I think that what a person normally goes to cinema for is time.
Andrei Tarkovsky
Entre as várias ideias que despontam ao longo de A Árvore (2018) de André Gil Mata – e o filme entrega-se precisamente a esse jogo de descoberta contemplativa com o espectador, pelo espaço que lhe permite para preencher o que vai vendo – duas ganham destaque, até pela sua intersecção. A primeira é uma ideia de circularidade, da vida e do cinema, de repetição de acções própria da indefinição entre o presente e o passado, de mergulho numa realidade muito específica mas ao mesmo tempo intemporal – o que estamos a ver agora pode ter acontecido antes, e pode voltar a acontecer novamente, e assim que acaba o tempo do filme este pode voltar a começar como um loop – uma abordagem que evoca a filosofia espiritual dos filmes de Apichatpong Weerasethakul e Andrei Tarkovsky. A segunda ideia envolve a capacidade da memória em levar-nos para outros momentos que não o presente, para deslocar-nos para uma outra altura diferente da que estamos a experienciar, como um furtivo escape sensorial de uma realidade castigadora. Quer seja para reviver momentaneamente um instante fugaz de felicidade ou preservar algo que se torna assim inevitável, a memória é ao mesmo tempo a salvação e a condenação.
É no encontro entre estes planos de ideias que se desenrola o filme, dois planos que são intrínsecos ao cinema: a evocação de uma memória e a extensão-manipulação do tempo. Este é assim um filme que luta contra a extinção da memória da personagem principal, figura essa que passa a história toda a lutar contra a sua extinção propriamente física. E o filme fá-lo não só tematicamente, mas também na sua abordagem estilística, de um formalismo rigoroso que é também assombroso pela sua convicção, como se este caminho, que resulta numa experiência no limite pelo seu ritmo e dependência da criação de uma atmosfera envolvente, fosse o único possível. A imagem que fica é mesmo de uma vela que arde tenuemente mas sem se apagar – como a imagem de alguém que se dedica a uma tarefa que parece trivial mas que é ao mesmo tempo essencial para a sobrevivência. E essa é precisamente a situação em que encontramos as personagens neste filme, contra a extinção da memória, pelo prolongamento dos mortos que vivem através dos vivos, e dos vivos que vivem à espera da morte.
Voltemos atrás, ao início. A Árvore começa com um maravilhoso plano-sequência, que pode ser entendido como um prólogo ou epílogo, no qual a câmara recua para revelar sucessivamente uma paisagem invernosa, uma janela, um rapaz a olhar pela janela e a desenhar algo, e uma mãe a preparar o jantar numa sala frugal, que depois se junta ao rapaz na janela, num momento de ternura. A câmara move-se depois lateralmente para revelar um outro quarto ainda mais desolador, onde um homem descansa na cama com o seu cão, e vemos a mesma janela e a mesma paisagem. Lá fora ouvem-se primeiro algumas explosões, e depois alguns tiros. Estamos em tempo de guerra – o filme foi rodado na Bósnia – e esta introdução parece situar a acção do filme durante a guerra que assolou o país na década de 1990. André Gil Mata faz um uso exímio dos cenários e das condições da natureza onde filmou para capturar o pesado legado que parece manifestar-se ainda, porque a guerra é sempre demasiado presente.
O filme assume uma abordagem difícil de acompanhar mas recompensadora no final, tal como o homem se entrega a uma tarefa extenuante mas com uma resolução vital.
Depois dessa sequência inicial, o homem, de gestos lentos e esforçados, enfraquecido pela escassez de condições impostas pela guerra, sai de casa acompanhado do cão e carregando um garrafão de vidro vazio. Percorre a seguir as ruas vizinhas, pela neve e escuridão, recolhendo um, dois, cinco garrafões vazios, antes de seguir caminho. Percebemos que esta sua missão, de recolher os garrafões para os voltar a encher de água, é vital para a sobrevivência daquelas cinco famílias representadas singelamente por cada recipiente. Por isso, antes das acções representadas ganharem outro significado com o acréscimo posterior de contexto, são sublinhadas no início por uma incerteza e tensão em relação ao destino desta tarefa. Além do homem e do seu cão não vemos nenhum outro sinal de vida, as ruas estão desertas. Sem diálogos ou música, o silêncio é apenas interrompido pelo cintilar do vidro dos garrafões e de ocasionais trocas de tiros ao longe, e o vento, o frio gélido e a escuridão da noite são esmagadores e opressivos – quanto mais tempo na rua mais perigoso será, mas dele depende a sobrevivência de outros. Fica claro que este ritual já foi repetido várias vezes antes, que o que estamos a ver agora pode ter acontecido antes, e pode voltar a acontecer novamente, este homem transformado em Sísifo.
Cada gesto deste homem e cada respiração tornam-se difíceis e cada movimento uma superação, mas algo parece impelir o homem a continuar em frente, e o seu ritmo ganha uma característica hipnótica e transcendental. Os detalhes do que acontece a seguir ficam para o espectador descobrir, mas é importante referir o ambiente claustrofóbico que o filme constrói com eficácia. A Árvore acompanha a personagem nesta demanda solitária quase em tempo real, os cortes são raros e a duração de cada plano longa mas nunca em demasia. Esta é uma abordagem minimalista que coloca o filme perto do slow cinema, próximo por exemplo do realizador argentino Lisandro Alonso, e em particular Liverpool (2008), pelo retrato imersivo no mundo de uma personagem noutra jornada, nesse caso em direção a casa. Está também próximo de filmes como A torinói ló (O Cavalo de Turim, 2011) e do cinema de Béla Tarr pela forma como trabalha o tempo e a repetição – André Gil Mata estudou na Film Factory de Béla Tarr em Saravejo -, mas ao mesmo tempo e num plano diferente, de Saul fia (O Filho de Saul, 2015) de László Nemes, por um retrato igualmente claustrofóbico em tempo de guerra, pela ofuscação de tudo o resto em redor na procura da sobrevivência e luta contra a extinção. Finalmente, é também evocativo da primeira curta-metragem de André Gil Mata, Arca d’Água (2009), um retrato poderoso da solidão de um outro homem, onde já eram visíveis algumas das ideias agora apresentadas.
Este é assim um filme-gesto, que encontra paralelo nas acções da sua personagem principal: o filme assume uma abordagem difícil de acompanhar mas recompensadora no final, tal como o homem se entrega a uma tarefa extenuante mas com uma resolução vital. Porém, é preciso dizer que, além de um trabalho técnico formidável – a fotografia é assombrosa e a sonoplastia uma das protagonistas do filme – falta uma conclusão que sustente este formalismo rigoroso. Paradoxalmente, o vazio que o filme explora, a narrativa “aberta” e o espaço em branco que permite são contrariados por este formalismo, que pode até reduzir as diferentes interpretações do que podemos encontrar no filme, dirigindo o espectador para um único caminho. Mas isso é aqui, nesta jornada, apenas um detalhe, porque este é um filme a admirar, a acompanhar na sua solidão, para sermos testemunhas cúmplices desta prova de resiliência.