É um dos filmes do ano. O monumental Happy Hour (Happy Hour: Hora Feliz, 2015), filme da consagração do jovem cineasta japonês Ryûsuke Hamaguchi, estreia-se nas salas portuguesas dividido em três sessões separadas – já havia sido assim em França, onde o filme foi recebido com vivas e alvíssaras. O espectador não deve recear esta experiência: o filme passa por nós como, fora da sala de cinema, a vida que se desenrola à nossa frente. As quatro mulheres que o protagonizam estão ali no ecrã, mas inteiramente connosco, na nossa presença. Os walshianos Ricardo Vieira Lisboa, Luís Mendonça e Miguel Patrício habitaram de corpo e alma estas horas felizes, fizeram deste filme de Hamaguchi a sua casa. Como um edifício, existem os alicerces, os apartamentos e o telhado. Unido por esta divisão quase arquitectónica, este trio walshiano escreve sobre a obra singular que hoje se estreia no país.
A graça de Happy Hour está intimamente ligada à sua longa duração. E uso a palavra graça no sentido lúdico mas também no sentido da elegância, isto porque é exactamente através do tempo que o filme de Ryûsuke Hamaguchi descobre (ou melhor, revela) os interiores da sua própria construção. Explico-me, as mais de cinco horas de Happy Hour têm o condão de trabalhar quase sempre no sentido da auto-reflexão, comentando a própria estrutura do filme sempre de modos muito discretos (negando demonstrações vistosas de virtuosismo), e dando também oportunidade a personagens secundários de ocuparem mais à frente o protagonismo (e vice-versa). Em particular, os referidos momento auto-reflexivos acontecem, de forma mais marcada, no “workshop de equilíbrio” na primeira parte das três em que o filme está a ser distribuído, ou já na última das partes, aquando da leitura de um livro de contos e sucessiva discussão e comentário crítico. Estes momentos parecem colocar em transparência as intenções do realizador, fazendo projectar nos seus personagens (em todos, de forma muito dispersa) os dilemas e respectivas soluções que o próprio cineasta enfrentou no seu processo criativo. Há, por isso, uma espécie de constante consciencialização das múltiplas funções narrativas a que Hamaguchi recorre, as quais se evidenciam nesse jogos de espelhos que o filme joga consigo mesmo. Mais do que isso, a longa duração do projecto permite também um trabalho sobre a antecipação, onde os vários motivos (narrativos mas também visuais, nomeadamente de iluminação e composição) se antevêem nas primeiras horas, materializando-se definitivamente apenas no final.
Parece-me que Happy Hour trabalha a relação entre um ideal (de amizade, de relação conjugal, de realização pessoal, de identidade…) e a incapacidade ou grande dificuldade de o alcançar.
Assim sendo, esta primeira parte apresenta-se (tendo visto o filme completo) como uma distendida e plácida introdução ao “terreno de batalha” que as horas seguintes providenciarão. Sendo que a cristalização deste jogo de reflexos antecipatórios encontra-se, como dizia, no “worskhop de equilíbrio”. Nele descobrem-se tropos e metáforas que regressarão ao longo do filme em diferentes declinações, a saber: a centralidade da “comunication”; o desafio do equilíbrio e o consequente desequilíbrio (manifestado na figura do professor/artista que é simultânea e paradoxalmente o mestre do equilíbrio e o maior agente de desestabilização emocional do filme, ele próprio esvaziado de emoções, como se explica muito mais adiante); a distensão do tempo de uma cena feita segundo o natural correr da luminosidade solar (inaugura-se aqui o enquadramento de um personagem em contra-luz, frente a uma janela, ao final do dia – que encontrará o seu máximo dramatismo num confronto conjugal da segunda parte); a ideia de coesão grupal como algo sempre à beira da desintegração; e, por fim, a longa sequência de jantar que deveria celebrar o anterior momento de alegria mas serve apenas para colocar em cima da mesa – literalmente – os conflitos acordados durante essa “feliz” interacção. De facto, o momento que mais me fica desta primeira parte (posta em perspectiva com as outras duas) é exactamente aquele em que o professor equilibra uma cadeira sobre uma das suas pernas e pede aos alunos para que repitam o exercício, o que resulta no falhanço redondo de todos eles. Parece-me que as mais de cinco horas de Happy Hour trabalham este motivo uma e outra vez: a relação entre um ideal (de amizade, de relação conjugal, de realização pessoal, de identidade…) e a incapacidade ou grande dificuldade de o alcançar. Mais que isso, o desejo de chegar a esse ideal vê-se frustrado repetidamente por implicar uma situação de instabilidade a que se acrescenta uma redobrada fragilidade emocional daqueles que procuram uma solução para a apatia dos seus quotidianos. No fundo, é possível resumir o filme a partir desse exercício feito metáfora: para combater a estagnação das quatro pernas poisadas no solo os personagens procuram a elegância do equilíbrio de forças numa só perna, acabando invariavelmente no chão, estendidos ao comprido, sob o olhar de um mestre prestidigitador (o realizador?).
