Há uma passagem de um poema que fascina e desconforta Zula, uma das estrelas ascendentes da cena musical do bloco soviético. Na primeira oportunidade que tem, ela interroga a poetisa Juliette (cameo de Jeanne Balibar) sobre o seu significado. “Que pêndulo é esse que, diz o poema, mata o tempo?” O começo da resposta deixa Zula impaciente: “trata-se de uma metáfora”. A explicação que se segue resume, em certa medida, o que Zimna wojna (Guerra Fria, 2018) é ou tenta ser: história de um amor arrebatador que, oscilando entre os dois lados da grande Cortina de Ferro que dividiu a Europa durante mais de quarenta anos, permanece intocável ante o avançar implacável da locomotiva da História. A relação da cantora com o músico Wiktor obceca cada minuto deste muito badalado filme do polaco Pawel Pawlikowski, que retoma a sua indagação histórica pelos caminhos do íntimo depois de Ida (2013).
Que guerra se trava aqui, através da grande cortina? Qual a sua verdadeira temperatura, se por dentro do congelador soviético palpita um coração em chamas, desejando ardentemente por um romance que incendeie o Zeitgeist? Fria e quente, esta é uma relação de puxa-empurra que se confunde com os acontecimentos da História. Portanto, diria que a proposta mais ousada de Pawlikowski passa por historicizar, com um certo rigor de cinema de reconstituição e uma vontade de inspeccionar o passado recente da Europa, um romance parecido com muitos outros que o cinema nos deu, de A Time to Love and a Time to Die (Tempo para Amar e Tempo para Morrer, 1958) a The English Patient (O Paciente Inglês, 1996).
Talvez o problema central deste filme comece aí: no que ele tem para oferecer para lá da ideia ambiciosa, quiçá demasiado ambiciosa, de produzir um olhar sobre a História a partir de uma narrativa de amor assolapado, um amor representado aqui com um pathos porventura anacrónico – mas, atenção, que se celebre este anacronismo em tempos de ocaso para o melodrama e em dias de monopolização do discurso público pelos temas do sexo e do género! Celebre-se esta intenção, certo, mas não deixe de se olhar para o resultado. E aí lamentavelmente verifico que Pawlikowski não consegue impedir que uma intenção acabe por esmagar a outra. A história de amor vira umas vezes pano de fundo da História e vice-versa. O “pêndulo que mata o tempo” acaba morto pelo tempo maior da História. Daí que é com dificuldade que entramos neste amor tórrido contado – e cantado – mediante essa tal perspectiva distanciada que aspira ao comentário histórico-político.
A Cortina de Ferro que me afasta do filme é, de facto, essa boniteza mansa, sem grão e de reclame sofisticado, que parece tomar conta de tudo.
Para mais, mas sem eu querer contestar minimamente a tese de que forma é conteúdo e o conteúdo é forma, este amor bigger than life apresenta-se totalizado por uma vontade algo sonsa de embelezar – a referência a L’eclisse (O Eclipse, 1962), título de filme convertido no nome do bar parisiense onde um exilado Wiktor toca piano, é só mau gosto (ou falso bom gosto) ou, pior ainda, signo de uma tentativa de transformar em “anúncio à Zara” o cinema de Michelangelo Antonioni? Fotografa-se sem risco, sem verdadeiro envolvimento, a “beleza americana”, modelar, deste casal 100% algodão – Zula será uma sucedânea de Marilyn Monroe e Wiktor um símile de Gary Cooper. Como já havia acontecido com Ida, o preto-e-branco sem grão, nuances ou texturas é só mais uma nota – ou será “a” nota? – da insistência caprichosa de revestir o drama com uma concepção prêt-à-porter de beleza.
Há uma cena que serve, aos meus olhos, como crítica ao filme. Quando em Paris, ele produz um disco dela, mas o momento é de crise – um de vários momentos de crise, sendo o discurso amoroso aqui como uma uma sucessão de crises, permanente (constante, transhistórica…) renovação da catástrofe. Wiktor interrompe a gravação da música e diz a Zula: “isto é oco”. Se ela canta sem alma, parece-me que o filme também filma esta paixão sem sair da sua zona de conforto, desse espaço de ameno envolvimento com as agruras e os picos eróticos da paixão. Tudo demasiado limpo, polido, “em pose”, para nos comover. Se “a escrita” é esta desde o princípio, o desfecho procura qualquer coisa mais, a saber: transformar em tragédia o que era até aí um passeio chic por uma história de amor que é pano de fundo da História e vice-versa. A crítica mais implacável sentenciaria que este é um filme que se coloca na posição de ser sempre pano de fundo de qualquer coisa, sendo que nunca deixa de mendigar junto do espectador por um arrebatamento desmesurado.
Para quem nunca chega a entrar neste pêndulo amoroso cheio de “saltos de tigre” pela Historia, a promessa final soará excessivamente melodramática: “vêmo-nos no outro lado”. De novo, regressamos ao conceito já nesta altura perfeitamente exaurido de “o pêndulo que mata o tempo”, mas aqui a ideia eleva-se por momentos. No instante mais cinematograficamente inspirado, Pawlikowski verte na própria gramática visual a fórmula que rege todo o filme e diz-nos que o contra-campo dessa promessa para a eternidade é – tinha de ser – o negro do fim. Este casal não bailará mais, as cortinas cairão ante a conquista da eternidade – não tanto a morte do amor, mas o amor na morte, finalmente redimido! Zimna wojna redimensiona-se nos minutos finais, iluminando qualquer coisa mais poderosa e, deste modo, obliterando a pose pouco genuína, e fatalmente plástica, que o sustentara até então – a Cortina de Ferro que me afasta do filme é, de facto, essa boniteza mansa, sem grão e de reclame sofisticado, que parece tomar conta de tudo. No fim, Pawlikowski diz que “o pêndulo que mata o tempo” era afinal um problema do cinema também, porque toda esta história de um casal cindido deseja, quiçá em vão, um campo que não conheça contra-campo. E o campo capaz de sobreviver ao fim desta dialéctica muito insistente, entre o pessoal e o universal, entre um homem e uma mulher de um lado e a história recente – e torturada – da Europa do outro, só pode ser um: a morte.