Quem tem seguido estas crónicas saberá bem da minha obsessão por tentar compreender as razões, os critérios, que nos levam a fazer certos raccords. Entre filmes ou memórias, às vezes importa uma imagem, um tema, um vermelho aqui ou acolá, uma sugestão encapotada, uma dica algoritmica. Tudo vale. O que nos leva afinal a prosseguir ou contrariar um dado caminho? De que é feita a -filia em cinefilia quando o amor (a philia) é substituído, em todo ou ocasionalmente, pelo tesão da lista, do one-night stand com um filme que se consome, se masca e deita fora? Não me compreendam mal: há infinitas formas de se amar ou de f* um filme. Longe de mim o paternalismo, ou o catequismo das igrejas cinéfilas da Verdade. Schrader esteja convosco. Ámen.
O que me interessa é a capacidade de inventar um sistema individual — um mundo com um só habitante, no fundo — que prossiga, tal qual aquelas magníficas máquinas voadoras de Da Vinci, uma tarefa de auto-descoberta da sua própria cinefilia. Como quem descobre a sua sexualidade na adolescência, na escuridão de um quarto, numa viagem de “estudo”. Actualmente, a acessibilidade infinita de todo o cinema parece colocar o cinéfilo perante um dilema mortal: o que ver? Parece colocá-lo perante a ideia de uma catatónica bulimia: comer os filmes todos, a toda a hora. E hoje, convém dizê-lo, já não comemos o que nos põem no prato com medo que falte (quem não se lembra das maratonas de Cinemateca para ver obras proibidas, acepipes exóticos de outras paragens que não se sabia quando retornariam àquele porto?). Não, hoje comemos o que nos põem no prato por outras razões, afinal de contas dá algum “trabalho” eleger e as vozes, humanas ou sintéticas do “isto é para si”, sobrepõem-se em ruído infernal. Hoje, o cinéfilo não precisa achar os filmes. Eles vêm ter consigo. O que o cinéfilo precisa é de ir escrevendo, como Pero Vaz de Caminha, a carta de achamento da sua própria cinefilia. O trajecto que dispõe os seus filmes em mapa de descoberta, em estrutura de links que revelam esse tal mundo assombrado de um habitante só.
Eu acho que achar os filmes é quase tão bom como os próprios filmes. E esse achamento é hoje simbólico, emocional. Esta crónica podia até ser sobre dois filmes — Incompreso (Vita col figlio) (O Incompreendido, 1967) de Luigi Comencini e Poil de carotte (O Ruivo, 1925) de Julien Duvivier — mas é sobretudo sobre os raccords que me permitiram achar esses filmes. No fundo, é um elogio aos passadores, mas também ao nosso próprio “audaciómetro” (a expressão é do jovem protagonista do filme de Comencini). Aparelho que, a cada filme que avança, vai aumentando a possibilidade de fazer ruir toda a nossa árvore da cinefilia, de fazer com que os troncos da mesma façam crack e nos levem a cair.
No meu blogue, Ordet, lancei no ano passado uma rubrica intitulada precisamente “Árvore da Cinefilia”. Começava por invocar assim as minhas razões:
“Uma das coisas que sempre me fascinou na cinefilia é a sua pura anarquia. O amor, pouco ou nada se explica, e então quando as imagens se começam a mexer, irrequietas, as vozes logo se fundem com a natureza, os actores com o enquadramento, os gags com as lágrimas e por aí adiante. Depois, esse amor pelo cinema esvoaça por entre outros amores ou pela dureza da realidade, pelas nossas angústias do quotidiano, os sonhos, a dureza dos assentos, o sono da noite, a lista não tem fim. É afinal desses jump cuts, destes faux raccords que o espectador-Penélope vai fazendo e desfazendo uma qualquer relação com o cinema. Uma relação que não distingue necessariamente verdadeiro e falso, boas e más formas de filmar, estimulação intelectual e fetichismo rasteiro.”
