Quatro horas da manhã em Portugal. “What time is it there, Hamaguchi-san?” Hora de almoço no Japão? Aqui, a nossa madrugada não precisa de cafeína. Daijoubu desu. As diferenças do fuso horário não impediram Miguel Patrício e Luís Mendonça de passar uma verdadeira hora feliz com o realizador de 39 anos que vê um filme seu ser estreado pela primeira vez em Portugal: Happy Hour (Happy Hour: Hora Feliz, 2015), um épico intimista de 5 horas que vai para as salas dividido em três partes (a primeira estreia já dia 4 de Outubro) e que pode muito bem ser um dos filmes do ano, mesmo tendo sido lançado há très no seu país de origem. A gentileza e finura de Ryûsuke Hamaguchi foram uma constante, especialmente no esforço de sempre se expressar com clareza a despeito da barreira linguística. Que difícil encontrar um cineasta que demonstra tamanho respeito por cada pergunta e sabe medir o tempo e dedicação de cada resposta! No final, ficou a promessa de um encontro em Portugal, país de um realizador que admira: Manoel de Oliveira. Segue a transcrição de uma conversa separada por oceanos e milhares de quilómetros.
Miguel Patrício (MP) – Graduou-se pela Universidade de Belas Artes e Música de Tóquio com o filme Passion (2008). Tendo sido fundada em 2005, esta é a primeira escola pública de cinema no Japão e diversos jovens realizadores (como o próprio Hamaguchi, mas também Natsuki Seta, Tetsuya Mariko, Chihiro Ikeda, Kohei Igarashi, etc.) tiveram aí a sua estreia e foram revelados a um público mais abrangente. Pode falar-nos da importância desta escola de cinema para a sua carreira enquanto cineasta?
Sim. Como referiu, eu graduei-me pela Universidade de Belas Artes de Tóquio, sendo esta a primeira escola pública de cinema no Japão. Ingressei no segundo ano após não ter conseguido entrar no primeiro. Para mim, o momento mais marcante foi ter conhecido Kiyoshi Kurosawa. Ele foi meu professor e, durante dois anos, assisti atentamente às suas aulas. No seu seminário, havia liberdade para todos os jovens realizadores trocarem ideias entre si. Foi este tipo de ambiente que me convenceu ser possível fazer cinema de forma criativa e sustentável. Acabei por realizar quatro filmes lá – duas curtas metragens e duas longas – sendo que o orçamento era preparado pela escola. Não tínhamos, portanto, de nos preocupar com angariações de fundos ou pela nossa subsistência. Posições como director de fotografia, engenheiro de som, montador, produtor ou argumentista eram igualmente financiados. Na verdade, a escola acabava por funcionar como uma espécie de pequeno estúdio de cinema. As pessoas com quem me relacionei lá permaneceram na minha vida até hoje. Foi muito importante, particularmente as lições de Kiyoshi Kurosawa que muito me influenciaram.
MP – Pode elaborar um pouco mais acerca da importância das aulas de Kiyoshi Kurosawa para si?
Isso deveu-se ao facto de ele me ter esclarecido a importância da câmara de filmar. Durante a minha estadia na Universidade, eu fiz alguns filmes mas não me tinha apercebido realmente do significado desse objecto. Kiyoshi Kurosawa começou por nos mostrar filmes dos Irmãos Lumière, explicando-nos que a câmara é uma máquina de registo do real. Portanto, faz parte da sua natureza conter vários tipos de ruídos. Realizar, escrever argumentos e dirigir actores nunca a impede, nem impediu de capturar um real que extravasa qualquer ficção. Kurosawa revelou-nos essa natureza contraditória do acto de filmar e isso acabou por ser um momento fundamental na minha aprendizagem enquanto cineasta.
MP – Gostaria agora de abordar o seu filme final de curso, Passion. É uma obra arrebatadora que, de várias maneiras, antecipa temas que exploraria mais tarde em Happy Hour, tais como o valor da verdade e honestidade nas relações amorosas, mas principalmente nas amizades. O que pensa destes temas e da ligação de ambos os filmes?
Passion e Happy Hour têm os dois a mesma fonte: os filmes de John Cassavetes. No caso de Passion, especificamente, a inspiração veio de Faces (1968), Husbands (1970) e A Woman Under the Influence (1974). As relações amorosas são um dos temas primordiais de toda a obra de Cassavetes, sendo que Husbands foca-se, sobretudo, no tema da amizade. Passion é uma mistura dessas influências, trabalhando sobre as mesmas temáticas. Husbands é o meu filme favorito e, provavelmente, a minha maior inspiração cinematográfica. Antes de filmar qualquer coisa, tento sempre revê-lo juntamente com o Rio Bravo (1959) de Howard Hawks. Tenho consciência que são cineastas completamente diferentes, mas gosto de desafiar as expectativas, misturando as emoções do cinema de Cassavetes com o estilo de Hawks.
