A cobertura ao Doclisboa encerra com estes últimos cinco títulos que aqui trago. Não se trata esta forçosamente de uma escolha “dos melhores filmes” que vi no festival, mas acima de tudo de obras que estabeleceram diálogos interessantes comigo e entre si. Como já fiz notar na primeira parte desta cobertura, desta vez privilegiei a produção portuguesa, dado esta marcar presença em força nesta edição do festival. Os últimos cinco títulos desta colheita confluem para a ideia de paisagem. Ainda assim, estamos sempre em zonas cinzentas, de fronteira, entre quem somos e o lugar que ocupamos: de um lugar confinado, onde se vive o drama dos outros, respondendo ao socorro, 24 sobre 24 horas, até à paisagem mais inóspita da América que se oferece, como um ready-made, à apreciação dos nossos sentidos, para a qual, enfim, somos todos olhos e ouvidos. Transitamos, assim, às vezes em vai-e-vem, das pessoas para a paisagem. Mas vamos por partes.
Em Turno do Dia (2018) somos jogados, sem grande preparação, para uma intensa e exigente jornada de desespero e sofrimento numa central de emergências 112, local remoto, “retirado do mundo”, onde se concentram os piores dramas ao minuto – e o tempo é tudo aqui. Pedro Florêncio filma, em continuidade, a rotina dos operadores, acudindo quem está do lado de lá, chamada após chamada. Na primeira parte desta cobertura, falei sobre a importância dos objectos, tal como explanada por José Bragança de Miranda na curta-metragem Objetos Entre Nós (2018). Ora, o objecto principal aqui, como o que refere o filósofo a propósito de um episódio de L’amore (O Amor, 1948) de Roberto Rossellini, é o telefone. Florêncio, como Rossellini, só nos dá acesso à resposta. Mas as semelhanças ficam-se por aqui, porque isto não é ficção.
Em termos simples, digo: Turno do Dia é um documentário que deve ser visto por todos os cidadãos portugueses. É obrigatório porque saímos desta jornada elucidados sobre o protocolo de emergência (o propósito de cada pedido de informação e a maneira mais adequada como devemos reagir ao que nos é solicitado pelo operador). Por outro lado, Florêncio não se limita a produzir um filme pedagógico sobre o 112 tal como não é neutro na forma como documenta o trabalho destes homens e mulheres. Saímos de Turno do Dia mais bem informados, mas também inquietados com o que vemos. Seja por causa do efeito erosivo da rotina, a exigência da profissão, as condições não ideais de trabalho ou a sobrecarga esgotante do mesmo, não será indiferente ao espectador-cidadão o modo ligeiro como alguns operadores encaram a sua missão. Há uma cena em que um deles, que não perderá a oportunidade mais à frente de lançar comentários depreciativos a propósito de quem acabara de pedir socorro, vai dando pequenas trincas numa maçã durante uma chamada, respondendo ora desinteressadamente, ora com duas pedras na mão. Fala aqui o cidadão, mas, sublinhe-se, Turno do Dia também tem “sumo cinematográfico”. A câmara de Florêncio alterna planos estáticos, quase wisemanianos, com súbitas panorâmicas, produzindo, por vezes no mesmo plano, a sensação de um corte em continuidade, como se a câmara fosse aqui um agente activo, desperto, ainda que eivado de um assinalável rigor estético. Em suma, seja na pele de cinéfilo ou de cidadão, Turno do Dia é matéria obrigatória.
Saimos do confinamento de uma central de emergências e seguimos para as ruas. Também aqui os papéis se dividem: não tanto entre cidadão e cinéfilo, mas mais rigorosamente entre alfacinha e o espectador mais atento. Porque o filme de Renata Sancho, Avenida Almirante Reis em 3 Andamentos (2018), desarquiva a história de um homem, o almirante que participou – com desfecho trágico – na revolução de 5 de Outubro de 1910, e que viria a dar nome a uma das mais importantes avenidas da cidade de Lisboa. Da pessoa para o lugar, vamos dando saltos na história, apoiados em imagens de arquivo provindas de fontes várias, sinal de um trabalho de pesquisa industrioso levado a cabo pela realizadora. Estes “andamentos” da história atingem o seu ponto culminante nas imagens a cores, e mudas, das manifestações do 1.º de Maio, em 1974. Este é, quanto a mim, o momento mais comovente do filme: as imagens, em perfeitas condições, mostram uma população em estado de euforia, manifestando-se a favor das liberdades conquistadas, aspirando à utopia ou às liberdades prometidas. Na paisagem, avistamos o antigo Cinema Império, sala mítica de Lisboa que está há muito – demasiado – tempo ocupada pela sinistra Igreja Universal do Reino de Deus. Naquele dia de jubilo e esperança, Bronenosets Potemkin (O Couraçado de Potemkine, 1925) estava em cartaz. O país respirava outros ares, definitivamente. Entre a multidão, vemos ainda um bem viçoso João César Monteiro que por ali passa, mais ou menos anónimo. A antologia é memorável e aquece a alma daqueles que só viveram a Revolução através de relatos ou de imagens de arquivo mil vezes vistas.