Nela convidei amigos cinéfilos a escolher um filme e a contar a razão porque ele ocupava um lugar especial na relação que entretanto estabeleceu com o cinema. A ideia era ir desvendando mais sobre as relações de cinefilia e constituir um acervo de textos, observando de perto uma grande e maravilhosa árvore da cinefilia, algo que se pudesse constituir como um mapa de imagens e afectos, navegável, disponível a todos, feito por todos. Foi neste contexto que o Vasco Câmara me encaminhou para este filme de Luigi Comencini. Sendo um dos poucos críticos de cinema em actividade em Portugal sensíveis ao estilo da sua prosa (contam-se pelos dedos das mãos), ele descreve assim o início da sua cinefilia:
“Terei cuidado para isto não ser um ‘cinema paraíso’, mas é verdade que os filmes começaram por me chegar de carrinha. O altifalante começava a anunciar o espectáculo pela manhã à entrada da vila, e a realidade era alterada. À noite o ecrã era içado no bazar. Os mosquitos eram dali. Já as cadeiras — de praia — tinham os espectadores que as levar: miúdos sentados à frente, mães atrás, pais ainda mais na retaguarda e de pé (este não compromisso total com o espectáculo devia ser sinal de autoridade). Isto foi nos anos 70, à beira do Índico, entre o mar e a selva, na moçambicana província da Zambézia. Há ainda filmes que hoje secretamente me murmuram que já os tinha visto — não porque reconheça sequências, é subterrâneo. A periodicidade do cinema ambulante era incerta, isso tornava o acontecimento mais violento. É impossível saber exactamente o que vi e de que actualidade cinematográfica estou a falar — estávamos perdidos no ‘mato’, sem tempo. Mas sei que fui exposto.”
Havia aqui várias coisas que me despertaram a atenção — nomeadamente a ideia dos filmes entrarem em nós e neles ficarem, subterraneamente, ou a ideia de ser exposto a um filme, como a uma doença. Mas a mim o que me interessou mais, o que fez raccord decisivo foi o facto de na minha árvore da cinefilia estar a ser depositado um ramo quebradiço, um ramo que não suportaria muito peso. Literal e simbolicamente. Talvez apenas o peso de um espectador que fechasse os olhos, como apontava e bem Frederico Lourenço, à repetitiva e redundante banda sonora, onde pontuava o piano de Fiorenzo Carpi. Ou que passasse por cima de um pai (Anthony Quayle) convenientemente “tapado” às necessidades do filho, uma injustiça à medida do drama, que terminaria a abarrotar de lágrimas e arrependimento. A adaptação era de um romance de Florence Montgomery, cuja descrição Jacques Lourcelles cita a partir de um número da Positif de então: “uma verdadeira máquina de fazer chorar”.
Por outro lado, tínhamos uma criança com olhar adulto (Stefano Colagrande), de observação fulminante, um silêncio capaz de furar os espaços da grande mansão — por certo, viscontiana, sim. E tínhamos um Comencini tão subtil no detalhe como pesado no enredo. O menino que a sair do duche se esquece que a mãe afinal morreu e chama por ela; as corridas ao móvel onde estava o gravador para ouvir às vezes a voz dela; o desgosto atroz por ter apagado essa mesma fita onde a mãe ainda “vivia”. E, depois, aquela cena de fazer calafrios, quando, numa das noites, com uma tempestade enorme lá fora, o irmão mais novo chora com medo, chamando pela mãe e o valente Andrea o consola, mentindo-lhe, e contendo o choro, dizendo que a mãe deles está numa vila maravilhosa.
Lembro aqui o trajecto que este filme fez para chegar até mim: uma recordação do Vasco nos anos 70, em Moçambique, de um filme italiano, realizado no final dos anos 60, passado na casa sumptuosa dos arredores de Florença e lembrança essa depositada no meu jardim zen privado, vulgo blogue. Vou agora descrever o trajecto até mim do segundo filme que aqui vou tratar. Esse raccord provém também do outro lado do mundo, mais concretamente do Japão. Num texto escrito por Truffaut em 1975, chamado «A quoi rêvent les critiques ?», o realizador francês descreveu que numa ida ao país do sol nascente, vários repórteres lhe falavam constantemente de Julien Duvivier e de como o seu filme Poil de carotte (O Ruivo, 1925) teria permanecido para eles como um dos seus favoritos ao longo dos anos. Quase que apetecia comentar a surpresa com que Truffaut recebeu esta notícia, pois todos sabemos como ele e os seus parceiros dos Cahiers açoitaram na altura o pobre do Duvivier, tido como um dos símbolos do “cinéma de papa”. Um cineasta demasiado prolífico, pouco criterioso, sem consistência temática, uma espécie de artista que gosta de agradar, que todos os temas tratava como plasticina, uma espécie de Raoul Walsh, Michael Curtiz ou William Wyler que ia a todas.
