Sei que que neste momento estão já ansiosos por me ouvir falar do país, mas contenhamos a expectativa por uns instantes. Começo por uma confissão. Nunca gostei de filmes políticos, de punho no ar. E a minha razão, se bem a compreendo, tem a ver com isto: um filme auto-intitular-se político é a mesma coisa que alguém tentar provar que a chuva é molhada. E à custa de tanto o provar ficamos sequinhos que nem um bacalhau. Um filme político é uma tautologia e portanto a auto-referencialidade acaba – muitas mas não todas as vezes – por redundar em retórica. Mas dito isto, quando um filme procura opor (ou mais suavemente relacionar, roçar) a pila no país e o país na pila, então contem comigo. É o caso dos dois filmes que são objecto do improvável raccord deste mês: Deutschland im Herbst (Alemanha no Outono, 1978) de Alexander Kluge, Rainer Werner Fassbinder, Volker Schlöndorff (e outros) e Oxalá (1981) de António-Pedro Vasconcelos.
O filme germânico, obra de um colectivo de autores de abertura ao novo cinema alemão, é feito logo após o que ficou conhecido na história como o Outono Alemão. Este correspondeu a um conjunto de actos revolucionários que ocorreram em Setembro e Outubro de 1977. Entre eles o rapto de Hans-Martin Schleyer, presidente da marca Daimler-Benz (cujas bandeiras vemos no filme) e presidente da Confederação do Patronato da República Federal Alemã, levado a cabo por membros do Exército Vermelho do grupo Baader Meinhoff e o desvio de um avião da Lufthansa no Aeroporto de Mogadíscio para a Somália. Como as exigências dos raptores não foram atendidas (estes pretendiam a libertação de companheiros de guerrilha que haviam sido condenados a prisão perpétua) outros eventos se precipitaram, como a morte do refém, Schleyer, e a morte na prisão (uns dizem que por assassinato, outros por suicídio) de três dos líderes do grupo Baader Meinhoff, Andreas Baader, Gudrun Ensslin e Jan Cari Raspe. É entre estas mortes – de um lado dos revolucionários, do outro do patrão símbolo – que se ergue este Deutschland im Herbst, um filme feito a várias mãos, com sketches ficcionais, imagens documentais, entrevistas, sensibilidades e soluções à deriva, lutando por um princípio de expiação e apaziguamento.
Poucos anos depois, António-Pedro Vasconcelos assina esta outra obra de ressaca política. Produzida por Paulo Branco e com o fito de autopsiar, social e ideologicamente, um Portugal que havia vivido a sua libertação há meia dúzia de anos. Oxalá tem como protagonista um intelectual exilado em França que regressa pontualmente a Portugal após os anos de principal turbulência, com o intuito de continuar ou romper definitivamente os laços familiares e emocionais que o ligam ao país. Nele deixou uma mulher, uma filha pequena e um conjunto de personagens que, tal qual uma teia proustiana, o vai enredando para novamente atar o que a revolução havia deslaçado.
Para além do que poderia ser o tema genérico de obras feitas em ambiente de ressaca política – até porque Deutschland é um filme feito à flor da pele, resfolegante, e Oxalá é outra coisa, muito escrito, pensado, de um certo dandismo até – é possível ver nos dois vários pontos de contacto.
Na verdade, Oxalá é sobre essa dualidade entre amar um país ou uma causa e amar uma pessoa, a impossibilidade de um, a impossibilidade do outro.
Desde logo porque em ambos podemos ler um espaço de desorientação sobre a pergunta: “e agora, que fazer?” É claro que a obra colectiva alemã, como tecelagem estética e temática de uma certa anarquia, acaba por simbolizar enquanto objecto a fragmentação das posições em momentos de crise. E não esqueçamos que a acrescentar aos problemas da divisão da esquerda ainda havia que rever a forma como o corte abrupto com o fascismo levado a cabo por terceiros e não pelo próprio povo alemão (esta é a opinião de Horst Mahler, um dos radicais presos entrevistados no filme) tinha deixado o terreno livre ao surgimento de movimentos revolucionários. Ou ainda a herança do pós-Primeira Guerra Mundial, as acções e morte de Rosa Luxemburgo, a sombra de Hitler, etc., etc. Mas se Deutschland é um omnibus, Oxalá – apetece dizê-lo – não o é menos. Se bem que sigamos de perto o protagonista, José Caeiro (Manuel Baeta Neves), uma espécie de cruzamento entre Antoine Doinel e Luís Represas, a verdade é que ainda não vimos nada e no genérico já Vasconcelos tem a necessidade de nos avisar para a organização da obra em epílogos, retratos, capítulos e prólogo. Pode dizer-se que isto surge para apresentar (dada a aspiração de José, escritor) uma estrutura literária para o próprio filme. Mas ela também nos deixa “a salvo”, ou precavidos, para uma certa heterogeneidade que é não só formal e meta-cinematográfica – APV surge no filme como aparição e a voz off, com a sua própria voz, dá ordens às suas personagens e acesso aos seus sentimentos interiores – como também de conteúdo, uma vez que José acaba por se ir enredando nesta tal teia de personagens proustianas (às vezes, sentimo-nos tentados a fazer um esquema) e acaba, claro está, por revelar Oxalá como um certo filme-investigação, onde o “repórter” analisa as causas políticas das suas emoções e as causas emocionais das suas políticas. Mas já lá vamos.
