It is a “miraculous” event: the expression of love by an unfeeling man within an unfeeling environment, the transference of his passion from pickpocketing to Jeanne.
Paul Schrader, Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer
Num filme de Paul Schrader é comum o protagonista enveredar por uma jornada obsessiva que o conduz para perto dos limites da sua sanidade, onde predominam a violência e os impulsos auto-destrutivos, mas também uma estranha sede de redenção. São características presentes em filmes que o cineasta americano trabalhou apenas como argumentista [Taxi Driver (1976) ou Raging Bull (O Touro Enraivecido, 1980), por exemplo], assim como realizador [Hardcore (A Rapariga na Zona Quente, 1979) ou Affliction (Confrontação, 1997), para citar apenas dois casos]. Mas o que faz de American Gigolo (1980) um dos seus trabalhos mais importantes é o facto desta jornada se apresentar, pela primeira vez em Schrader, rumo à Graça, semelhante àquela recebida pelo carteirista de Bresson [Pickpocket (O Carteirista, 1959) é uma referência óbvia neste filme] quando soltava, por trás das grades, um pequeno gesto de amor a uma jovem, um beijo com o pensamento: “Ó Jeanne, para chegar até ti, que estranho caminho tive de percorrer”.
Mas analisar American Gigolo sob uma perspectiva bressoniana é algo de falacioso. Serge Daney aponta bem na sua crítica para os Cahiers du Cinéma quando diz que “um American Gigolo à la Bresson teria que ser um filme pornográfico hardcore”, pois o que une os furtos habilidosos de Pickpocket às manobras evasivas de Un condamné à mort s’est échappé (Fugiu um Condenado à Morte, 1956) é a representação explícita e reiterativa de uma compulsão marginal com uma precisão mecânica e quase documentária. E embora, em American Gigolo, seja tentador associar estas características ao exercício físico e à escolha do vestuário a que Julian (Richard Gere) devota parte do seu tempo, é óbvio que a abordagem de Schrader passa por um patamar moral na sua essência [a única cena de sexo presente no filme serve apenas para referenciar Une femme mariée (Uma Mulher Casada, 1964) de Godard, com fragmentos do corpo do casal a habitarem espaços individuais em diferentes planos]. O que não é pouco. Trata-se de um dos melhores filmes a viver da caracterização do seu protagonista, onde os cenários sofrem reverberações neo-expressionistas motivadas pelos diferentes estados da psique de Julian (algo completamente ausente na austeridade de Bresson) e com cada enquadramento a pensar no físico do actor como elemento de onde parte a composição.

É isto que importa a Schrader, não como o seu protagonista faz sexo, mas como fala dele, não como o rosto apolíneo de Julian, o guarda-roupa Armani e facilidade no andar são feitas ferramentas de sedução, mas sim como reflectem a personalidade narcísea pura.
Tal como Travis Bickle a percorrer as ruelas nova-iorquinas no seu veículo noctívago representava a síndrome da solidão urbana, Julian, com a sua metrossexualidade (ainda antes de tal termo existir) e estilo de vida hedonista, representa o narcisismo e a incapacidade de sentir amor genuíno [o momento em que Michelle (Lauren Hutton) lhe diz “adoro quando me beijas, quando me tocas, mas quando fazemos amor estás em trabalho”, ao que ele responde apenas que se preocupa com ela (e que, portanto, não a ama verdadeiramente)]. A personagem não poderia ser mais ególatra: tenta lucrar economicamente com os favores que os amigos lhe pedem, isola-se de forma voluntária com o seu materialismo intoxicante (revelado pelo acumular de quadros, estatuetas e outros artefactos que preenchem o apartamento) e encara a estimulação de prazer sexual no género oposto como um constante desafio pessoal imposto para a satisfação perversa do seu ego (algo perceptível no momento onde diz que as mulheres que lhe interessam são as mais velhas “porque são as mais difíceis de fazer chegar ao clímax”). É isto que importa a Schrader, não como o seu protagonista faz sexo, mas como fala dele, não como o rosto apolíneo de Julian, o guarda-roupa Armani e facilidade no andar são feitas ferramentas de sedução, mas sim como reflectem a personalidade narcísea pura, e por isso encontramos a câmara do realizador bem apontada para cima da cintura de Gere. O resultado: um dos mais extraordinários momentos de cinema em que um homem se olha ao espelho, e com tudo o que isso implica.
Mas é também visualmente que se dá uma grande transformação em Schrader com este filme (a fotografia sensualista de John Bailey e a faustosa direcção de arte de Ferdinando Scarfiotti muito ajudam), surgindo uma sensibilidade estética mais vistosa, aqui integrada no conceito neo–noir. É a partir de American Gigolo que podemos começar a notar-lhe o uso essencial de sombras e cores garridas acompanhadas de movimentos de câmara insólitos, elementos que acabarão por contribuir para um certo onirismo na sua obra, como as sequências fantasiosas de Cat People (A Felina, 1982) ou as encenações dos livros de Mishima em Mishima: A Life in Four Chapters (Mishima, 1985). Não raras vezes as personagens começarão a entrar num cenário monocromático que reflectirá os seus aspectos psicanalíticos e o subtexto da cena, sendo o espaço usado de maneira menos física do que psicológica. Dois exemplos de American Gigolo: a cena de sedução de Julian com Michelle decorrida num clube com as paredes, os rostos e a mobília completamente revestidos por uma luminescência vermelha, símbolo da carnalidade do convite pré-coital que a manobra do gigolo acarreta; e o momento em que ele entra no seu apartamento para revistá-lo desenfreadamente em busca de objectos comprometedores, convencido de que está a ser incriminado por um homicídio do qual é um dos principais suspeitos. Observemos alguns planos deste último caso, onde ele entra, revista (1a-1c) e destrói alguns dos seus bens (imagens não apresentadas), até finalmente repousar perto da janela (2a, 2b).
