Nos créditos iniciais de Carrie (1976) de Brian De Palma, num movimento horizontal, a câmara capta o burburinho num balneário feminino, após uma partida escolar de voleibol. Na suavidade do movimento, em câmara lenta, as linhas verticais dos armários para vestiário enquadram os sucessivos corredores, evocando o dispositivo em que essas mesmas imagens foram impressas – as perfurações que separam os fotogramas e mantêm a continuidade da película. No último corredor, o movimento muda de direcção e a câmara avança lentamente até uma nuvem densa de vapor onde Carrie, apagada do mundo, massaja o corpo com a ajuda da água do chuveiro. A música onírica de Pino Donaggio, que se tornaria num colaborador regular de Brian De Palma, conduz-nos por uma atmosfera erótica, que embala o movimento das mãos pelo corpo nu de Carrie, adolescente reprimida por uma mãe religiosamente castradora. O recorte intrusivo do poste metálico que serve de chuveiro, ameaça violentamente a fragilidade do corpo adolescente, prestes a descobrir o horror punitivo da primeira menstruação, quando é repescado o vermelho das letras dos créditos para matizar o corpo e pronunciar o monstro que as colegas agressivamente desprezam. Como Marion Crane (Janet Leigh) em Psycho (1960) de Alfred Hitchcock, na cena de chuveiro mais famosa da história do cinema, também Carrie é punida por se entregar a praticas solitárias de prazer. Este conceito de monstruosidade associada ao universo feminino, foi amplamente discutido por Barbara Creed, ao que chamou monstrous-feminine, ou seja a concepção do que é que é chocante, aterrorizador, horrífico e abjecto, na mulher. Na publicação The Monstrous-Feminine: Film, Feminism, Psychoanalysis, partiu da análise de célebres títulos do cinema de terror para discutir teorias da recepção e noções freudianas quanto à diferença sexual, concluindo que, dentro da ideologia patriarcal e falocêntrica, a mulher é representada como castradora em vez de castrada – a vagina que castra.
Da vaga recente de filmes de terror que abordam os conflitos da puberdade e de fases mais adiantadas da adolescência feminina – Better Watch Out (2016) de Chris Peckover, Happy Death Day (2017) de Christopher Landon, Beast (2017) de Michael Pearce, Pyewacket (2017) de Adam MacDonald ou Grave (2016) de Julia Ducournau – Thelma (2017) de Joachim Trier, que agora chega às salas de cinema portuguesas pela mão da distribuidora Cinema BOLD, já responsável por um catálogo invejável de filmes, é aquele que melhor reflecte os ecos das formas de repressão social que encontramos em Carrie. Poderíamos começar pelo facto de ambos serem escritos e realizados por homens, mas não nos prendamos na questão porque, como o caso de Julia Ducournau aponta, não é apenas por o olhar ser feminino que os resultados são mais satisfatórios. Porém, ao constituírem os títulos dos filmes a partir de nomes de mulheres, reforçam a ideia do universo feminino como estrutura para a produção do mundo e o terror como o seu discurso. Seguindo o pensamento de Simone de Beauvoir, poderíamos dizer que, nos filmes, como na vida, “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Em ambos, cabe à família o papel construtor da identidade feminina, pelo que não só especulam sobre as suas qualidades e fragilidades, como procuram decifrar as suas formas normalizadoras. É na família que essa identidade se organiza a partir das primeiras orientações culturais e sociais, nela se construindo uma rede de relações, comportamentos e condicionamentos. Por se tratarem de famílias tradicionais, circunscritas a moralizadoras praticas religiosas, a aspiração de transformação é mais premente. A libertação, tanto de Thelma como de Carrie, mesmo que obrigue à morte e ao assassínio, acontece apenas quando for dinamitado o casulo familiar, porque é nele que têm origem as mais duradouras e dolorosas formas de repressão.
Thelma não tem de viver/morrer apenas uma vez, nem de aspirar a essa condição humana de modo a restaurar a ordem no mundo. A verdadeira redenção acontece quando se reencontra na capacidade de amar.
