No mesmo ano em que os festivais de cinema nacionais exibem Ultra pulpe (2018) e Les garçons sauvages (2017), última curta e primeira longa-metragem de Bertrand Mandico, e Un couteau dans le coeur (Knife+Heart, 2018), segunda longa de Yann Gonzalez, mostram uma saudada atenção à actualidade mais empolgante do cinema francês que a distribuição comercial não acompanha. Em França, no Verão, com Caroline Poggi e Jonathan Vinel, Bertrand Mandico e Yann Gonzalez lançaram a sessão conjunta de curtas-metragens Ultra rêve e o manifesto Flamme nas páginas dos históricos Cahiers du Cinéma. Atente-se às palavras in-flamadas: “Interessa-nos um cinema inflamado. Um cinema para sonhadores que suam, monstros que choram e crianças que ardem. Um cinema que goza e é consumido livremente. E convidamos todos os corações ardentes a soprar sobre as brasas. Estas palavras representam o desejo comum de fazer filmes, sonhá-los, pensá-los, desejá-los, mostrá-los. Não é um dogma, apenas uma chama na noite, o nosso estado do momento. Conta-se que, em certas noites frias de Inverno, os nossos filmes se reúnem na floresta. Juntos, iluminam um fogo e dançam até ao amanhecer até incendiarem os nossos corações”. De passagem por Lisboa, a acompanhar a exibição de Un couteau dans le coeur na secção competitiva do MOTELX 2018, Yann Gonzalez conversou com Carlos Alberto Carrilho sobre o lugar da cinefilia no trabalho de realização, paraísos perdidos, fantasmas bem reais, homofobia na crítica de cinema, clássicos do cinema pornográfico, Nicole Brenez, João César Monteiro e João Pedro Rodrigues.
Entre 2006 e 2013, ou seja, até à sua primeira longa metragem, Les rencontres d’après minuit (2013), realizou cinco curtas ou médias-metragens, quase uma por ano. Foi uma opção sua, manter-se dentro deste formato, ou condicionamento por questões de financiamento? O que o atrai neste formato?
Tratou-se de uma combinação das duas situações. Por um lado, não me sentia suficientemente maduro para realizar uma longa-metragem. Por outro, se o financiamento se concretizasse antes, talvez tivesse realizado a primeira longa-metragem um pouco mais cedo. Sentia que precisava de amadurecer, aprender, passo a passo, como construir um filme. A partir da gramática do cinema e das ferramentas da curta-metragem, queria encontrar uma forma de expressão pessoal, pelo que me sentia satisfeito a realizar em formatos mais curtos. Futuramente, gostaria de continuar a realizar curtas, entre as longas-metragens – um filme por ano, seja curta ou longa-metragem. Sinto a necessidade de experimentar, contar histórias, conhecer novos actores, abordar novos contextos.
Entretanto, entre as suas duas longas, Les rencontres d’après minuit (2013) e Un couteau dans le coeur (2018), voltou a realizar outra curta metragem, Les îles (2017).
Neste caso, tratou-se de uma questão de frustração. Em 2016, tinham decorridos cerca de quatro anos desde a minha primeira longa-metragem. Tínhamos previsto iniciar a rodagem de Un couteau dans le coeur, mas não reunimos financiamento suficiente, pelo que precisava de algo a que me dedicar. Durante alguns meses, escrevi e filmei Les îles, o que foi extremamente satisfatório porque me permitiu voltar a respirar. Com isto, quero dizer que, para além de ficar orgulhoso, as curtas-metragens são uma urgência, uma necessidade, que me fazem sentir vivo.
Olhando para a sua obra, poderíamos lembrar-nos do percurso de Walerian Borowczyk, não só pela abordagem de temas relacionados com o erotismo e o surrealismo, mas também pela divisão entre a prática da curta e da longa-metragem, que manteve ao longo da carreira. Num texto de apresentação da obra de Walerian Borowczyk, Daniel Bird escreveu: “Borowczyk notou que não nos tornamos artistas por ‘causa’, mas ‘apesar’ dos nossos professores. Teve uma longa vida de aversão à autoridade, escolas e clubes de todas as formas […]. No entanto, as escolas também eram lugares de encontros. Foi na escola […] onde Borowczyk estabeleceu algumas das suas mais firmes amizades”. Revê-se nestas palavras?
