Percorremos as paisagens cinematográficas do mês de Setembro. Filmes falados em português de Daniela Thomas, Edgar Pêra e Marcelo Gomes partilham o espaço destes comprimidos com sofisticados (serão?) exercícios de cinema de Aneesh Chaganty e Panos Cosmatos. Luís Mendonça, Ricardo Gross e Ricardo Vieira Lisboa lançam o seu veredicto.
Vazante (2017) de Daniela Thomas
Vi este filme de Daniela Thomas no passado Festin – Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa, na qualidade de jurado da imprensa para a competição de longas-metragens. Foi, sem dúvida alguma, a obra seleccionada que mais me encheu as medidas, ainda que saibamos como a escolha de um filme num júri resulta sempre de um compromisso entre as partes. O que me seduziu neste filme – inclusivamente por contraste com todos os outros seleccionados – foi desde logo a ambiência pesada, mortificante, que contaminava imagem e som (trabalho notabilíssimo do português Vasco Pimentel!) por igual. Vazante é de uma hipnótica beleza, um feitiço que nos é lançado aos sentidos com o fito de, entre murmúrios, fazer passar – vazar – o espírito de uma época. Eis, então, o Brasil, primeiras décadas do século XIX. Tudo neste filme cheira a podridão, a “fim de uma era”. É esta decadência que alimenta a pulsão destrutiva e auto-destrutiva do protagonista, um colonizador português subjugado pelos seus fantasmas, pelo seu ganancioso e ditatorial desejo de posse.
Vazante é uma obra sobre a decadência do império português a par de um grito surdo vindo das entranhas da revolta escrava. Filme de silêncios, elipses, aparições e desaparições, sono e febre, depressão e decadência. O trabalho de câmara e montagem, austero, cinzento, governado por uma economia impecável de sentidos, vai inflando uma história de faca e alguidar desenrolada nas profundezas de um país que, nas vésperas da sua libertação, toma mais uma vez o gosto da barbárie colonial. Uma nota mais tem de ser feita para a interpretação poderosa do português Adriano Carvalho, construção dramática perto de emudecida, mas sempre à beira da implosão. No rosto ou no gesto, o actor torna todas as palavras supérfluas. A escassez de diálogos é fundamental para afiar o sentimento de prostração, a maligna espera pelo fim da ocupação, pela confirmação do “fim do império”. Seria interessante comparar toda esta força expressiva, áudio/visual, com o que falta ao mais recente título de Lucrecia Martel, Zama (2017). À argentina falta precisamente o elevado grau de palpabilidade – a transpiração, apetece escrever – da tragédia de um homem só, que vive esse seu desespero na ombreira da História.
Luís Mendonça
O Espectador Espantado (2016) de Edgar Pêra
O novo filme de Edgar Pêra [novo na medida em que depois deste já houve O Homem Pikante (2018) e em breve – no próximo LEFFEST – veremos os seus Caminhos Magnéticos (2018)] coloca uma pergunta a vários dos seus entrevistados que é: “o que é mais cinema, um jogo de futebol no grande ecrã ou o Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) no telemóvel?” O realizador não tem propriamente uma resposta, e sinceramente também não é bem a pergunta que mais lhe interessa. Serve no entanto a questão para interrogar sobre o que é afinal esse bicho estranho e em constante metamorfose chamado espectador de cinema. O filme parte da tese de doutoramento de Pêra, e inclui várias entrevistas a académicos, críticos e programadores de cinema feitas com esse propósito (Olaf Möller, Laura Mulvey, Laura Rascaroli, Eduardo Lourenço, Augusto M. Seabra, Guy Maddin, Fátima Chinita, ou F.J. Ossang). No entanto, Pêra também entrevista familiares seus e inclui até imagens do seu filho a gritar “CINEMA”. A fronteira entre o filme-tese e o filme intimista é algo que o filme explora, no sentido de encontrar respostas para a hipótese colocada, na senda do cinema ensaístico clássico que olha de si para o mundo e faz questão de exibir a armação das lentes.
