Faz agora um ano que publicávamos o número inaugural dos Estado Gerais aqui no À pala de Walsh. Uma rubrica em que reunimos em redor de uma mesa uma série de especialistas de uma determinada área do cinema (temos trabalhado segundo a ideia de género) e conversamos durante duas, três, quatro ou cinco horas. Esse primeiro número foi sobre o cinema de terror e entre os convidados incluíam-se João Monteiro e Pedro Souto, dois dos directores do MOTELX – Festival Internacional de Cinema de Lisboa de Terror. Dessa longa conversa que pode ser lida aqui, ficou-me o seguinte comentário de João Monteiro que este ano se preenche de renovado significado:
Antes de ter filhos tinha medo de umas coisas e depois de os ter mudei os meus medos. (…) O The Babadook (O Senhor Babadook, 2014) ajudou-me a compreender coisas, certas subtilezas que se calhar quem nunca teve um filho tem mais dificuldade em compreender. Aquilo é um filme sobre uma mãe que culpa o filho pela morte do marido – e só por aí estamos em territórios aos quais a maior parte das pessoas não costuma ter acesso. Essa é uma vantagem do cinema de terror feito por mulheres (…). No caso do cinema de terror feito por mulheres, as perspectivas são mais variadas, livres, complexas, podendo estar aí uma indicação da evolução do próprio género.

Em 2018 o MOTELX dedica a edição ao terror feito no feminino. Comemoram os 200 anos da publicação original de Frankenstein por Mary Shelley, novela inaugural da literatura de terror nas suas matizes mais góticas. Shelley tinha à altura da edição apenas 19 anos e é em homenagem ao seu génio que o festival organiza uma retrospectiva na esplanada da Cinemateca Portuguesa onde serão exibidos, ao longo de todo o mês de Setembro, algumas das mais marcantes adaptações cinematográficas de Frankenstein. A isso junta-se a exibição do recente biopic dedicado à escritora (pela mão de Haifaa Al-Mansour) e uma conferência que visa “discutir o lugar deste romance na nossa era e de que forma continua a ser uma leitura actual e pertinente” cujo painel é totalmente feminino, contando com a presença de Maria João Luís, Isabel Abreu, Bárbara Bulhosa, Helena Vasconcelos e moderado por Fernanda Câncio.
Mas mais importante, nesta edição da secção Quarto Perdido (programa regular das últimas edições do festival onde são exibidos filmes portugueses que roçam o cinema de género e cujo destaque de 2016 tinha já sido feito sob o sigo do feminino, destacando o trabalho televisivo de Noémia Delgado) o foco coloca-se na realizadora sueca naturalizada portuguesa, Solveig Nordlund. Em particular, dois dos seus filmes do início do milénio: Aparelho Voador de Baixa Altitude (2002) e A Filha (2003). Recolhendo algumas das impressões da crítica de cinema nacional, aquando das respectivas estreias, percebe-se rapidamente que o trabalho de Nordlund se marca pela excepção face ao panorama nacional. Luís Miguel Oliveira escreveu que “Aparelho Voador a Baixa Altitude não encontra grande dificuldade em tornar-se imediatamente a mais conseguida incursão na f-c feita pelo cinema português” – referindo, en passant, Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution (Alphaville, 1965) de Godard, o 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968) de Kubrick ou o Solyaris (Solaris, 1971) de Tarkovski, mais pelo “resultado anacrónico” que o filme constrói através da sua estética e atmosfera à anos 1970 [e eu acrescentaria um lado mais lynchiano – de Lost Highway (Lost Highway: Estrada Perdida, 1997) na forma como a fotografia de Acácio de Almeida trata a luz, os espaços vazios e os contrastes de cor] – e Jorge Leitão Ramos, a propósito de A Filha afirmou que “Não há no cinema português memória de um filme assim” e que “na obra da realizadora aflora a sua matriz escandinava, mais de trinta de mediterraneidade não apagaram os genes socioculturais em que se formou.”
Mas como indica o título deste artigo e a extensa citação do director do MOTELX que encabeça a introdução, aquilo que me interessa nestes dois filmes de Solveig Nordlund não é tanto o regime de excepção que inaugura no cinema nacional, antes o modo como reflecte através do cinema de género os medos associados à maternidade e paternidade. Nesse sentido a entrevista que a realizadora deu a Rick McGrath do sítio Ballardian a propósito da sua adaptação do conto homónimo de J. G. Ballard [Low Flying Aircraft] é particularmente esclarecedora: “In Ballard’s story everything is in the head of the husband (…). I centered the story on the woman, on her fears and longings” acrescentando que “When I did the film I thought very much about parents who want to educate their children into copies of themselves and don’t see the beauty of difference.” Esta re-interpretação do texto original de Ballard é bastante importante, aliás, é esse a chave do argumento de Ana Catarina Pereira quando afirma – no nosso dossier intitulado “E Elas Criaram Cinema” – que “Para quem lê o conto ballardiano, torna-se fácil reconhecer as marcas do discurso feminista de Nordlund, essencialmente visíveis no destaque atribuído às personagens femininas, que contrariam o texto inicial.”