Quando cheguei a Paris, com vinte anos, vindo do sul de França, conhecer Nicole Brenez foi uma experiência incrível. Na escola, enquanto estudava história e teoria do cinema, entre professores entediantes, Nicole Brenez revelou-se uma das mais generosas e belas almas com que convivi – como um milagre. Ensinou-me que poderíamos amar qualquer forma de cinema, desde o experimental ao terror, das obras-primas de Brian De Palma e Abel Ferrara aos clássicos de Jean-Luc Godard e Sergei Eisenstein. Com ela, aprendi que poderíamos misturar diferentes abordagens e atmosferas e que a beleza pode ser encontrada em todas as formas, desde os filmes mais obscuros até aos clássicos de Hollywood. Antes de a conhecer, já sentia vontade de ser realizador, mas a ideia que me transmitiu, de que podemos eliminar a hierarquia entre os filmes, foi algo que me inspirou de forma poderosa. Ainda na escola, fiz algumas amizades entre os alunos, inclusive com um futuro realizador, com quem actualmente não tenho proximidade. Os actuais amigos realizadores, bem como outras pessoas importantes em termos de inspiração, apenas os conheci mais tarde.
Como se desenvolve o seu processo criativo, entre a ideia, o argumento, as filmagens, a montagem e a pós-produção? Grava o som durante as filmagens ou usa pós-sincronização? Tudo o que vemos nos seus filmes foi executado durante as filmagens ou utiliza muita pós-produção?
Tento filmar do modo mais “verdadeiro” possível, pelo que não gosto de utilizar efeitos especiais, ainda menos durante a pós-produção. Em Un couteau dans le coeur, usámos técnicas de pós-produção para tornar brancos os olhos dos pássaros, de modo a parecerem cegos. A experiência para criar algo credível foi horrível, que demorou entre três a quatro meses. Amo a magia, a ideia de brincar, como se voltasse a ser criança. Fazer os efeitos especiais ao vivo é algo que me entusiasma e que me faz acreditar no artifício do cinema. Fazer com que as pessoas acreditem, confiem no artifício, no falso tornado real, é uma das coisas mais preciosas do cinema.
Com esta questão estava a pensar no processo de trabalho do seu colega e amigo Bertrand Mandico, que grava em directo o que é relacionado com a imagem, mesmo as sobreposições e retroprojecções, deixando a captação do som para a pós-produção, incluindo a gravação dos diálogos.
Temos processos muito diferentes. Nos meus filmes, o som é filmado em directo no set. Por acreditar na energia que os actores transmitem, é durante a rodagem que registo as suas vozes e entoações. Quando tenho música escolhida para a fase da montagem, também a utilizo durante a rodagem. Considero que a música é uma ferramenta importante na direcção de actores, pois ao criar uma atmosfera, promove a intensidade e eleva as emoções. Também a utilizo no processo de escrita do argumento. Em ambos os casos, reconheço a sua importância como motor para despertar visões e imagens. Muitas vezes, a música é o começo de tudo.
Desde a sua primeira curta, By the Kiss (2006), a actriz Kate Moran tornou-se numa presença constante e visível na sua obra. Desta forma, a sua obra quase que poderia ser um documento sobre o seu crescimento enquanto pessoa e actriz. É algo que tem presente quando a convida e trabalha com ela?
Conscientemente, não penso nisso, porque faço-o de uma forma muito natural. Não há nada de radical na nossa relação, sendo apenas inspirado por ela. É claro que me agrada a ideia de crescer com ela, sentir as mudanças na sua face. É claro que ela é uma espécie de espelho para mim. É claro que, entre os actores, sinto uma ligação diferente com ela. Trata-se de uma relação mágica de intimidade e cumplicidade em que quase não temos de nos expressar por palavras para comunicar.
Poderíamos dizer que, para si, ela é uma espécie de duplo?