Ainda a propósito desta dimensão desordenada há que dizer que os momentos mais fabulosos de Oxalá são mesmos aqueles onde conseguimos sair da teia de referências, eventos, diálogos nouvelle vaguianos e ficamos a sós com a repetição do texto por parte dos actores que se enganaram ou esqueceram (maravilhoso momento aquele em que a menina que faz de filha de José se esquece do que ia a dizer e isso mesmo assim fica na montagem de APV). Ou mesmo naquele belo plano-sequência que vai culminar na morte dos cães nos revela o lado entrevistador de José e o monólogo cheio de hesitações do caseiro. Como se o povo viesse à tona no filme de APV.
Mas falemos finalmente – sei que já estavam ansiosos – de pilas. Talvez fiquem desalentados com o seguinte: a pila de Fassbinder, assim como a do seu amante, Armin, são sinédoques, o que normalmente não é uma grande coisa em relação a tudo o que as pilas podem ser. São sinédoques da nudez em Deutschland im Herbst, ou por outras palavras, consubstanciam a estratégia mais eficaz que no filme podemos encontrar como proposta estética para uma reacção política aos eventos do Outono Alemão. Na altura da recepção ao filme disse-se que o segmento em que surge Fassbinder na sua intimidade com Armin – mas também o momento em que o realizador alemão fala com a sua mãe sobre quais seriam as melhores reacções do Estado às acções transgressoras dos revolucionários – eram aqueles onde o desnorte se dissolvia para dar lugar a uma maior noção autoral. Embora não discorde dessa ideia creio que o tom, a nudez, o quotidiano de Fassbinder são essenciais para que sejam esses os momentos a ficarem marcados na memória do espectador. A decadência desesperada, o álcool, a cocaína, o sexo, os cigarros que Fassbinder nos revela de si próprio, quatro anos antes de morrer, a escrever a série televisiva Berlin Alexanderplatz (1980), balançando entre a depressão e a mania da perseguição política, são reveladores deste fino eixo que, como dizia no início, propõe pôr a nu a forma como a pila roça os destinos de um país, e sobretudo, o vice-versa.
Não é isso mesmo que filma, por outras imagens, Vasconcelos quando nos diz, a certa altura, que “é difícil ser ao mesmo tempo bom marido e bom português”? Não é isso mesmo que diz José quando confessa que nunca voltará a casar nem a entrar num partido, e ambos pelas mesmas razões. Na verdade, Oxalá é sobre essa dualidade entre amar um país ou uma causa e amar uma pessoa, a impossibilidade de um, a impossibilidade do outro. Desta feita, creio que se pode dizer que quer os segmentos de Fassbinder (sobretudo esses), quer o filme de Vasconcelos procuram, na ressaca da política, trabalhar uma certa noção de recolhimento – um saindo do país, o outro mantendo-se refém na sua casa – , precisamente devido a essa delicadeza do trajecto que vai da intimidade para a política e da politica para a intimidade. Golpes políticos e emocionais, os mesmos golpes.
Termino com mais um raccord impossível entre estes dos filmes. Quiçá o momento maior de Deutschland im Herbst, dirigido por Volker Schlöndorff e Heinrich Böll, é aquele em que se debate a proximidade/distanciamento, actualização/integralidade do texto de Antígona para o pequeno ecrã. De que forma Sófocles estaria mais ou menos próximo, seria mais ou menos aborrecido para a Alemanha de finais dos anos setenta? A linguagem, o estilo, o preto e branco da peça que os produtores televisivos debatem (e a presença dos ecrãs televisivos e das câmaras é todo ele um subtexto deste filme-colectivo sobre como é que o cineasta deve posicionar-se/censurar-se ante os acontecimentos) deixam, creio que propositadamente, na sombra a grande lição de Sófocles. A abrir e a fechar Deutschland temos um cartão que nos dá, por outras palavras, essa lição de Antígona: “Quando se chega a certo ponto de crueldade, já não interessa quem começou, só interessa que tem de parar”. / “An einem bestimmten Puckt der Grausamkeit angekommen, ist es schon gleich, we sie begangen hat: sie soll nur aufhören”. Era isso no fundo que nos dizia Sófocles, apelando ao bom senso de Creonte, e era isso que dizia esta mulher germânica, mãe de cinco crianças e de quem não se conhece a biografia, mas que proferiu esta frase nas vésperas da capitulação alemã, após doze anos de jugo nazi.
De certo modo esse “tem de parar” não é para ser apanhado pelas câmaras da televisão que estão muito mais preocupadas com o apagamento do tempo clássico. Pelo contrário, Fassbinder enfrenta a mãe: não é necessário nenhum “ditador bondoso” que lhes venha resolver os problemas (como ela parece defender) nem que o Estado puna, “olho por olho”, “dente por dente”, os revolucionários. O “tem de parar” nas palavras de Fassbinder é a democracia a funcionar. Só isso. A antiguidade de Antígona, nos seus valores de arrependimento (mesmo que vindos tarde demais, é uma tragédia) contra a modernidade alemã. À sua maneira Vasconcelos acaba por filmar a sua versão do “tem de parar”. Oxalá, no fundo um The Graduate (A Primeira Noite, 1967) invertido e de cariz político, termina com o seguinte diálogo entre uns empregado de bar de uma loja em Paris e José: ” E a Revolução já acabou? / Sim. / Tem pena? / É a vida”. A vida continua, para o herói intelectual, num espaço ao abrigo da facilidade. Um espaço conquistado no mundo que Vasconcelos constrói, mundo esse ele próprio meio almofadado, um socialismo de chambre, onde se cita Agustina e Apollinaire e depois se faz xixi. Mas um xixi, à sua maneira, é uma paragem, um “tem de parar”. E é isso que conta.