Perante uma oferta tão rica e, palavra-chave para a direcção do Doclisboa, “desafiante”, a pergunta será: “who you gonna call?” Desde logo, amigos cinéfilos, aqueles que estiverem mais ou menos a par das pérolas escondidas do cinema documental passado ou contemporâneo. Esses sem dúvida que merecerão uma chamada. Também podemos, no entanto, confiar no nosso mais canónico sentido de orientação e apostar seguro, nos grandes realizadores do hoje e do ontem. Essa será a opção mais conservadora, que condiz menos com a atitude que este festival pretende promover, que se consubstancia num certo gosto pelo risco e pela aventura. Por isso, devemos temperar o nosso percurso nesta programação combinando descoberta e o reencontro com as nossas “afinidades electivas”.
Olho para o programa do Doclisboa 2018 e a minha cabeça organiza os títulos que quero ver deste modo: documentários contemporâneos a não perder por causa do seu conteúdo, citando a directora do festival, Cíntia Gil, “estético-político”, em que se incluem as mais frescas propostas do cinema português; filmes de retrospectivas que oferecem oportunidades de uma vida (que são “agora ou nunca”); filmes que matam a curiosidade sobre aspectos da vida e obra de cineastas da nossa predilecção e… Não, chega de organizar. Vamos já, já começar por aí, por esses reencontros com alguns heróis da nossa cinefilia. Esta edição é generosa em matéria de (re)visitações cinéfilas. Brisseau – 251, Marcadet’s Street (2018), de Laurent Achard, é um regresso a um espaço que já conhecemos bem: a casa do “polémico” realizador francês Jean-Claude Brisseau. Essa casa foi décor dos seus dois últimos filmes, espaço que este herdeiro de Bresson e Bergman tem ocupado com narrativas de amor e exorcismo. Fantasmas à parte (será que nos podemos ver livres deles?), neste filme de Achard são os amigos de Brisseau que o visitam para falar de tudo: da infância, da passagem do tempo e, está claro, do cinema. Este título integra a notável série Cinéastes de notre temps do entretanto falecido André S. Labarthe.
Olhemos agora cá para casa e para o cinema de Jorge Cramez, um dos nomes mais omnipresentes do cinema português dos últimos trinta anos. Trabalhou, como assistente de realização ou anotador, com nomes tão importantes como José Álvaro Morais, Teresa Villaverde e Fernando Lopes. Actos de Cinema (2018) é um filme de memórias de rodagem, uma janela aberta para a história recente do cinema português. Cramez, que nesta edição do festival é presença dupla que se faz notar, teoriza sobre o acto cinematográfico em Antecâmara (2018), um filme-ensaio que se adivinha obrigatório. Paulo Branco, produtor que entre “uma polémica aqui e uma polémica ali” veio cimentando o seu nome na história do cinema de autor europeu. Também a ele é dedicado um filme: Deux, trois fois Paulo Branco, à la rencontre d’un producteur de légendes (2018) de Boris Nicot atravessa o cinema de realizadores como Chantal Akerman, João César Monteiro, Manoel de Oliviera e Raoul Ruiz pelo ângulo do carismático produtor português.
Olhando para os pesos-pesados que são sempre incontornáveis num festival com a tradição de qualidade, verdadeiramente pertinaz, de um Doclisboa, apetece-nos perguntar: era possível um Doclisboa sem Wang Bing? Não, claro que não. Com 8 horas e 15 minutos, Dead Souls (2018), no seguimento de outros filmes que os portugueses conhecem do documentarista chinês, tal como Jiabiangou (A Fossa, 2010), a câmara de Bing trabalha sobre a memória traumática da Revolução Cultural de Mao. Promete esta ser uma experiência de endurance a todos os níveis desafiante. Outro documentarista habitué, amante da duração, é Frederick Wiseman. O seu Monrovia, Indiana (2018) desenha o retrato de uma comunidade agrícola nessa cidade americana. Espera-se daqui toda a capacidade observacional que reconhecemos em Wiseman, uma que nos encaminha subtilmente do homem anónimo, neste caso, inserido numa comunidade com um modus vivendi particular, para o retrato de todo um país.
