A imagem deve poder exprimir a sensação de odor e a sensação de tacto. Um filme deve poder ser mais do que a simples expressão psicológica. É preciso que as palavras e os gestos correspondam exactamente ao sentimento das personagens. É preciso emoção e não comentário.
Kenji Mizoguchi em entrevista a Hajime Takizawa e Eiga Hyoron (1952)
As retinas e os tímpanos dos cinéfilos trabalham de modos misteriosos, sempre dentro de uma ideia de interferência. Quanto mais se vê mais se confunde e o efeito cumulativo das imagens e dos sons segue por vias estranhas quando a sua afluência é demasiado rica. Os olhos metamorfoseiam o ecrã no reflexo das memórias, e a memória corrói os fragmentos captados por esses olhos doentes. O que se vê é já apenas (apenas?) perspectivas entre códigos visuais, porque o que fica, muitas vezes, é a relação entre as coisas e menos as coisas elas mesmas. E esse é um problema, porque os filmes existem na sua materialidade (agora digital) de fotogramas e hertzs que trabalham a comunicação entre si e a estética da composição em cada um. Talvez o que melhor se pode dizer sobre First Man (O Primeiro Homem na Lua, 2018) de Damien Chazelle é que é, exactamente, um filme que se concretiza na sua dimensão cinética, isto é, um filme que trabalha o som e a plasticidade da imagem por dentro. O grão e a anti-composição dos planos tremidos caminham para uma abstracção quase pontilhista e a sonoplastia desenvolve-se num trecho arrebatador que a exibição numa sala IMAX transforma numa experiência sónica limite.
Aliás, poucos minutos tinham passado do início do filme e a minha memória logo começou a infectar-me o olhar com aquela boutade de Godard sobre Nouvelle Vague (1990): sem som é bom, mas sem imagem é ainda melhor. Apeteceu-me fechar os olhos mal First Man havia começado, porque aquela paisagem sonora de metal tremelicando, parafusos saltitando, um homem arfando, um motor rugindo e o vento correndo, em nada encontrava equivalente à altura naquelas imagens que se projectavam no ecrã. Ao longo do filme, o som parece ser mais importante que a imagem, ao ponto de esta se tornar meramente ilustrativa de um trabalho tremendo de sonfonia – pelo menos nos momentos de viagens em aeronaves, que tomam grande parte da acção. Há portanto qualquer coisa de desnecessário naquela câmara, naqueles grandes planos de rostos suados, de monitores com números que ora decrescem, ora crescem velozmente. A imagem torna-se, inadvertidamente, num adorno supérfluo, subalternizada ao som (e depois, e de forma mais dramática, ao episódio histórico que retrata e à biografia que romantiza). E sublinhe-se o “inadvertidamente”, já que vários cineastas assumiram para os seus filmes uma relação de inferioridade da imagem para com o som, vide os filmes dos últimos anos de Godard, a Branca de Neve (2000) de João César Monteiro, Bleu (1993) de Derek Jarman ou o recente BARULHO, ECLIPSE (2017) de Ico Costa. Curioso, e por isto falava de olhos doentes, tive uma reacção semelhante com Dunkirk (2017) – visto na mesma sala -, só que dessa vez não ficou o desejo de fechar os olhos mas sim de me concentrar nos cantos dos enquadramentos, porque deles (ou com eles) se compunha um filme de água, areia e céu que era bem mais cativante que aquele reenactment anti-patético – e que expressão tão apropriada para este novo filme de Chazelle…
First Man é um filme onde a sobriedade disfarça o vazio emocional de um personagem que se faz vazio emocional de um filme inteiro.
Os primeiros minutos de First Man são de facto sintomáticos das duas horas e meia que se seguirão: uma montagem alternada (e agitada) entre o rosto, em plano aproximado, de Ryan Gosling e planos subjectivos deste, observando o tablier rudimentar de uma aeronave. Defronte de um dos eventos mais importante, marcantes e icónicos do século XX, o realizador optou pela máxima subjectivação, descrevendo a primeira viagem tripulada à superfície lunar segundo o ponto de vista (literalmente) do seu protagonista, Neil Armstrong. A subjectividade pode ser uma extraordinária e produtiva porta de entrada na mitologia da corrida espacial (que o cinema, a televisão e a literatura já sobejamente trataram), a questão prende-se em perceber que subjectividade. Armstrong foi de facto o primeiro homem na Lua, mas que importa a sua perspectiva? Será o seu protagonismo histórico suficiente para suportar o pathos de um filme que cavalga a sua figura do primeiro ao último minuto? A resposta é… não.
Neil Armstrong é um homem desinteressante que fez um feito fantástico, mas não passa a ser mais interessante por isso. O realizador e o argumentista (que adaptam fielmente a biografia do astronauta, por James R. Hansen) parecem ter consciência disso e procuram – forçadamente – introduzir o luto na descrição do seu personagem (logo após os créditos de abertura) de modo a criar nele um qualquer vestígio de profundidade dramática. Esse gancho é tão obviamente instrumental na construção narrativa que a solução final de encontrar nas profundezas do universo as profundezas da intimidade acaba por se tornar auto-paródica do próprio género da ficção-científica espacial – como, de resto, acontecia também com Interstellar (2014), de novo Nolan…
Esta tendência sombria do filme não deixa de ser surpreendente num cineasta que trabalhou em Whiplash (Nos Limites, 2014) as “interpretações excessivas (também conhecidas por over-acting)” e em La La Land (La La Land: Melodia de Amor, 2016) “essa forma de esquecimento hiper-romantizada” chamada cinefilia. Over e hiper são palavras que não cabem em First Man, um filme onde a sobriedade disfarça o vazio emocional de um personagem que se faz vazio emocional de um filme inteiro. Daí que se sinta essa subalternização perante a imagem, porque nela só resta um modelo bressoniano perdido numa grande produção de sound and fury tecnológico. Como diz a personagem mais digna e estóica de todo o filme, Janet Armstrong, a mulher do protagonista interpretada por Claire Foy, “vocês não passam de um bando de rapazes a brincar com modelos feitos de balsa”. Há, realmente, qualquer coisa de brincadeira, de faz-de-conta, neste filme onde grande parte do drama parece postiço, como postiço parecem os caixotes com janelas diminutas onde parte da acção decorre, e também postiço é o silêncio de Gosling que segue a máxima de que calado é um poeta ou, ainda, os deslumbres malickianos que confirmam que mais postiço era impossível. É preciso emoção e não comentário.