De certa forma, todas as minhas personagens me representam, embora exista essa relação especial com Kate. No entanto, em Un couteau dans le coeur, talvez me identifique melhor com a personagem de Vanessa Paradis.
Fisicamente, não poderíamos olhar para Kate Moran, pela primeira vez, como uma mulher madura?
Apesar de ter amadurecido, não o é. De todo!
A utilização dos mesmos elementos das equipas artísticas e técnicas oferece uma característica particular à sua obra. É de uma família que se trata? Como é trabalhar dentro desta família?
Mesmo que trabalhe com as mesmas pessoas, cada filme representa uma nova etapa, com diferentes atmosferas e famílias. Podemos dizer que se trata de uma família, em que existe a possibilidade de se alargar. Caso contrário, não existe aperfeiçoamento e valorização. Necessito de sangue novo. É por isso que as minhas curtas-metragens, como no caso de Les îles, são experiências tão preciosas. Trabalhei com pessoas que colaboram na maior parte dos meus filmes, mas, ao mesmo tempo, a equipa era composta por amigos de escolas de arte. Considero que se tratou de uma nova partida.
Os seus filmes têm sido presença regular e premiados em diversos festivais de cinema portugueses. Em 2012, no âmbito dos 20 anos do Curtas de Vila do Conde, foi convidado para realizar Land of My Dreams (2012). Como aconteceu esta ligação a Portugal?
Parece-me que começou com a primeira selecção para o Curtas de Vila do Conde, onde recebi o meu primeiro prémio. Estabeleci uma relação forte com os programadores que seleccionaram todos os meus filmes, desde as curtas às longas. Sinto-me muito agradecido por esta relação, porque amo o país – um país de esperança, um país de cinema. Sou um grande fã do cinema português, nomeadamente de João César Monteiro, que considero um dos grandes realizadores mundiais, que me inspira muito, mas também de Manoel de Oliveira e de João Pedro Rodrigues, este pertencente a uma geração mais nova. De João Pedro Rodrigues, gosto de todos os seus filmes, mas considero os seus três primeiros – O Fantasma (2000), Odete (2005) e Morrer como um Homem (2009) – obras-primas poderosas.
Sendo a sua obra um processo de desconstrução de géneros, tanto sexuais como cinematográficos, qual é o seu lugar e de Un couteau dans le coeur num festival de cinema de género como o MOTELX?
A minha relação com o cinema de terror é um pouco estranha. Cresci a ver cinema de género, que foi o meu primeiro território enquanto cinéfilo. Entre os oito e os treze anos, apenas via cinema de terror e fantástico, ou seja, cinema de género. Por vezes, sinto que é um universo muito heterossexual, no qual não me sinto totalmente integrado, mas que faz parte da minha formação e das minhas fantasias, pelo que queria abordá-lo enquanto cineasta. Parece-me que há algo realmente queer dentro deste universo, mas não percebo até que ponto a audiência entende isso.
Nasceu em 1977 e a acção de Un couteau dans le coeur decorre no final da década de 1970. No filme, sente-se uma certa nostalgia por uma época que não viveu. O que o atrai nessa época?
É a fantasia da liberdade sexual, do perigo, de algo eléctrico. Quando olho para os filmes dos anos da década de 1970 que decorrem em Paris, observo uma cidade que desapareceu – uma cidade perdida, absorvida pelo capitalismo, assaltada pela fealdade e pela mesquinhez. Actualmente, Paris é uma cidade feia e difícil de filmar. Nesses filmes, sinto que até a luz nas ruas mudou. Era uma espécie de luz branca azulada, que agora adquiriu tons de amarelo e laranja, que se tornam desagradáveis durante a rodagem. No meu filme, tentámos encontrar essa luz especial que permite construir uma atmosfera especifica. Queria insistir nesse mundo, nessa impressão de perigo, mesmo para um homossexual. Existia a vontade de colocar-se em perigo na busca de mundos obscuros. De certa maneira, talvez seja uma espécie de feitiço que me impele a ir ao encontro da escuridão que existe na sociedade: a existência de uma passagem secreta ou de um clube escondido. Ser homossexual hoje em dia, não é tão fascinante como seria nessa época.
