolar, proto-confessional). Como se corressem paralelamente dois filmes, um lúdico e o outro íntimo, mas que nunca se chegam a unir.
Girl (2018) de Lukas Dhont
Ao contrário doutros filmes sobre as vivências trans (documentais ou ficcionais, pouco importa), estas são retratadas num ambiente particularmente cruel para com a pessoa cuja relação com o género não é normativa. Em Girl a integração social de Lara é aparentemente suportável (sim, há bullying e sim, há um constante recordar da diferença). O seu drama é, acima de tudo, um drama interno: um sofrimento de uma rapariga que não consegue aceitar perante si mesma o corpo que possui senão através de uma cirurgia de redesignação sexual – sendo que essa incapacidade de aceitar o seu corpo tem raízes na definição de padrões de beleza e de feminilidade que não incluem o corpo de Lara. Mas o modo como o espelho “reflecte” este choque entre corpos e as suas representações é particularmente certeiro na forma como descreve a situação de muitas pessoas trans, colocando a tónica no tema da performance de género como construtor de uma identidade. Não é pois por mero acaso que um dos últimos planos do filme apresente a re-unificação entre o corpo e a sua imagem reflectida numa janela, como se – finalmente – fosse possível para Lara uma aproximação entre essas duas realidades.
Mas enquanto via o filme pensei muito mais no modo como o filme trabalha segundo os arquétipos do filme de terror, em particular o sub-género do body horror. Nessa tipologia de filmes que teve a sua manifestação mais marcantes durante os anos 1980 – nomeadamente no cinema de David Cronenberg – o terror vinha da mudança. O corpo que se supunha “perfeito” – uma unidade ontológica intocada e sacralizada – via-se ameaçado por entidades exógenas (alienígenas, robots, mutações genéticas resultantes de experiências científicas, insectos, doenças e a lista poderia continuar) que o vinham perturbar, deformando-o, reconfigurando-o, resignificando-o. Ora bem, perante Girl apetece inverter esse sub-género e falar de um horror of the body (procurando uma tradução, passamos de um terror corporal para um corpo de terrores). A apropriação de alguns dos tropos recorrentes do cinema de terror por Lukas Dhont (as unhas que caem, a pele que sofre, a mutilação… – não esquecendo que este é um filme sobre dança, prática artística muito habituada ao martírio do corpo, nomeadamente dos pés, vide Darren Aronofsky) é feita em sentido inverso: o terror não está na mudança, está sim na continuação, na persistência, na permanência.
Inconfissões (2018) de Ana Galizia
Enquanto assistia a Inconfissões disse para com os meus botões uma dessas boutades genéricas que ficam sempre bem aos pensadores aforísticos do cinematógrapho: “fazer cinema é arrumar o real”. Pensei-o, na altura, e escrevo, agora, porque o filme de Ana Galizia tem esse dom da arrumação – algo que se evidencia na exímia construção narrativa, a qual a realizadora admite ter “ficcionado” em alguns momentos para bem da nossa satisfação aristotélica. Explico-me, a realizadora encontrou uma caixa, no fundo do armário de uma sua tia, cheia de fotografias e filmes em Super8. Essas imagens, estáticas e moventes, haviam sido produzidas pelo seu tio, Luiz Roberto Galizia, uma importante figura do mundo do teatro brasileiro – segundo o IMDB terá participado no extraordinário O Beijo da Mulher Aranha (1985). A realizadora trabalhou esse arquivo (ao qual se juntaria uma “outra caixa” recheada de cartas e uns mais documentos) limitando-se exclusivamente ao material que dispunha. O filme é pois composto unicamente por essas fotografias e filmes encontrados, aos quais se juntam vozes que lêem cartas, um relatório médico e uma especulação afectiva da realizadora (assim como um trabalho de sonoplastia que “dá vida” àqueles arquivos outrora moribundo).
E essa é a ideia central do filme, insuflar de vida um conjunto de documentos que haviam caído no esquecimento, sobre uma figura cuja vida era apenas lembrada pelos feitos públicos e nunca dentro do foro da intimidade. No fundo o que Ana Galizia faz é recuperar uma memória não escrita do tio, mas amplamente documentada pelos seus registos fotográficos quase diarísticos do quotidiano – aliás, a própria realizadora confessou que a expectativa da sua família era que o filme sobre o tio se centrasse no seu trabalho teatral e nunca na sua vida privada. Só que esse quotidiano de Luiz Roberto é significativo de uma época e simbólico de uma hecatombe: o actor mudou-se para São Francisco no final dos anos 1970 (ou início dos anos 1980) e morreria em 1985 vítima das complicações da SIDA. Desse modo, a natureza pessoal da sua sexualidade reveste-se de ode à vida e à felicidade antes do medo associado ao VIH, e não deixam de ser enternecedoras – o que é surpreendente – as fotografias de práticas sexuais explícitas da vida de Luiz Roberto. Porque aí, nesse desnudar, revela-se uma liberdade de afectos e paixões que lhe haviam sido negadas na juventude (em particular por esse terrífico relatório médico que é incapaz de perceber que a depressão do jovem Luiz advinha da sua castração – ou percebendo-o não a condena). Ali, por entre paus erectos – uns garrotados e outros abocanhados – encontrou-se a felicidade.