Depois, o filme de Renata Sancho mergulha, e detém-se, no presente. A câmara da realizadora mal se mexe. Os sucessivos quadros fílmicos revelam uma cidade entre o passado e o presente: as lojas antigas que persistem a par de um novo tipo de comércio, garantido sobretudo pela população imigrante, maioritariamente asiática, que vem trazer outra diversidade à paisagem mais tradicional da cidade. Pensar-se-ia que esta câmara observacional, atenta mas um pouco distante, tende a olhar com algum desencanto para o fenómeno da multiculturalidade, tal o modo como ele “invadiu” a cidade, descaracterizando-a – não foi por isso que o povo foi para as ruas naquele dia soalheiro, no remoto ano de 1974… No entanto, parece-me que o filme só provocará esse comentário em quem não consegue relativizar a saudade por essa Lisboa que não volta mais. Aliás, esta câmara, mesmo que colocada numa distância segura, não deixa de capturar pequenas interacções que conferem um particular calor humano a esta nova população que ocupa a avenida (falo em particular do que parecem ser os festejos do ano novo chinês, dos encontros familiares nos restaurantes da zona ou, em particular, da conversa filmada candidamente numa dessas lojas tipo “dos trezentos”).
Há uma tendência exaustiva neste retrato da Avenida Almirante Reis que dá a qualquer lisboeta motivos de regozijo. Neste ponto, o olhar “macro” de Sancho aproxima-se do olhar, distante mas sempre curioso, do veteraníssimo e tutelar documentarista norte-americano Frederick Wiseman, nomeadamente no seu mais recente filme, mostrado nesta edição do festival, Monrovia, Indiana (2018). Desde logo, nos dois casos, a câmara nunca se limita a filmar as fachadas: se se filma, por exemplo, um restaurante, tem de se mostrar a cozinha. Frederick Wiseman regressa com a bem ambiciosa proposta de retratar não propriamente uma avenida, nem sequer, como lhe é hábito, uma dada instituição, autopsiando e dando a ver o modo do seu funcionamento, do seu devir. Aqui, Wiseman vai olhar para o “big picture”, procurando meter toda uma comunidade num filme apenas. Monrovia, Indiana é um levantamento, porta a porta, de toda a actividade que preenche os dias deste condado da América profunda, que – ele não diz, mas sabemos – hoje também é sinónimo de “Trump Country”. Visitamos o liceu, paramos em várias lojas, nomeadamente uma que vende todo o tipo de arsenal bélico, observamos o trabalho agrícola, maioritariamente automatizado, que sustenta a comunidade, assistimos a reuniões municipais onde se debatem os problemas ligados à eventual expansão demográfica da cidade, participamos em festividades locais… enfim, nesta tentativa muito “macro” de encapsular em duas horas e meia uma cidade inteira, quase que nos tornamos – nós, espectadores – em “monrovians”. É isto e não é isto.
A distância prudente da câmara de Wiseman não tem o calor, apesar de tudo, da câmara de Sancho. O seu olhar, algo azedo, nunca suprime completamente a distância que nos faz olhar de fora para dentro. A familiaridade com esta gente, e este way of life, nunca é conseguida, porque, no fundo, não é desejada. Esse lado muito pouco hospitaleiro do filme de Wiseman é um pau de dois bicos, um nó górdio que acaba por fatalmente transformar este exercício num gesto de aproveitamento político. Olhar sobre o consumo, o tédio e a fealdade de um povo, Monrovia, Indiana chega a ser de uma desconfortável implacabilidade com as pessoas que retrata. De tal modo que o retrato acaba por ser subsidiário a essa vontade de fazer troça. Pior: de provocar, insidiosamente, normalmente em contra-campo, o riso escarninho, mesmo nos contextos mais íntimos e solenes, em que, apetece dizer, nenhum de nós está a salvo da nossa frágil, feia e ridícula condição humana. E aqui estou a falar da perturbante sequência do funeral que (ex)termina o filme. Este é mostrado sem o mínimo de pudor – bem pelo contrário, procurando sugerir o comentário de sátira pequena – no que é um dos pontos mais baixos – demasiado fáceis, perto de desumanos – na filmografia deste grande realizador.