Citando o nome de um filme de Brian De Palma, Phantom of the Paradise (O Fantasma do Paraíso, 1974), no paraíso perdido que o seu filme reflecte, não haverá um fantasma que paira e que se instalará logo a seguir, de forma demolidora? Falo da sida.
A existência de qualquer utopia é frágil. Existem ameaças que a podem abater como se fossem uma bala. No meu filme, as ameaças representam desastres que estão prestes a chegar. Falo de mundos secretos que podem ser destruídos a qualquer momento. Podemos ver o assassino como uma metáfora da sida, mas também como algo diferente. Pode ser uma metáfora da actualidade, da violência e da homofobia, fenómenos que se manifestam de forma crescente. O facto de os homossexuais estarem muito presentes na sociedade, saindo do armário e afirmando-se, tornou-se numa ameaça insuportável para a homofobia, que passou da fúria para o ódio. Em França, as manifestações nas ruas de famílias, incluindo os filhos, contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi uma visão infernal. Muitas pessoas sentiam-se insultadas pela comunidade homossexual – sequestradas pelo medo da vida, da sexualidade e da liberdade – provocadas apenas pelo que se queria expressar e pelo que se poderia fazer na intimidade da cama. É curioso ter mencionado Phantom of the Paradise, embora não seja o meu filme favorito de Brian De Palma, porque voltei a vê-lo durante a preparação de Un couteau dans le coeur. Enquanto trabalhava com Jonathan Genet, que representa o assassino mascarado no filme, entreguei-lhe dois filmes. Um foi Phantom of the Paradise, onde a figura do monstro exibe uma faceta não só grotesca, como trágica. Representando o melhor da juventude de Brian De Palma, é um filme explosivo em termos de exploração de ideias e emoções. Não tem medo de juntar atmosferas diferentes pelo que é um modelo de cinema de terror que me interessa. O outro filme é menos conhecido: Tourist Trap (A Ratoeira, 1979) de David Schmoeller. Sem ser uma obra-prima, é um grande filme de série B sobre um homem apaixonado pela sua mulher morta, que assassina jovens que transforma em manequins. Ambos os filmes têm em comum o compositor Pino Donaggio, colaborador habitual de Brian De Palma.
Dos seus filmes depreende-se que está muito consciente das transformações estéticas da história do cinema: o cinema experimental de Kenneth Anger, o giallo italiano ou a reformulação dos clássicos por Brian De Palma. Entre o cinéfilo Yann Gonzalez e o realizador Yann Gonzalez como é feito o equilíbrio?
São uma única pessoa, em que existe uma troca, como uma conversa entre duas facetas que a definem. Quando estou em produção ou em filmagens, não vejo outros filmes. Preciso de me focar no meu: nos actores, no set design, na direcção de fotografia e no trabalho com os outros técnicos. Considero o processo de casting deveras excitante e importante, que consiste numa busca incessante dos actores certos. Se mostro imagens de filmes de outros cineastas é apenas para sugerir atmosferas.
Nos últimos anos, com alguma regularidade, respondeu a convites de cartas brancas para programar sessões de cinema. Em 2016, programou seis sessões para a Cinemateca Francesa. No passado mês de Julho, o Curtas de Vila do Conde ofereceu-lhe uma nova carta branca. O que é que motiva o cinéfilo Yann Gonzalez a aceitar estes convites?
Se não fosse realizador, seria programador, que vejo como um processo de improvisação e de edição, juntando imagens diferentes para criar ligações e atmosferas, de modo a suscitar na audiência o mesmo amor que tenho pelos filmes. Poder programar na Cinemateca Francesa, por exemplo, demonstrando o amor por filmes pouco conhecidos, para mim é uma bênção.
Também há um investimento pessoal grande, mesmo ao nível financeiro, como quando pagou a nova cópia de 16mm do filme Équation à un inconnu (1979), de Dietrich de Velsa, para ser exibida na Cinemateca Francesa. O que lhe interessou no filme que o levou a financiar a cópia?