Ricardo Vieira Lisboa
Chegamos à segunda parte ainda a apalpar terreno, à procura de um chão firme que nos nos faça habitar, se assim for possível, todo este edifício dramático. Se a primeira parte se revelará retroactivamente a mais relevante – as bases de um filme que tem a fluência de um rio e o rigor estrutural de uma obra arquitectónica -, esta segunda parte é fundamental para nos agarrar emocionalmente. Antes estivemos de facto a apalpar: a sentir os corpos, a ouvir “as entranhas”, naquele estranho workshop. Portanto, estávamos, de facto, à procura de algo. Esse “algo” é encontrado no seio das relações afectivas, com aquela suavidade sem aparente esforço subjacente que caracteriza a obra no seu conjunto. Entramos, assim, pela porta escancarada das relações familiares; mergulhamos na história de um divórcio e de uma criança indesejada no seio de um casal adolescente pouco ciente do impacto das suas acções. No fim, dá-se a despedida – das mais belas que o cinema nos ofereceu – entre os protagonistas dessas duas histórias, ou seja, e recapitulando, entre a mulher que busca infantilmente (?) a ruptura matrimonial e o rapaz que enfrenta problemas de gente grande (?).
O filme avança, como que puxado pelas águas agitadas do íntimo, no sentido da sua progressão dramática.
Se a primeira parte investe numa concentração espacial, no espaço do workshop, esta segunda parte flui horizontalmente na direcção do interior das personagens, obriga-as a darem mais de si, a pedirem perdão ou a mostrarem as suas fragilidades. Portanto, elas erram em sentido duplo, viajando no espaço e perdendo-se – e isso magoa – nos seus próprios erros. As mini férias nas termas, onde as quatro amigas estarão juntas pela última vez (no filme), servem de embalo para o que vem aí: o filme avança, como que puxado pelas águas agitadas do íntimo, no sentido da sua progressão dramática. A conversa entre mãe e sogra depois devém um diálogo cúmplice, mas tímido, entre mãe e filho. Este continuum de conversas entra em nós tão suavemente que parece que tudo é filmado num único travelling. Mas não: há découpage, só que o movimento do filme é o de um sereno caminhar em direcção a um primeiro desfecho. Esse primeiro desfecho tem lugar no porto. O gesto culminante é o da despedida entre a amiga em processo de divórcio, e a braços com uma gravidez que não estava nos planos, e o jovem que encara a possibilidade de ser pai ciente de que não tem a maturidade para tal. Ele despede-se dela com um agradecimento, porque essa mulher casamenteira foi a responsável pelo namoro do seus pais. A segunda parte fecha com um “obrigado, nasci graças a ti”. E o ferry parte, fluida e calmamente, em direcção a um novo destino.
Luís Mendonça
Onde tínhamos ficado no final do manufacturado episódio quatro de Happy Hour? O olhar de Sakurako encara-nos de frente, o seu corpo inclinado na mesa dos afazeres domésticos, a cabeça semi-escondida nos braços, uma lágrima furtiva derramada, não se sabe se do sono ou devido a melancolias mais profundas. Imediatamente antes disso, Jun, a amiga num processo de separação de um marido com coração algorítmico, foge num ferry para nunca mais lhe (ele e nós) pormos a vista em cima. Permanecerá a partir daí em off, fora de plano, como se tivesse morrido na viagem ou simplesmente evaporado. Mas, é destas “mortes” que vivem os que ficam na terra árida do cinema. Importante será, não o desaparecimento enquanto tal, mas o rasto fantasmagórico que a sua ausência deixará a todas as outras personagens, nomeadamente o trio de amigas, incapaz de outra coisa agora que não o conflito conjugal. Afinal, Sakurako lacrimejará exactamente do quê? Provavelmente da inevitabilidade do clímax, essa água que nos coloca, como no conto dos banhos públicos da Sra. Nose, a observar a nudez alheia – e este episódio incidirá decisivamente sobre as necessidades íntimas, as mais carnais e embaraçosas de todos os personagens.
Não estamos distantes da temática central deste épico: escutar as entranhas, jamais esquecer os ruídos bizarros e intimidadores que se ouvem, lá longe no interior, soterrados debaixo da epiderme.
Este terceiro acto tem a ousadia de fechar arcos, mas relegar os acabamentos finais para a mente de cada um, razão segundo a qual na nossa entrevista a Hamaguchi falávamos da procura do cineasta por um “meio contínuo”, mesmo naquele que é o momento narrativo mais derradeiro e classicamente entendido como conclusivo. É também a parte mais intransigente no que diz respeito aos julgamentos construídos pelos espectadores ao longo da duração do filme – facto que só se agravará com as sessões divididas: as impressões sobre os personagens terão ainda mais tempo de, entre os intervalos, serem transfiguradas e moldadas pelas trevas da memória. Portanto, descobriremos que Ukai, o génio do workshop da primeira parte, é um artista na acepção pejorativa e mais portuguesa do termo; que a racionalidade estéril de Kohei, o marido de Jun, esconde uma afecção absoluta por ela; que Fumi, a mais introspectiva e laissez-faire do grupo de amigas, deseja, afinal, um maior compromisso emocional por parte do marido Takuya, editor excessivamente zeloso com a sua escritora protegida; que Sakurako deseja precisamente o contrário, libertar-se do seu casamento tradicional asfixiado por obrigações e papéis sociais estanques; etc. Na verdade, este último capítulo poderia intitular-se “da destruição do fleumatismo” e, ainda assim, não estaríamos nada distantes da temática central deste épico: escutar as entranhas, jamais esquecer os ruídos bizarros e intimidadores que se ouvem, lá longe no interior, soterrados debaixo da epiderme.
Miguel Patrício