Luís Mendonça (LM) – Isso é bastante interessante, porque queríamos perguntar-lhe justamente sobre o papel da improvisação no seu cinema. Cassavetes recorria imenso à improvisação, Hawks nem por isso.
Para mim, o mais importante será fazer com que as interpretações dos meus argumentos pareçam ser fruto de improvisações. Nalgumas entrevistas a Cassavetes, ele também afirmava que não era o caso dos seus filmes serem totalmente improvisados. Ele entregava o argumento aos actores e ambos liam-nos vezes sem conta até produzir, nos últimos, uma espécie de sentimento de libertação, uma explosão de emoções. O seu método influenciou-me imenso e posso dizer que os meus filmes também não contêm muita improvisação, muito embora cenas como a do curso de Ukai em Happy Hour não tenham sido redigidas na integralidade. Mas, isso não foi intencional, tendo sido mais uma consequência da maneira como o filme foi produzido do que outra coisa.
MP – Voltando ainda um pouco atrás na sua carreira, um filme bastante curioso e de acesso quase impossível no meu país é Intimacies (Shinmitsusa) (2012). Atendendo apenas à sinopse, podemos depreender que se trata de um momento decisivo na sua carreira, pelo menos, por duas razões. A primeira, a sua duração (4 horas e 15 minutos), a segunda, o facto do projecto ter nascido de um seminário leccionado por si, contando com as interpretações dos seus próprios alunos. Isto parece ter algo em comum com a pré-produção de Happy Hour, certo?
Sim, talvez tenha razão. Intimacies foi um filme muito importante para mim e penso que fez com que o meu cinema mudasse de direcção. Logo a seguir, co-realizei alguns documentários com o meu colega Kô Sakai e penso que Intimacies preparou-me para esses projectos. Nesse filme, eu adoptei bastantes métodos de improvisação e acabei por criar uma espécie de mistura entre documentário e ficção. Tudo começou quando fui convidado para leccionar temporariamente numa escola de cinema chamada ENBU. O meu objectivo consistia em filmar o trabalho final de graduação dos alunos e foram-me dados três meses para fazê-lo. A experiência de trabalhar, pela primeira vez, numa produção com prazos de filmagem tão alargados foi decisiva para mim. Aproveitei para explorar a durabilidade e trabalhar em parceria constante com a equipa técnica e actores. Sendo um cineasta independente, na altura eu não tinha meio de financiar um filme dessa envergadura, mas Intimacies provou que poderia chegar lá de outra maneira.

MP – Há pouco fez referência a algo que vai no encadeamento da minha próxima questão. Juntamente com Kô Sakai, realizou uma trilogia de documentários com enfoque na humanidade dos sobreviventes do terramoto de Tôhoku. Apesar de, na sua filmografia, alternar da ficção para o documentário, a sua abordagem relativamente ao cinema parece não mudar muito. Podemos até afirmar que essas duas definições não são muito importantes, nem surgem separadas nos seus filmes. De alguma maneira, é-nos dado um vislumbre da vida através da ficção e da ficção através da vida. Concorda?
Sim, concordo. Como acabou de dizer, eu filmei esses documentários de uma maneira ficcional. As entrevistas neles contidos não eram nada tradicionais e foram encaradas por nós mais como diálogos do que outra coisa. Filmámos em campo contracampo e, algumas vezes, chegámos a colocar a câmara à frente dos entrevistados. Ao longo das filmagens, percebemos que, apesar de serem vítimas do tsunami, eles apareciam-nos como uma espécie de actores e começavam progressivamente a aprender a lidar com a câmara. Foi um processo muito animado e intenso, e também me serviu de inspiração para Happy Hour. Interessou-me esse tempo de aprendizagem que transforma um amador sem experiência frente a uma câmara em alguém habituado à sua presença. E, como acabou de dizer, penso que não existe uma separação entre ficção e documentário, como já Kiyoshi Kurosawa me tinha ensinado. Existe sempre uma mistura entre os dois registos. A toda a hora.
MP – Podemos dizer, então, que adopta estratégias documentais nas suas ficções e estratégias ficcionais nos seus documentários?
Exactamente.