Senti-me como um caçador de tesouros. Quando estava a preparar a minha última longa-metragem, ainda antes do processo de escrita, conversei com um especialista em filmes pornográficos gay, Hervé Joseph Lebrun [assessoria histórica em Un couteau dans le coeur]. Apresentou-me a diferentes pessoas ligadas à indústria pornográfica gay, que conviveram com a mulher, cuja história me inspirou. Hervé Joseph Lebrun falou-me de Équation à un inconnu e enviou-me uma velha cassete VHS que continha uma cópia do filme. Era algo incrível, melancólico, que me deixou hipnotizado. Quando Lebrun me contou que existia um negativo do filme num laboratório francês, fiquei tão excitado que não hesitei em o colocar no programa da Cinemateca Francesa. Não era projectado desde o final da década de 1970, quando foi lançado, pelo que decidi fazer uma nova impressão a partir do negativo. Parece-me que foi a primeira vez que um filme pornográfico gayfoi exibido na Cinemateca Francesa, que é muito heteronormativa. Nicole Brenez, que me lançou o convite, deve ser quem tem uma maior atitude queer friendly. Na sessão, que fez parte do programa de cinema de vanguarda, dirigido por Nicole Brenez, havia um grande número de público heterossexual, que mostrava um certo desconforto. No entanto, no final da sessão, muitos expressaram que ficaram impressionados. No futuro, gostaria de fazer uma edição em DVD ou Blu-ray, a partir desta nova cópia.
Em Agosto, em França foi lançado o programa Ultra rêve, que reúne três curtas-metragens – After School Knife Fight(2017) de Caroline Poggi e Jonathan Vinel, Les îles e Ultra pulpe (2018) de Bertrand Mandico -, juntamente com o manifesto Flamme, da autoria dos mesmos cineastas. Como surgiu a ideia de combinar uma sessão de três curtas-metragens com um manifesto? No que consiste o manifesto Flamme?
A ideia de juntar os três filmes veio do produtor que partilhamos, Emmanuel Chaumet da Ecce Films. Depois surgiu a proposta do manifesto, através de Bertrand Mandico, que escreveu a maior parte dele. Vejo o manifesto como a forma de afirmarmos a ideia de romantismo, a necessidade de imaginação, de sonhos e fantasias, trabalhando fora da realidade, mas ao mesmo tempo criar ecos a partir dela. Não se trata de negar a realidade, mas sim adereça-la a partir de outra perspectiva. Trata-se de algo surreal, que pretende evoluir através de uma dimensão diferente, criando ecos por meios mais estranhos. Sentimos que vivemos num mundo difícil e normativo, onde existe a necessidade constante de enfrentar monstros, por meio de um antivírus que possa iluminar a audiência, sob a forma do excesso. Que não tenha medo de numerosas e excessivas emoções. É uma forma de adereçar a monstruosidade das emoções.
Ao juntar quatro cineastas num manifesto colectivo, não haverá o perigo de perder a individualidade?
Não, porque temos filmes e personalidades muito diferentes. Em vez de perigo, vejo uma contaminação por imagens, mas também por técnicos e actores. Trata-se de uma constelação, em que diferentes planetas flutuam no mesmo espaço, alimentando-o com luzes diferentes. Sentimos que existe esta dimensão cósmica. Sou um grande admirador dos outros realizadores pelo que é uma honra partilharmos o mesmo programa.
Historicamente, os manifestos são declarações de princípios e intensões que fazem alertas e denúncias. Neste caso, qual é o problema? Se quisermos colocar a questão de outra forma: qual é o ponto de vista ou a acção que querem convocar?
Falamos da falta de imaginação, mas também de financiamento. Vivemos num mundo ultra-capitalista e ultra-liberal que contamina a maneira como vemos os filmes. A maioria dos filmes é organizada segundo esta visão detestável do mundo. Produzir um trabalho com imaginação e fantasia é como violar a ordem do espectador comum, que está absorto neste incessante e normativo fluxo de imagens. Queremos lutar contra esta torrente insuportável de realidade.