Thelma começa com uma cena perturbante, em que a criança acompanha o pai numa jornada de caça, atravessando um lago gelado, até um campo de neve. Por momentos, fixam um veado, a que o pai aponta a arma. Silenciosamente, sem Thelma notar o movimento, a arma é desviada da direcção do veado para a sua cabeça. Nesse momento, não chegamos a saber a causa do acto, pois por meio de uma elipse vamos conhecer Thelma como jovem mulher, a viver longe dos pais, nos primeiros dias de aulas, numa instituição de ensino. Num plano aéreo sobre a praça, cruzam-se caminhos de inúmeros desconhecidos, que não param. Enquanto um zoom nos aproxima do centro, duas pessoas param, mas depressa retomam a caminhada. Uma delas é Thelma, que a partir de algo que tem na mão parece procurar um destino, eventualmente a instituição de ensino. Pouco depois, um bando de pássaros estatela-se contra a vidraça da biblioteca, onde Thelma tem a primeira convulsão, sujando as calças com um fluxo urinário ou sanguíneo, que poderá ser menstruação. Não há lugar para a slow motion, o split screen ou outras ambiciosas explorações formais de Brian De Palma. O dispositivo é estilizadamente sóbrio e construído por meio de planos fixos que podem ser convertidos em elegantes zooms ou lentos movimentos de câmara. A paleta cromática de cores vivas e quentes, quase surreais, de Carrie é trocada por atmosferas sombrias e frias. Entre elipses e analepses, observamos a descoberta do desejo sexual, a protecção/repressão familiar e as suas habilidades telecinéticas, como uma espécie de alivio para um corpo sobrecarregado, num circulo de começos e recomeços, em que a água – símbolo bíblico da vida, mas também da punição – é o agente da mudança e da purificação, para que Thelma possa apagar e inventar o mundo – o seu mundo.
A estrutura circular, sob o desígnio do recomeço, de Thelma, aprofundando um conceito presente num filme anterior do realizador, o maravilhoso Oslo, 31. august (Oslo, 31 de Agosto, 2011), traz-nos a lembrança improvável do dispositivo de Edge of Tomorrow (No Limite do Amanhã, 2014) realizado por Doug Liman, pai das adaptações cinematográficas de Jason Bourne, célebre agente secreto dos conflitos de identidade. Numa clara evocação da estética dos videojogos, Tom Cruise tem de morrer e ressuscitar o número de vezes necessárias até que consiga salvar o planeta de uma espécie alienígena. No mote de Edge of Tomorrow – live, die, repeat – o game over implica um recomeço que, por ser uma repetição, é o principal instrumento que converte Cruise em “personagem do jogo”/”jogador”, ao fornecer-lhe informação privilegiada, e resulta essencial para melhorar a performance e explorar os recantos do cenário de jogo, estabelecendo os melhores percursos e treinando habilidades. Ao contrário da personagem de Cruise, Thelma tem a habilidade quase ilimitada de se reinventar. Longe da narrativa clássica, Thelma não tem de viver/morrer apenas uma vez, nem de aspirar a essa condição humana de modo a restaurar a ordem no mundo. A verdadeira redenção acontece quando se reencontra na capacidade de amar.
Por último, reconheçamos que, no cinema, o discurso em torno da família e da religião enquanto máquinas poderosas na formação das identidades sexuais parece datado. No entanto, basta seguir a rotina jornalística, para percebermos que era algo que julgávamos temporalmente distante, mas que verificamos apenas ter estado adormecido. Reconheçamos, também, que teremos de nos preparar para abraçar militantismos e de renovar lutas que considerávamos ganhas, desde há muito tempo. Numa entrevista a publicar nos próximos dias, no À pala de Walsh, o realizador Yann Gonzalez, a propósito do seu último filme, Un couteau dans le coeur (2018), refere que a visibilidade crescente das comunidades homossexuais tornou-se numa ameaça insuportável para a homofobia, o que leva a manifestações violentas de fúria e ódio. Gonzalez recorda a visão infernal de famílias inteiras, incluindo os filhos, aquando da proposta de legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que se manifestaram indignadas pelas ruas de Paris, sequestradas pelo medo da vida, da sexualidade e da liberdade. Que, em tempos tumultuosos, uma rapariga tenha a capacidade ilimitada de sonhar e de inventar o mundo em que quer viver, é a esperança que Thelma nos oferece. Ainda assim, por se tratar de um mundo criado à sua imagem e semelhança, ficamos em suspenso com a cena final, aparentemente delico-doce. Como o final de Oslo, 31. august, porventura, diríamos que é mais agro do que doce.