MP – Happy Hour é conhecido pela sua duração, mas quando o assistimos, rapidamente percebemos que o tempo não é um fim em si mesmo, antes um meio para se chegar a algum lado. Foram das cinco horas mais rápidas da minha vida! Qual foi a sua abordagem relativamente à duração do filme? Foi algo planeado desde o princípio ou acabou por acontecer organicamente dessa maneira?
Não estava nada planeado ser assim. No início, pensávamos que seria um filme de duas horas e meia. As filmagens duraram oito meses e aconteciam unicamente aos fins-de-semana porque os actores trabalhavam durante os outros dias. Eles não tinham experiência de interpretação quase nenhuma antes de participarem no nosso curso ou filmarem connosco. A única segurança que lhes poderíamos oferecer viria do argumento. Fomos percebendo que cada actor precisava de entender o contexto detalhado de cada personagem, as suas motivações e sentimentos, portanto o argumento começou a aumentar exponencialmente durante as filmagens. Eu achava que poderia omitir várias cenas quando chegasse à montagem, mas rapidamente me apercebi que se o fizesse, enfraqueceria a compreensão que se poderia ter dos personagens e do seu mundo. A duração permitia entendê-los a um nível muito mais profundo, dando inclusive a impressão de serem meus amigos.
MP – Li numa entrevista sua que chegou a editar uma versão provisória de quatro horas e que ela parecia, aos seus olhos, mais longa do que a de cinco.
A versão de quatro horas não era nada elaborada e era parca na ligação entre as personagens. Ela focava-se quase exclusivamente nas quatro protagonistas, não desenvolvendo o resto. Tornava-se difícil acompanhar as motivações e frequentemente sentia-me perdido ao vê-la. Eu penso que a constelação das outras personagens é muito importante em Happy Hour. Elas conferem uma clareza ao filme.
LM – Eu tenho uma pergunta muito à Howard Hawks. Não estava à espera que o convocasse. Uma das coisas que mais me impressionou foi esta ideia de um filme que flui como um rio. Um filme que não tem um começo ou um fim, mas que é um “meio” contínuo – penso que é algo muito hawksiano, portanto não devia estar surpreendido. Estava a tentar imitar o ritmo da vida?
Sim, talvez esteja a tentar imitar a vida. Essa ideia veio de Cassavetes, mas o sentimento de fluidez, para mim, vem de Howard Hawks. Quando vejo os filmes dele, sinto um fluxo, talvez porque os movimentos dos personagens são muito coreografados e rigorosos. Todos os planos se interligam minuciosamente e conseguimos sentir essa fluidez plano a plano. Isso faz com que haja um ritmo muito suave e delicado. Nos meus filmes, o conceito de imitação da vida pode dever a Cassavetes, mas a maneira como ele se concretiza na prática vem de Howard Hawks.
LM – Escolheu contar a estória de quatro mulheres. Foi difícil entrar no mundo delas, sendo um homem?
Claro que sim. Não as consigo perceber na perfeição. Entrevistei várias mulheres, não apenas as actrizes em questão, mas também amigas minhas e até a minha ex-namorada. Tentei percebê-las melhor, a fundo. Mas, penso que estas quatro mulheres são uma mistura de todas as outras que conheci na minha vida. Claro que a personalidade de cada actriz é muito importante na construção da personagem. De todos os modos, foi essa a fonte principal da minha inspiração. Portanto, tentei falar ao máximo com cada uma delas e sempre lhes disse para me avisarem caso sentissem alguma incongruência no argumento ou não estivessem satisfeitas com algum desenvolvimento das suas próprias personagens.

LM – O que torna estas mulheres especiais para si?
Elas estavam todas na casa dos 30 e não tinham qualquer experiência enquanto actrizes. Achei que era deveras raro para uma mulher japonesa querer participar num curso de interpretação desse género, não tendo qualquer antecedente. Então, pensei que todas elas tinham algo de especial e que queriam mudar, de alguma forma, as suas vidas. Na sociedade japonesa, as mulheres com 30 e muitos anos estão numa situação muito complicada. Elas têm tantas obrigações e deveres que facilmente são esmagadas por uma sociedade que lhes exige demasiado.
MP – Uma vez, a actriz Rira Kawamura disse que, quando foi escolhida para interpretar o papel de Jun, foi aconselhada pelo realizador a “ter respeito pela sua personagem”. Qual é o verdadeiro significado desta indicação dada por si?
É difícil explicar sem ser em japonês, mas vou tentar. Na verdade, a Rira Kawamura e a Jun não são a mesma pessoa. Toda a gente tem de respeitar os outros porque nós não somos eles. Se a Rira Kawamura sentisse que a Jun era, de facto, um reflexo exacto dela mesma, penso que a sua interpretação tornar-se-ia mais egoísta e centrada em si própria. Faltar-lhe-ia uma certa distância e humildade em relação à personagem.