Estarão também a pensar na crítica? O seu filme é muito divisivo nas notas da crítica, indo do excelente até à bola preta, como no caso de Michel Ciment da revista Positif.
Reconheço que é um filme polarizador. Não me surpreende que tenha a crítica mais negativa na Positif, pela mão de um velho idiota – nem falo de Michel Ciment – que disse que o filme era a vergonha do Festival de Cannes. A crítica pareceu-me mal escrita, ridícula, com o único propósito de ser maldosa e mesquinha. Aceito quem rejeite os meus filmes e recuse entrar no meu universo, mas quando é estupidamente mesquinho, parece-me intolerável. Quando era mais jovem, também fui crítico e posso ter sido cruel, mas não passava de um jovem impertinente que precisava de marcar posição. Não compreendo quando esta agressividade vem de alguém com uma longa prática de escrita.
Será que os seus filmes não apresentam uma visão do mundo que pode ser agressiva para algumas pessoas?
Também há homofobia dentro da crítica de cinema. Os meus filmes representam um universo queer, que não se queixa dele próprio ou é apresentado como vítima. A homossexualidade nunca é problema, não precisa de ser verbalizada e acontece naturalmente. É como colocar os elementos de um universo straight dentro de um ambiente queer. Para algumas pessoas, isto é uma visão insuportável do mundo, porque é o reverso da nossa sociedade.
O título Ultra rêve aponta para uma ideia de excesso, algo que aproxima a sua obra da de Mandico. O que também acontece pelo barroco, surrealismo, cores vivas e contrastadas, psicadelismo, onirismo, música electro-pop ou influências das décadas de 1970 e 1980. Como vemos na obra de Nicolas Winding Refn e mesmo num filme que estreou no Festival de Sundance deste ano e que passou na presente edição do MOTELX, Mandy (2018), realizado por Panos Cosmatos e protagonizado por Nicolas Cage, haverá a tendência para esta ideia conquistar o mainstream?
Estamos a alimentar-nos a partir das margens, numa espécie de caminho acidental até algo mais mainstream. Parece-me que, por esta razão, Drive (Drive – Risco Duplo, 2011) foi um grande sucesso. Por vezes, determinada estética pode contaminar séries de televisão, filmes mainstream, mas é positivo que continue nas margens. Pessoalmente, quero sentir e abordar os impulsos das margens ou da contracultura. Com este filme, queria fazer algo mais mainstream, mas não se tornou num sucesso de bilheteira. Quando estava em Cannes, em competição, percebi que fora novamente acolhido pelas margens. Fiquei furioso porque queria ter melhores resultados de bilheteira, mas, posteriormente, acabei por aceitar esta posição. Não gosto de noventa por cento dos filmes mainstream. Se, realmente, o meu lugar é nas margens, não me importo com isso. É onde poderei continuar a fazer filmes, porque é o cinema que amo – um cinema de subversão, de contracultura, mais político e selvagem.
No remake de Suspiria (1977) de Dario Argento, famoso pelas suas cores febris, que estreou em Setembro no Festival de Veneza, o realizador Luca Guadagnino optou por ambientes sombrios e frios. Quer comentar?
Apesar de ser um dos filmes que mais aguardo, ainda não o vi pelo que pouco posso comentar. Vi o trailer e fiquei excitado com o casting. Oferece participações especiais a Jessica Harper, protagonista do original de Dario Argento, e a excelentes actrizes mais velhas como Ingrid Caven e Renée Soutendijk, que participou em Spetters (Viver Sem Amanhã, 1980) de Paul Verhoeven. Sinto que, neste processo de casting, existe um grande amor e esperança no cinema. Ao fazer um remake, parece-me adequado que seja muito diferente do original. Identifico-me mais com cores brilhantes e vivas, que sejam incrivelmente surreais. Creio que Guadagnino quis criar algo mais controlado e que, de certa forma, fosse mais realista. Porque não?
Esta entrevista foi editada e condensada. Agradecemos a João Monteiro e Pedro Souto (Direcção do MOTELX) e a Rita Gomes Ferrão.