Do ponto de vista formal (e é esse quase sempre o dado de maior interesse no seu cinema), O Espectador Espantado é um objecto hiper-activo, mesmo frenético — como todos os seus filmes. Pêra é, afinal, um realizador espantado, que se deslumbra uma e outra vez com as imensas possibilidades do cinema. Nesse sentido, a solução promovida pelo 3D de projectar entrevistas originalmente produzidas em duas dimensões sobre os assentos de uma sala de cinema, sobre corpos e sobre outras superfícies texturizadas remete para a ideia de um cinema que se projecta de modo diferente dentro de cada espectador. Se a ideia é boa, o filme não consegue escapar ao síndrome das cabeças falantes de documentários mais convencionais. A este respeito, parece-me que o recurso a excertos de todos os filmes anteriores do realizador, em 3D — Cinesapiens (2013), A Caverna (2015), Lisbon Revisited (2014) — e não só, converte este título num projecto costurado onde cada remendo tem um tom e uma cor distintas, o que não destoaria da obra do realizador não fosse o intuito académico do projecto em particular. Um filme estranho e algo perdido entre o pendor investigativo/pedagógico e o maravilhamento avant-garde.
Ricardo Vieira Lisboa
Joaquim (2017) de Marcelo Gomes
Estreado no festival de Berlim, esta co-produção luso-brasileira teve a sua ante-estreia portuguesa na Mostra de Cinemas Ibero-americanos. Realizado pelo brasileiro Marcelo Gomes, e com um elenco recheado de presenças portuguesas (Nuno Lopes, Diogo Dória, Isabel Zuaa, entre outros), é um filme que vem na onda contemporânea do filme de época feito no contexto de um cinema que promove uma revisão histórica e, igualmente, uma revisão do próprio género (longe dos academismos do filme de qualidade). Na verdade, esta operação de modernização do filme de época vem-se tornando cada vez mais recorrente e tem, nos tempos recentes, um ponto máximo em Zama (2017) de Lucrecia Martel. Uma das coisas interessantes no filme de Martel que este de Marcelo Gomes repete é o modo como o filme de época se mostra, afinal, como mera desculpa para os realizadores enveredarem por outros subgéneros. Para Martel era o filme de fantasmas e o survival horror, para Gomes é definitivamente o western.
Joaquim produz um olhar sobre o revolucionário-mártir Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier) a partir de um frustração de burguesia, que é naturalmente uma frustração de classe. Um retrato de uma figura histórica antes daquilo que lhe conferiu reconhecimento. Por arrasto, é também um retrato do colonialismo português aos olhos de hoje. Filmado entre uma câmara que se agarra aos corpos (e à lama e ao sangue) e outra que compõe e depura um naturalismo clássico, o filme só sobrevive ao seu olhar pedagógico-moderninho quando caminha – como já anunciara – pelas pisadas de John Huston [The Treasure of the Sierra Madre (O Tesouro da Sierra Madre, 1948)] e devém western garimpeiro sobre a cobiça e a loucura. Mas essa é só uma secção de um filme que procura encontrar na particularidade de um personagem (histórico) o veículo de um olhar (histórico) – e por aí se fica.
Ricardo Vieira Lisboa
Searching (Pesquisa Obsessiva, 2018) de Aneesh Chaganty
As expectativas eram altas, sobretudo porque o fenómeno do desktop cinema tem estado muito circunscrito ao género do terror. Ora, Searching é um clássico thriller, uma espécie de Missing (Missing – Desaparecido, 1982) 2.0, desenrolado entre as múltiplas janelas do computador pessoal do protagonista, ainda que não deixando de envolver, à la Redacted (Censurado, 2007), uma certa quantidade de dispositivos de vigilância. Um homem pesquisa obsessivamente, à procura de pistas sobre o aparente desaparecimento da sua filha. Searching desenrola-se nessa estranha subjectiva que pertence a todo o desktop cinema: espaço intermédio entre o olhar humano e o olhar da máquina, isto é, lugar de um olhar humano balizado pelos limites do código informático, de uma realidade que de virtual terá pouco. O dispositivo não é novo, já que filmes como o magnífico Unfriended (Desprotegido, 2014) ou o menos entusiasmante Open Windows (Janela Aberta, 2014) exploravam com alguma audácia a possibilidade de instalar o drama num interface. Entramos, portanto, no filme curiosos, mas cientes do que já foi feito.