LM – Falava há pouco de Howard Hawks e da fluidez dele em contar estórias e pensava sobre a montagem muito subtil do seu filme. Perguntava-me como conseguiu interligar estas estórias: estava à procura de ecos entre elas?
Durante o processo de filmagem e reescrita do argumento, alterámos a direcção da estória diversas vezes. De acordo com as impressões dos materiais que nos iam ficando disponíveis, fomos reescrevendo a narrativa à medida que essas impressões se desenvolviam. Dessa maneira, tornava-se possível criar estórias passadas ou futuras que poderiam ressoar com outras já filmadas.
LM – Em Portugal, o filme será exibido em três partes distintas. A primeira é marcada, na minha opinião, pelos exercícios do curso. É uma abordagem muito física ao universo do filme. Depois, temos uma parte dedicada à família e aos afectos. E a última, para mim, parece estar mais directamente relacionada com sexo, talvez numa acepção destrutiva. Queria dizer coisas distintas em partes diferentes do filme?
Esta divisão foi feita a pensar nas salas de cinema, pois elas hesitaram em passar o filme de uma só vez. Nós sugerimos a divisão em três partes, mas rejeitámos a inclusão de um título ou créditos para cada uma delas. Eu penso que o Happy Hour é um filme de uma só parte, mas para os espectadores e para algumas salas eu dividi-o desta maneira. Parece-me que estas divisões não são assim tão más, pois cada uma das partes conserva as suas especificidades. A primeira é caracterizada pelo curso do Ukai e é o momento em que as personagens ainda se estão a habituar umas às outras e à presença da câmara; a segunda é, talvez, a mais sentimental; e a terceira é assinalada pela leitura pública, mas também pela mudança mais relevante por parte das protagonistas.
MP – Netemo sametemo (Asako I & II, 2018) será provavelmente exibido em Portugal após a estreia de Happy Hour. O que podem os espectadores que assistiram a Happy Hour esperar do seu mais recente filme?
Asako I & II é um filme de duas horas, portanto é muito mais fácil de ver. Nele, eu quis pôr à prova uma certa noção de velocidade ou rapidez. Mais do que isso, tinha intenções de chegar aos mesmos níveis emocionais de Happy Hour só que com uma duração bastante mais reduzida. Não sei se fui bem sucedido nessa tarefa, mas foi esse o desafio que me propus. A experiência de Happy Hour tinha sido satisfatória de imensas maneiras, mas talvez eu não conseguisse mais continuar a fazer filmes de cinco horas. Em Asako opto pela condensação das mesmas coisas que me tinham levado a filmar Happy Hour, tentando capturar a essência do romance original do primeiro.
MP – Happy Hour foi redigido a seis mãos e, não tendo sido necessariamente escrito ou improvisado com os actores, havia uma consciència enorme do papel deles e das mudanças que as suas próprias interpretações poderiam acarretar no produto final. Nessa acepção, Asako I & II parece ser um filme diferente porque adapta um romance e mesmo a grande maioria dos actores não é amadora…
Asako I & II é uma espécie de filme comercial e foi a minha primeira tentativa nesse género. Os actores, como referiu, são profissionais, mas a adaptação do romance continua a ser da minha responsabilidade. Desta vez, houve vários produtores e também uma co-argumentista. Penso que filmes desta dimensão têm vantagens e desvantagens, mas o núcleo essencial da minha abordagem mantém-se o mesmo quer esteja a filmar um filme independente ou comercial. Principalmente no que diz respeito ao trabalho com os actores quase tudo permanece inalterado. Por exemplo, a protagonista principal nunca tinha filmado para cinema e o modo como ela foi dirigida acabou por ser reminiscente do método que utilizei em Happy Hour. Ler o argumento uma e outra vez com diferentes nuances e entoações antes das filmagens e fazer com que a memorização de cada fala fosse feita unicamente através da leitura. É um constrangimento que me permite antecipar as emoções e reacções mais instintivas que são posteriormente reveladas durante o processo de interpretação. No Japão, as produções comerciais não admitem um período de filmagem muito longo (um mês, no meu caso) e, olhando para trás, isso concede a filmes como Happy Hour uma aura luxuosa e de privilégio. Porém, desta vez o meu orçamento era bastante maior e isso permitiu-me fazer mais coisas do que nos meus filmes anteriores.
MP – Uma última questão. Antes de filmar Asako I & II, assistiu a um filme de John Cassavetes e de Howard Hawks?
Claro que sim.