Longe das comunidades devidamente delimitadas, cujo dia-a-dia vai apodrecendo lentamente uma certa ideia de pátria, Salomé Lamas, das mais prolíficas cineastas do momento, ingressa em mais uma “investigação” sobre identidade, lonjura, corpo e paisagem. Extinção (2018) visita um conjunto de países de fronteira da antiga União Soviética (Bulgária, Ucrânia, Moldávia…) para se interrogar sobre o que é – e o que faz – a identidade nacional. O filme constitui-se num permanente “espaço entre” que é, em suma, o lugar onde Salomé tem desenvolvido a sua linguagem de artista-investigadora ou investigadora-artista. Esta obra constitui um passo importante no sentido da sedimentação desta linguagem – sinal de que as peças do puzzle começam a encaixar é o facto de Salomé integrar nos últimos minutos de Extinção planos de um dos seus primeiros filmes, Encounters with Landscape (x 3) (2012). Ao mesmo tempo, o protagonista do filme, que é o guia desta viagem, habita uma espécie de “terra de ninguém” identitária, afirmando-se cidadão de um país não reconhecido pelas organizações internacionais, a Transnístria. Apesar da ausência de perspectivas de vida aí, ele não quer viver em mais lado nenhum no mundo, porque, afirma, talvez seja um patriota. Salomé vai construindo um mundo seu a partir destes mundos muito reais, que “existem sem existir”, nos nossos mapas e nos nossos noticiários – é daqui que vem a sensação (no preto-e-branco como nos vários dispositivos dramáticos) de estarmos a assistir a uma espécie de irredimível thriller sci-fi? Da pessoa para a paisagem, dos encontros com uma paisagem em auto-dissolução ao retrato de um qualquer “ninguém”. Retrato que, relutante mas poderosamente, se dá a ver, e é nele que o cinema de Salomé vai ganhando definição.
Wiseman não foi o único “monstro sagrado” a dar sinais de si nesta edição do festival. James Benning veio a Lisboa para nos pôr a pensar sobre a paisagem. Uma paisagem tão inóspita quanto à beira da catástrofe, que não precisa de se sugerir contra as pessoas, porque se desenha no “espaço entre” que simultaneamente nos liga e separa do mundo. A sessão dupla que foi consagrada a Benning teve como objecto um encontro com duas paisagens: Measuring Change (2016) e L. Cohen (2018). Interessa-me destacar aqui este último filme, ainda que o primeiro – obra de arte de uma obra de arte – nos faça relançar o olhar – impondo novas interrogações quase dez anos após o menor Casting a Glance (2007) – sobre a obra-prima da land art de Robert Smithson, Spiral Jetty. L. Cohen é a entrada do cinema de Benning no domínio das paisagens, como o próprio designou durante a apresentação, unremarkable. São cerca de 40 minutos de um plano fixo apontado para uma paisagem árida da América profunda, verdadeira wasteland onde a presença humana se faz representar no lixo que ali se deposita.
Nesta paisagem absolutamente “não-extraordinária”, o olho tem ainda assim de vaguear, mas como podemos ocupar uma paisagem que, mais do que estar abandonada, é um lugar de abandono? Como nos devemos colocar, na nossa atenção como no nosso corpo, ante tal rejeição estética? É aqui que entra a potência – lugar do extraordinário, do remarkable! – do olhar de James Benning. O título do primeiro filme comenta o do segundo: é na pequena “mudança”, na micro-transformação, que o que era abandono ou rejeição aparentemente unremarkable se eleva sobre a terra e ganha a dimensão de uma grandiosa escultura perceptiva-sensitiva. Um eclipse solar produz efeitos espantosos sobre a imagem. Ele afirma-se como um sublime happening que só seria possível precisamente sobre essa paisagem em branco, essa paisagem-tela-em-branco. A seguir a este que foi o momento mais alto do meu Doclisboa, outra inscrição na paisagem: a da música de Leonard Cohen que – típica blague à la Benning – justifica o título, sim, mas vai mais além, porque consubstancia a experiência em curso: “The light came through the window. Straight from the sun above. And so inside my little room. There plunged the rays of love.” A letra de Love Itself neste filme de Benning é eloquente a transmitir o grandioso milagre de luz e ausência de luz (extinção!) que todos nós – a começar pela câmara – testemunhámos instantes antes. Estrondoso.