Várias coisas me chamaram a atenção em relação a este Venom (2018). Primeiro, a prometida tentativa de convocar um imaginário de terror no coração dos filmes Marvel de homens em collants, normalmente destinados “a toda a família” e, por isso, pouco susceptíveis de verdadeiramente impressionar. Segundo, o acesso ao terror aconteceria não só por via de um body horror próximo, quiçá, de um Darkman (Vingança Sem Rosto, 1990) de Sam Raimi, mas também mediante uma desconfiguração moral do super-herói que protagoniza o filme. O resultado? Qualquer coisa que fica a meio caminho entre o que devia ser e o que podia ser.
Costumeiramente, há o homem comum – chame-se ele Clark Kent ou Peter Parker – que, vestindo a nova pele super-heroica, se eleva da sua amena e desinteressante condição mediana, tornando-se um ser extraordinário, capaz das maiores proezas físicas e sentimentais. No caso de Venom, existe uma batalha permanente entre o homem comum e essa pele que ele acaba por (ser forçado a) vestir. E aqui este homem comum está longe de ser um totó bem educado, um molengão sentimental, como os já citados Clark Kent ou Peter Parker. Eddie Brock (Tom Hardy), jornalista do muckracking digital, é mesmo o hospedeiro ideal deste verme parasitário vindo do espaço, sendo portanto este filme, logo à partida, um desafio à nossa ideia estabilizada de heroismo. O universo DC já havia proposto qualquer coisa semelhante, no algo subestimado Suicide Squad (Esquadrão Suicida, 2016), mas parece-me que Venom, sem prejuízo das suas debilidades, da sua falta de ambição ante o material em mãos, é uma boa proposta política que o universo Marvel dirige à sua vastíssima plateia. Num momento em que os vilões reinam – de Donald Trump a Rodrigo Duterte, passando, claro, por Jair Messias Bolsonaro – é tempo de nos reconciliarmos com o nosso “dark side”.
Não contei a outra coisa que me espicaçou o interesse em relação a este filme: as primeiras reacções da crítica. Existe um clima mais ou menos unanimista – politicamente correcto? Talvez – da crítica americana no que diz respeito aos intermináveis franchises baseados em comics de super-heróis. Ora, não podia deixar de prestar atenção acrescida face ao que se escreveu sobre este Venom: ele é “datado, campy” ou “como um cagalhão ao vento” (passagem retirada do filme pela rainha da crítica unanimista, a revista Little White Lies). Face a tudo isto, e ao trailer que confirmava parte do que era dito (sem dúvida, potencialmente datado e campy), achei que sim: valia a penar olhar para este filme. Em certa medida, a reacção de descontentamento é compreensível, dado que o filme arrisca pouco, mas só face à sua premissa.
O principal efeito especial – espantemo-nos – é o trabalho físico de Tom Hardy – nunca o vimos tão desconfortável no seu próprio corpo, tão desagradável à vista.
Muito se falou das promessas de que este seria um dos filmes mais negros e violentos da Marvel, aproveitando o caminho deixado aberto por esse gore fest, pedaço sulfuroso de kulturkritik, chamado Deadpool (2016). É verdade que, neste particular, Venom defrauda expectativas. É verdade que a personagem da besta parasitária from outer space é viscosamente horrífica, parecendo ser parente de uma das mutações do monstro de The Thing (Veio do Outro Mundo, 1982) de John Carpenter ou de um dos filmes da saga Alien. Esse horror corpóreo está lá e, aliás, começa com essa verdadeira escultura de voz que Hardy criou para este canceroso ser que o habita. Contudo, também é verdade que há um componente cartoony nesta incursão dark num filme Marvel que impede que tudo vá mais longe – não me recordo de um pingo de sangue, nem de me sentir propriamente ameaçado pelas várias investidas desta descontrolada ameaça in corpus. Ressalvando tudo isto, Venom é datado e é campy comme il faut. É divertimento liberto da metafísica enfatuada de alguns filmes DC, como os de Christopher Nolan e Zack Snyder, e o seu principal efeito especial – espantemo-nos – é o trabalho físico de Tom Hardy – nunca o vimos tão desconfortável no seu próprio corpo, tão desagradável à vista e, sempre sujo, mal-cheiroso, ao próprio olfacto.
Alguns pediriam certamente mais, mas esses também já devem estar esquecidos do muito lamentável Spider-Man 3 (Homem-Aranha 3, 2007), de um irreconhecível Sam Raimi, filme em que a personagem de Venom dava um ar de sua graça, mas sem deixar qualquer rasto duradouro na nossa memória. Ironicamente, o filme de Fleischer, realizador que conhecia de Zombieland (Bem-vindo à Zombieland, 2009), está mais próximo da melhor face de Raimi – falo, obviamente, do já citado Darkman, mas também dos três Evil Dead. O último filme de Leigh Whannell, a produção indie Upgrade (2018), também se baseia numa narrativa do corpo, estando o protagonista à mercê de uma força que este não consegue controlar, mas curiosamente, nas barbas da indústria, com um orçamento multimilionário, Venom é uma obra mais audaz. De onde vem essa audácia? Deste gesto de entrega a um actor, ao seu trabalho de composição, ao modo como este, física e moralmente, desfigura o típico discurso – vagamente fascista – da mais pura e transversal exemplaridade do homem providencial e de gáudio quanto à sua ariana perfeição. Hardy, o actor, o corpo, é o cenário de todos os combates aqui, epicentro de todas as contaminações entre alma e corpo, entre bem e mal, entre o bem mais frouxo e o mal mais revigorante.