O estilo é o próprio homem.
Conde de Buffon
Não é possível com mente mortal indagar dos pensamentos dos deuses.
Píndaro
O casal Huillet e Straub foram aqueles cineastas que podem ser considerados os maiores hermeneutas do cinema contemporâneo, e o extraordinário é que este trabalho infinito de trazer um texto para o proscênio do plano de cinema nunca os levou a esquecer que o cinema moderno, de Renoir a Rossellini, do Jean Rouch de Petit à petit (1970) ao Jacques Rivette de Paris nous appartient (Paris nos pertence, 1961) foi antes de tudo uma arte da presença, infra-estrutura de base para a reinvenção mitológica ou a especulação filosófica, mas irredutível veio condutor de todas os caminhos desta arte a partir de meados dos 30, mais do que nunca fenomenológica. Aqui, o autor sobre o qual se debruçam é o Cesare Pavere dos cinco últimos diálogos com Leucò, mas a inspiração assombrada de Quei loro incontri (Estes Encontros com Eles, 2006) [nota: Aqueles Encontros Com Eles, no Brasil] vem do leitomitif hölderliniano do desaparecimento do divino. Ao final do filme, retoma-se no diálogo entre os camponeses um círculo encantatório onde presença (dos deuses) e palavra (humana) se fecundam mutuamente, mas esta fecundação recíproca é o efeito a posteriori que só pode se verificar como execução de uma Obra poética – locus do dialogismo primordial entre a rapsódia, a égloga e o ditirambo divino, formas de arte primeva todas invocadas aqui – pois a constatação enlutada de que o filme parte é de que os deuses desertaram há muito a terra, e o seu dom só se reapresenta ao homem sob a figura do signo inspirado, do significante encantado da narrativa através da qual um mundo se funda.
Antes de prosseguir, é necessário um parênteses: os Straub devem ser considerados artistas modernistas mas que jamais abdicaram do papel, paradigmaticamente teorizado por André Bazin, do plano de cinema como janela para o mundo, como Revelação de, e portanto trabalham eminentemente num cadre classicista, uma vez que para os clássicos (aqui poderíamos, a título de esclarecimento estrutural, cotejá-los com os barrocos, ou com estes barrocos tardios que foram os maneiristas, os expressionistas, etc.), a obra não manifesta a interioridade de um sujeito falante, e sim a Cultura: os vinhedos, os grãos, os riachos, as colinas, o cicio do vento ou o rumorejo das ninfas são vistos nesta Obra poética mas também crítica (materialista dialética, didática, etc) como presenças aí, diante de nós e que o plano de cinema deveria, em seu papel de révelateur para a sedimentação dos entes, manifestar, é certo, mas tão relevante quanto seu status ontológico é sua dimensão antropológica, é a situação destes entes em contextos históricos e políticos. As ninfas e os rios pertencem à cultura italiana, dizem-se e calam-se na língua italiana, encravam-se com solidez de promontórios arquetípicos na estatura do verbo italiano; para os Straub, a Cultura é indissociável da palavra, e é falando que experimentamos a densidade ou a rarefação do pertencimento a um povo, sua presença propriamente dita encarnando-se nos sintagmas luminosos ou ensombrecidos de nossos humores, que o sotaque cauterizou; a fala é nossa experiência primordial de contato, refração, aliteração, possessão e desvanecimento de um mundo, que se Funda (pensemos no alemão Grund, que indica precisamente a fundação sobre a qual se assenta uma casa) no exato momento em que se nomeia, no hic et nunc de ditongos de Gesta e pronomes de égloga.
Este teatro das matérias onde se ensaia, escande, arqueia, concerta, forja um corpo amestrado para a Cena, é precisamente a parte mais tardia de uma vigorosa arte neo-clássica.
Retomemos a inspiração assombrada de Hölderlin, a que aludi no início deste texto. Hölderlin foi o poeta do desencantamento do mundo, ou desaparecimento do divino, temas que podem ser considerados complementares ou reversíveis; nestes termos obscuros mas prenhes de reverberação teológica, indica-se justamente o processo calculista e causalista através do qual a racionalidade ocidental se apoderou do ser e o submeteu à sua teia conceitual de pressão tantálica: os entes deixaram de nos aparecer encantados (o que ouvia o primitivo no estrondo do trovão senão a tosse de um deus?), transfigurados, em um coup de foudre que tão bem o francês soube secularizar na impressão fulminante deixada em nós pela Primeira vez apaixonada; a tosse do deus Poseidon não mais habita o estrondo do trovão porque agora conhecemos a natureza, as condições, o horizonte e o raio de ação do fenômeno “trovão”: já não há deuses para interrogar, nem vaticínios a cumprir, porque o mundo é agora este conjunto, teleologicamente orientado pelos fins utilitaristas de previdência econômica (por exemplo, mas principalmente), de entes concebidos como componentes de um “estoque”: a epifania foi substituída pela categoria, o óbulo da Graça pelo cash da dívida a resgatar, e é relevante para a compreensão da reflexão e da práxis straubianas que relacionemos os dois exemplos, e o desaparecimento do divino, tema mito-poético do idealismo alemão, acabe por desaguar na teorização marxista da mais-valia, por exemplo.