A construção dos elementos visuais desta cena representa na perfeição o lado paranóico de Julian. O primeiro aspecto a notar é a composição de todos os enquadramentos predominada pelas linhas das sombras das persianas e janelas por onde percorrem o protagonista e a sua sombra. A metáfora é simples, Julian sente-se vítima de uma armadilha, visualmente expressada por formas similares às de uma teia-de-aranha que transmitem a inevitabilidade de aprisionamento. O segundo é o plongée de 1a a 1c, um ângulo similar ao de uma câmara de vigilância [a nós recorda-nos o derradeiro plano de The Conversation (O Vigilante, 1974)] que destaca a posição de inferioridade de Julian face a uma entidade poderosa desconhecida, assim como a imensidão intimidante do espaço que tem de revistar. O terceiro é a ausência da luz solar (a cena decorre durante o dia) que cobria o apartamento desde o início do filme, sendo substituída por uma transição de cores inabituais, do azul (1a) para o roxo-acinzentado (1b) para o verde-esmeralda (1c), mostrando a intensidade acrescida da dúvida e inquietação do protagonista quanto ao apartamento. Este último ponto é importante, pois é só quando ele destrói parte dos seus pertences de forma violenta até ter a certeza de que não há qualquer objecto incriminatório, que é possível a reentrada da luz solar e o reestabelecimento da segurança de Julian no apartamento. Daí a ausência deste tipo de cores na fotografia do último plano, à medida que ele recupera o fôlego (2a, 2b). Há uma interpretação dupla deste momento, pois ao mesmo tempo que a segurança sobre o apartamento é assegurada (simbolizada visualmente pela subida da luz solar pela parede), ainda é sentida a necessidade de Julian provar a sua inocência (a sensação de aprisionamento transmitida pela permanência das sombras das persianas). Por estas e outras projecções de cores e sombras, conclui-se que o apartamento funciona como receptor da expansão emocional e psicológica do protagonista, deixando de ser um simples espaço para se comportar como um espelho da sua psique.
Retornamos a Pickpocket e às várias vezes que Schrader para ele remete: o nome Michelle (o equivalente nominal feminino do protagonista do filme de Bresson); o facto do discurso entre o gigolo e o detective ser, tal como no filme francês, derivado de Crime e Castigo, onde o protagonista afirma que há pessoas que estão acima da lei, o que Schrader aproveita como um traço adicional da altivez e egocentrismo de Julian; e o já muito apontado final decorrido na cadeia, tão bom quanto o de Bresson, mas por mérito próprio que vai além de citação. Observemos alguns dos planos do campo/contra-campo da primeira visita de Michelle a Julian (A, B), depois deste ser preso, e confrontemo-los com os da segunda (a, b), após ela arriscar o casamento para dar o álibi que poderá permitir a libertação dele, terminando o filme com a ilusão do toque da mão dela na cabeça dele encostada ao vidro, após ele dizer a variação de Pickpocket: “Meu Deus Michelle, levou-me tanto tempo a chegar até ti” (c).
Estes dois instantes são, do filme inteiro, aqueles filmados com maior austeridade. Quando Julian e Michelle conversam na cadeia, a câmara está totalmente fixa e a focar apenas uma das personagens em cada plano, quando não excluindo uma delas do enquadramento. Isto, juntamente com o facto de comunicarem exclusivamente pelo telefone, e na banda sonora predominarem as suas vozes quase sussurradas, contribui para transmitir a sensação de afastamento entre eles e da frieza emocional da cadeia. Mas mais interessante é observar como Schrader coloca as suas personagens, no segundo encontro, numa posição graficamente inversa às do primeiro, mesmo sem ter alterado o lugar físico onde se encontravam. Vemos Julian no lado esquerdo do enquadramento a olhar para a direita na primeira ocasião (A), e no lado direito a olhar para a esquerda da segunda (b), e assim vice-versa para Michelle (B, a). Schrader, por uma clara quebra da regra cinematográfica dos 180º, sugere aqui quase uma inversão de lugares, que pelo sacrifício que há na mentira de Michelle (disposta a colocar-se num lugar perigoso, representado pela posição de Julian no primeiro encontro) à polícia relativamente ao álibi, Julian conseguiu alcançar a liberdade (a prévia posição dela).
E é por Julian sentir o efeito desse acto nobre, essa libertação mais espiritual que física, que conseguirá dizer a dita frase, a única que não precisa de telefone para ser ouvida, capaz de abolir a austeridade a que o final estava submetido. Por isso a câmara abandona a sua fixidez para se mover num travelling calmo, à medida que ele encosta o seu rosto ao vidro para se juntar à mão dela, a presença de ambos, por fim, focada no mesmo enquadramento, dando a sensação da proximidade física adiada, enquanto a banda sonora é ocupada catarticamente pelo sintetizador de Moroder a tocar o concerto para clarinete de Mozart. Terminamos com isso, com um dos momentos mais bonitos que Schrader nos deu, esse final de paixão cinéfila [repetido em Light Sleeper (Perigo Incerto, 1992) e First Reformed (No Coração da Escuridão, 2017)] que nos relembra da transcendência da condição dos corpos com um reencontro de almas num lugar desconhecido, onde a redenção e a Graça são possíveis, bastando apenas, para isso, um pequeno gesto sincero de amor.