Mais uma presença incontornável, nome que tem lugar cativo na programação do Doclisboa: o do cambojano Rithy Panh. Desta vez, temos oportunidade de ver mais uma escavação sobre a memória e o trauma. Depois do estreado em Portugal L’image manquante (A Imagem Que Falta, 2013), Panh prossegue a dolorosa revisitação do tema do genocídio levado a cabo pelo brutal regime dos Khmer Rouge. Por outro lado, estamos muito contentes com a nova visita de James Benning a Portugal para apresentar três dos seus filmes, destacando-se, aos meus olhos, a oportunidade de ver, projectado em película, nas condições certas, o seminal 11 x 14 (1977). Benning mostrará ainda projectos mais recentes como L. Cohen (2017) e Measuring Change (2016). Lições de cinema que nos permitirão regular os sentidos, para voltarmos todos a ver e ouvir – como se calhar um dia vimos e ouvimos – o tempo e o lugar.
Estes são os nomes mais seguros, os grandes mestres com a chancela Doclisboa, mas também há aqueles que, significativamente mais verdes nalguns casos, procuram fazer ouvir a sua voz. Da colheita nacional, destacaria a longa-metragem de Leonor Teles, Terra Franca (2018), história de um pescador chamado Albertino Lobo – aparece este filme, no seu trailer, com a frescura e curiosidade pelo outro que eram características do seu revigorante primeiro filme, a curta-metragem Rhoma Acans (2012). Salomé Lamas, uma das mais prolíficas e multifacetadas cineastas da sua geração, apresenta Extinção (2018), filme que tem como motivo uma viagem até à Rússia para revisitar “o imaginário colectivo da União Soviética”. Renata Sancho, com uma longa carreira como montadora e anotadora de vários cineastas portugueses, assina um documentário, Avenida Almirante Reis em 3 Andamentos (2018), que se debruça sobre essa verdadeira “máquina do tempo” que é a Avenida Almirante Reis, em Lisboa. Destaco ainda três títulos nacionais: Turno do Dia (2018) de Pedro Florêncio, documentário de observação sobre um turno do dia na linha de emergência 112; A Volta ao Mundo quando tinhas 30 anos (2018) de Aya Koretzky, retrato intimista do pai da realizadora aquando da viagem que fez, aos 30 anos, à volta do mundo a partir do Japão; e, last but not the least, Objetos Entre Nós (2018) de Júlio Alves, reflexão sobre a fotografia, o cinema e… Roberto Rossellini conduzida pelo Professor José Bragança de Miranda.
Da colheita internacional, chegam-me ao ouvido algumas recomendações. A mais efusiva diz respeito ao filme do romeno Corneliu Porumboiu que encerra o festival. Em Infinite Football (2018), Porumboiu apresenta ao mundo um desporto novo nascido de uma criativa alteração das regras do “desporto rei”. Deram que falar as pressões levadas a cabo pelas Embaixadas da Turquia e a da Ucrânia sobre aspectos da programação relacionados com a passagem de alguns filmes. Their own Republic (2018) foi acusado pela Embaixada da Ucrânia de ser pró-russo, patrocinando os ideais de uma organização terrorista. Yol: The Full Version (2017), que retoma a Palma de Ouro turca Yol (Yol – Licença Precária, 1982), e Armenia, Cradle of Humanity (1919-1923), filme restaurado recentemente (pérola a descobrir?) que documenta os dias que se seguiram ao genocídio arménio, motivaram desconforto por parte da Embaixada da Turquia, no que é, desde já, um convite para vermos estes filmes – eis uma boa resposta a pressões inadmissíveis desta natureza. Que a alegada impertinência política destes filme se faça coincidir com a nossa nada neutral pertinácia. A pertinácia dos espectadores críticos, curiosos e livres.
Ainda no âmbito das retrospectivas, não podia deixar de referir aquela que é dedicada ao documentarista colombiano Luis Ospina. O Doclisboa escreve que “As suas criações artísticas constituíram o cerne da efervescência cultural e política do final dos anos 1970 na Colômbia e ainda hoje têm repercussão.” Ospina vem a Portugal apresentar os seus filmes e ainda uma carta branca. Tudo na Cinemateca Portuguesa. Olhando ainda para trás, teremos oportunidade de ver a obra documental, libelo contra a pena de morte, que projectou pela primeira vez o nome de William Friedkin, realizador de The Exorcist (O Exorcista, 1973): The People vs. Paul Crump (1962). Será uma oportunidade de atestar uma certa raiz documental da Nova Hollywood. Há aquela frase – que o leitor me dirá, e com razão, que é hoje insuportavelmente misógina – de que “por trás de um grande homem, está sempre uma grande mulher”. Resta saber, aqui, no Doclisboa, se “por trás de um grande ficcionista, está sempre um grande documentarista”. Ou vice-versa.