Searching vai desenrolando a intriga de modo algo preguiçoso, como uma teia de mirabolantes acontecimentos. Twists atrás de twists vão sucedendo-se, como um novelo intrincado que, na realidade, tem pouco mais a oferecer sem ser o seu dispositivo de base – o meio é a mensagem, sim, mas não haja dúvidas de que esta obra de Annesh Chaganty aspira a um profundidade dramatica que fica longe de atingir. Tudo vai sendo dramaticamente devorado pelo próximo “truque” virtual, fazendo lembrar aquela regra, que tanto estorva, do filme de found footage de horror: é preciso justificar sempre porque é que o operador da câmara não pára de filmar. Pois aqui o filme, antes da filha do protagonista, nunca se liberta do sequestro, apresentando-se de princípio ao fim amarrado aos limites de um algo pueril “xadrez formal”. Para mais, sente-se que Aneesch, deslumbrado com as possibilidades do desktop cinema, está pouco consciente do que já foi feito antes neste âmbito. Basta compararmos Searching com a também recente sequela de Unfriended, Unfriended: Dark Web (2018), para percebermos como este filme carecia urgentemente de um refresh. Nem o esforço e presença do actor John Cho, que vimos recentemente nessa pérola chamada Columbus (2017), conseguem resgatar este Searching do nosso trash virtual.
Luís Mendonça
Mandy (2018) de Panos Cosmatos
Um amigo falava-me de Mandy como sendo um filme que se ressente da falta de história. A gasolina narrativa acaba-se-lhe cedo de mais. Entenderia o que quis dizer se Mandy fosse um filme de cinema, mas Panos Cosmatos fez um filme de música, martelado para o formato canção. Um tema longo de 120 sombrios minutos que canta a morte, a vingança e a destruição, ancorado no universo do Doom Metal e no cinema de série B de culto. Panos Cosmatos celebra a música e os filmes de consumo alternativo feitos no tempo em que este realizador era criança. Ele pretende tornar viva essa experiência no tempo actual. Trata-se de um indivíduo romântico e nostálgico certamente. Mandy não se limita a ser um exercício de estilo. Nota-se o amor genuíno para com os vários elementos que o compõem, e até a escolha de Nicolas Cage para protagonista não se limita à condição de trunfo para desbloquear a produção ou assegurar bilheteira. Dentro da categoria dos actores ainda populares e de persona fílmica extrema, Cage garante a energia e o carisma necessários embora seja também uma fera difícil de domar e que pode tomar conta do filme, como em parte é o que sucede com Mandy.
A personagem de Cage chama-se Red, tal como o título álbum dos King Crimson onde Cosmatos foi buscar a canção de abertura, o belíssimo Starless. Daí para a frente tudo o que é do reino da música deve-se ao malogrado Jóhann Jóhannsson e ao seu ambientalismo pneumático, denso e grave. Mandy apresenta ainda uma divisão por capítulos de que não nos apercebemos terem grande distinção entre si – mas que serve para dar mais um apontamento gráfico, nos títulos, relativo ao género que da música ocupa o cinema – uma vez que o filme se desenrola numa lógica de pesadelo instalado onde as cores do mundo raras vezes surgem como as vemos, distorcidas que estão com verdes, amarelos e azuis intensos, que dão conta da intervenção do Mal nas vidas de Red e Mandy, expulsos do seu idílio matrimonial por capricho do líder de uma seita de adoradores do Anticristo, que quer juntar Mandy ao seu séquito de concubinas. Desfeito o par, pela morte pelo fogo de um dos elementos, e fracassada a crucificação do madeireiro Red, a resposta seguir-se-á alucinada e até à sangria de todos os vilões, homens e mulheres. Red percorre este trajecto de insanidade e aniquilação que só poderia ser purgado com o sangue dos outros. Não existe nada mais Doom Metal do que isto, a queda de um homem bom condenado a viver um destino irreparável.
Ricardo Gross