Mas não vou falar disso. Interessa-me antes descrever como o espanto de Truffaut se converteu instantaneamente no meu espanto e vai daí traçamos o seguinte trajecto: meados nos anos 70 no Japão encantados com uma pequena vila francesa dos anos 20 ou 30 [Não sei se a admiração recaía sobre a versão muda, a que eu vi, ou sobre a versão falada, realizada uns anos depois pelo mesmo Duvivier. Pouco importa.]; tudo isto chega a Portugal, numa versão inglesa (não perguntem) de Os Filmes da Minha Vida de Truffaut, mais concretamente a uma secretária cheia de papéis numa rua solitária e inclinada do alto dos Moinhos, 2018. O mais curioso é que depois de ver o filme os rizomas da cinefilia abrem-se em múltiplas direcções. Poil é, também ele, sobre uma criança pouco amada, onde a metáfora do tio Will no filme de Comencini ecoa-nos aos ouvidos: “as crianças são como os cães que precisam de um dono”. Esta dura abordagem do falso duro que é a personagem do tio serve-nos para compreender como em ambos os filmes as crianças protagonistas vivem em desespero pois precisam da atenção da sua família. No caso de Incompreso é o pai que trata o filho como um adulto, não lhe dá carinho suficiente, canalizando a pouca atenção para o seu mais novo. Em Poil de carotte é a mãe que é um monstro de bigode, uma caricatura horrível que juntamente com os seus outros irmãos e com um pai (Henry Krauss), também aqui distante, tornam a vida do jovem ruivo (André Heuzé) num inferno.
Mas também há várias coisas que separam os dramas de Duvivier e Comencini. Para além das mais evidentes, há esta ideia de mise-en-scène que vai contrariando, cada um por si, os destinos do naturalismo. Em Comencini, Andrea vai crescendo à medida que vamos tendo acesso ao não dito, a uma subjectividade que vai acomodando a saudade, o mal-estar, um silêncio que vai coleccionado decepções e angústias. Essa é a forma como no filme italiano se lida com as consequências da morte precoce da mãe e do afastamento, por motivos culturais e profissionais, do pai. Em Duvivier, adaptando o romance homónimo de Jules Renard, o naturalismo é asfixiante. Lá para o fim dizem-nos que o ruivo, que se acha feio, é discriminado pela mãe porque esta o teve contra a sua vontade. Mas essa razão já surge a destempo para fechar a grande reconciliação lacrimejante com o pai. Talvez nem precisássemos dela, pois este é um filme sobre a mente fantasmática, fantasiosa, de um cabeça de cenoura. Duvivier desvia-se dos eventos traumáticos do naturalismo pelas múltiplas sequências de trucagem e fundidos que nos vão dando acesso à subjectividade de Poil. As mães dispostas na sua mente até ao infinito, os monstros que surgem à noite na casota do cão, a roda sem parar na feira popular a mostrar-nos o que vai, simbolicamente, no interior da sua mente antes de pensar no suicídio, são alguns exemplos disso.
No final, o pai ao perceber que o filho tem sido maltratado, pouco cuidado (retornasse a metáfora do cão e só os mais incautos achariam infame), diz-lhe: “Agora somos dois”. Pai e filho juntos finalmente, abraçados, passeando por entre ovelhas no campo. Quando um cinéfilo encontra um filme e se expõe a ele, aos seus cuidados, à sua atenção, bem poderia dizer o mesmo: “Agora somos dois.” Os japoneses dizem-no, as crianças em Zambeze à espera dos filmes vindos em carrinha diziam-no, eu, ainda nesta secretária povoada de papéis e manchas de café, por vezes suspendo a claridade do dia, puxo a tela e digo-o:
– Agora somos dois.