Se o primado da especulação filosófica neste processo de alienação do mundo é inequívoco, não podemos deixar de ir mais fundo e sempre, e pensar nas implicações sócio-econômicas deste démarche: alienação ontológica e econômica são faces de Janus da mesmíssima moeda, e não por acaso, sobretudo em sua obra italiana, os Straub jamais deixaram de nos lembrar da implicação entre ambos os processos, pois pelo recitativo poético de suas églogas críticas paga-se o preço caro de alienação do povo de sua própria palavra, denotando-se e conotando-se no verbo escandido de maniera iracunda ou pesarosa que a palavra é antes de tudo o índex de ausência de uma preciosa Coisa, seja esta a presença dos deuses ou de um Éden proletário no qual o homem, seu mundo e a designação que o funda não precisem da intercessão do dito poético para se reconhecerem e imantarem, pois seriam uma única res, espiritual e material. A alienação material, assim, é diretamente relacionada à mediação, que separa, difrata, segmenta a experiência do signo que se incumbe agora de representá-la, e mesmo em sua eminente função de revelação metafórica contém sempre um déficit. A palavra poética, se ousarmos falar assim, é um significante do género “mal menor”, pois se não repara de todo a alienação entre a res coisa e a res signo é ainda um razoável meio de sutura de sua irredutível separação, propiciando ao homem pelo menos a ilusão de que a coisa ainda habite o seu signo e de que o signo denote, em uma frontalidade acintosa de proscênio grego que tanto nos exalta neste cinema de presenças percutidas pelo Verbo da profecia, a alteridade insistente da Coisa.
Se o fundo de Aqueles encontros “perdidos” com eles é a planície desolada de onde o divino ou o homem desapareceram (a maior parte dos diálogos é entre deuses: a conclusão poiética do final nos é dada pelos homens, no entanto, como se a eles coubesse a definitiva sentença sobre o oráculo defunto) – e portanto a rememoração elegíaca -, em um cinema de resistência como os dos Straub a Reação jamais ditará a última palavra, e assim inexiste qualquer traço de complacência melancólica ou decadentista aqui: os corpos retesados, a frontalidade adstringente (não só dos atores que recitam, mas da massa de verdura onde se instalam, como cicio do vento e andantes de rouxinol, istmo de fora de campo musical frequente no cinema do casal onde se atesta o da, “o isso” rugoso do fenômeno), o recitativo estridente mas modulado por stacatti ao final das sentenças que as arredondam em capitéis de fá, todos estes dados são um acicate materialista contra o qual o aríete da palavra encantatória tem de combater para afirmar-se, não apesar, mas com o peso, o viço, a estatura, a tessitura, o ritmo e o ginástico da Coisa revelada em seus detalhes mais irresistivelmente sensuais, pois deuses desaparecidos como humanos que nos aparecem devem todos ser dotados daquela potência de presença que só uma iminente ausência pode robustecer.
Se a palavra recitada é em sua essência poiética (pois nos reapresenta a coisa subtraída no sibilante de seu rastro fatal), ela é também um esforço suplementar, renovado a cada nova pausa, de vigor agonístico, de ginástica elegíaca para que, perdida a Coisa (desaparecido o divino), reste ao menos a experiência, inspirada no espectador pelo Verbo conscienciosamente aprendido – e assim retirado a fórceps da Natureza do “aí” e restituído, em uma operação classicista mas também crítica de ressignificação hermenêutica, à Cultura, que mesmo nos Straub italianos possui como referência arquetípica os hexâmetros ultra-codificados de neo-clássicos franceses como Racine e Corneille – do mimetismo, da analogia in extremis com a Coisa poética que a palavra artística necessita alcançar. Se Aqueles encontros com eles (entre eles: deuses e mortais) já não são mais possíveis, são ainda, no interregno de um vibrato de sílaba ou no ricochete de uma pausa, sugeríveis ou presentificáveis por analogia, efeito deste jogo de encoberto e revelado que a recitação neo-clássica tão bem codificou como o lugar de uma Cena que sempre soube que o proscênio teatral mais saturado de fascinação nada seria sem um industrioso cuidado com as coxias, lugar privilegiado para o ensaio, a rubrica do texto, a batuta magistral e da dicção concertante que, em uma arte de bom-tom, nunca deveriam ser reveladas sob a luz das ribaltas. Esta coxia da representação os Straubs nos permitem experienciar no tablado da língua, mas também da pose inerte ou do Gesto altaneiro: este teatro das matérias onde se ensaia, escande, arqueia, concerta, forja um corpo amestrado para a Cena, é precisamente a parte mais tardia de sua vigorosa arte neo-clássica.
Quei loro incontri (Estes Encontros com Eles, 2006) de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub é exibido amanhã, dia 19 de Setembro, pelas 19h00, na Cinemateca Portuguesa.