Celebrado pelo cinema nas adaptações de Empire of the Sun (Império do Sol, 1987) por Steven Spielberg e Crash (1996) de David Cronenberg, Ballard já cruzara antes o percurso da realizadora. Ela adaptara-o na curta-metragem Journey to Orion (1987) – disponível aqui e aqui – e entrevistara-o no ano anterior para o programa televisivo sueco Future Now – disponível aqui – resultando dessa interacção a referência à realizadora no romance The Kindness of Women, no qual Ballard apelida os vizinhos da história de Nordlunds. Mas de facto esse re-centramento do conto de Ballard na figura da mulher é tanto mais significativo quando Aparelho Voador é um filme sobre a gravidez e a maternidade. Sendo que esse interesse é algo que perpassa toda a obra da cineasta, como bem identificou Leitão Ramos na referida crítica: “Há mais de vinte anos, desde Dina e Django (1981), que Solveig Nordlund vem falando de filhos (…). Em Até Amanhã, Mário (1993) e Comédia Infantil (1997), eram miúdos de risco, em cenários sociais devastados. Em Aparelho Voador a Baixa Altitude (2001), era um próximo futuro em que as crianças nasciam mutantes e a procriação se tornava interdita. Nesse caminhar, chegou agora Solveig Nordlund a um ponto extremo [com A Filha]”.

Em Aparelho Voador há vários momentos em que esse olhar feminino se impõe, em especial, a presença de Margarida Marinho, diálogos por ela proferidos como “a minha vontade é mais forte que todas as leis e proclamações”, a ideia da maternidade como acto radical de resistência ou um hotel chamado Vénus. Mas aquilo que parece interessar mais a Nordlund é exactamente o modo como a ficção-científica pode reflectir sobre o debate do aborto, sobre a construção da ideia de monstro (o outro, o diferente, eles), sobre a autodeterminação da mulher, sobre a eugenia genética, entre tantas outras questão cada vez menos distópicas/utópicas. Nesse sentido Aparelho antecipa, em grande medida, Children of Men (Os Filhos do Homem, 2006), mas dentro de um regime de produção artesanal onde o futuro se molda segundo enquadramentos apertados do edifício brutalista da Culturgest ou das ruínas do complexo turístico de Tróia que seria demolido poucos meses depois – tudo filmado segundo a elegância dos travellings e de exercícios de mudança da escala dos planos em continuidade. Essa “pobreza” de meios acaba por centrar o filme na tal reflexão sobre os medos da parentalidade. Uma das cenas mais arrepiantes do filme dá-se, exactamente, num gabinete médico onde Marinho sangra e grita numa marquesa de obstetrícia.
O filme imagina um mundo onde as crianças nascem mutantes (chamam-lhes Z.O.T.E.S.) e todos os partos de bebés não “geneticamente perfeitos” são proibidos. O governo burocrata autoritário faz espalhar uma ideologia fascista eugénica glosada no slogan “This is Us” que vem acompanhado de um bebé caucasiano sorridente. A obsessão pela perfeição e o medo que o filho mutante odeie e mate os pais reflecte, afinal, a depressão que tantas vezes acompanha as mães e os medos associados à diferença (tanto física como doutra ordem – orientação sexual, identidade de género…). A esse propósito o discurso do médico (que é tanto mais irónico quando sempre foi a medicina que definiu as noções de normalidade) em que este se interroga sobre “o que é isso do «normal», quem é que define as normas, quem é que decide se é válido ou não é válido?” Daí que uma das últimas linhas de diálogo do filme seja, nem mais nem menos, “se queremos mostrar-lhe o nosso amor, temos que o deixar viver no mundo dele.”
Mas se Aparelho Voador funciona mais como exercício sobre o género da ficção científica e, em consequência, como objecto de reflexão sobre os nossos dias, A Filha é um filme que encontra no melodrama um poder emocional muito mais eficaz e um efeito de choque – muito ajudado pelo sempre extraordinário overactig de Nuno Melo, aqui feito elegante brutamontes obssessivo – que ainda é capaz de causar incómodo no espectador desprevenido. Se Aparelho é sobre os pais que aprendem a dar espaço aos filhos e à sua diferença, A Filha é exactamente sobre um pai incapaz de dar esse espaço e de aceitar essa diferença – uma troca de diálogos a certo momento é muito reveladora da natureza do retrato: “Tens de deixar de a tratar como um bebé”, “Ela é o meu bebé”, “E tu és um pai de merda.” A filha do título desapareceu, fugiu de casa – deixou no screen saver do computador a simpática mensagem, “Vai à Merda Pai” – e nós nunca a chegamos a conhecer, como nunca a chega a conhecer o próprio pai. É no acto de a procurar que este conhece, finalmente, a filha que tinha. Mas tudo se constrói sobre um twist que não quero desvendar, mas que está muito próximo de, por exemplo, Odete (2005) de João Pedro Rodrigues, na forma como trabalha a ideia de transferência, projecção e transmutação do amante sobre um diferente corpo.
O filme de Nordlund trabalha afinal sobre a misoginia, o voyeurismo, as relações de abuso familiar, a masculinidade tóxica e o assédio/violação, a trash tv e o jornalismo de tabloid, isto é, podia muito bem ser um filme de 2018. O caso de Solveig Nordlund, pelo menos nestes dois títulos, é um exemplo marcante de como o cinema de género (a ficção científica e o melodrama thrillesco) pode trabalhar sobre temas complexos da sociedade e construir uma visão sobre o mundo que, neste caso, é marcadamente feminina, livre e complexa, podendo estar aqui uma indicação da evolução do próprio cinema de género.