Percorremos as paisagens cinematográficas do mês de Outubro. Um filme cantado por Bradley Cooper e Lady Gaga, ou falado em catalão por Carla Simón, uma epopeia japonesa com workshop de equilíbrio, o “eterno retorno” da bondade num filme italiano, o “mundo expressivo à volta da inexpressão do mal” num remake norte-americano e uma viagem aos confins do comportamento humano dominada pela escuridão. Bernardo Vaz de Castro, Carlos Natálio, Ricardo Gross e João Araújo lançam o seu veredicto.
A Star is Born (Assim Nasce Uma Estrela, 2018) de Bradley Cooper
Se um Eddie Vedder autodestrutivo e uma Tori Amos relutante tivessem um romance, isso seria a versão 2018 de A Star is Born. A música que o filme serve não está bem à altura destas possíveis figuras tutelares, mas o cinema com que a mesma é servida gera um efeito emocional à flor da pele que parece honesto, apesar do relativo cabotinismo das interpretações de Bradley Cooper e de Lady Gaga. A dele perde-se numa tentativa de verosimilhança que não convence: Cooper não emana o pathos dos grandes e torturados escritores de canções, a que se acrescenta uma história familiar que pretende justificar o alcoolismo da personagem e que vem a ser uma dependência mais performativa que interior.
Já a Ally de Lady Gaga, apresentada como um patinho feio que parece até desajustado na sua identidade de género, ganha espessura dramática e uma naturalidade que nos leva a dizer que a cantora se superou nesta aventura cinematográfica. O resultado global traduz-se num filme justo mas modesto, sobretudo limitado pelo exercício narcísico do homem que aqui assegura a dupla função de realizador e protagonista. O boneco de Cooper, de epiderme solarizada e grão de voz ensimesmado, não combina com aquela cara ingénua, encimada por um par de estrábicos olhos azuis.
Ricardo Gross
Estiu 1993 (Verão 1993, 2018) de Carla Simón
Há uns dias surgiu-me assim meio de improviso, num debate em que participei acerca do excelente Happy Hour (Happy Hour: Hora Feliz, 2015), a expressão “cubismo existencial”. O que queria defender era a capacidade do filme de Ryûsuke Hamaguchi sempre ir frustrando a nossa tendência de engavetar situações, de pôr de um lado as coisas melhores e do outro as piores. Tudo era possível, de todas as perspectivas, sem hierarquias, com todas as acções e suas consequências, umas boas outras más. Nada melhor do que tudo o resto. Ora, pegando num expressão trabalhada por filósofos como Étienne Souriau ou Bruno Latour – a noção de modo de existência – podemos ser tentados a adicionar algo mais a esta ideia de cubismo existencial. Tal como a noção de modo de existência precisa quer de uma forma específica de ser, quer de condições que veridicção, podemos acrescentar que ao cubismo existencial de Hamaguchi poderiam ser adicionadas as condições de percepção visuais de uma criança, tal como expressas neste Estiu 1993 de Carla Simón.
O fito da autora é autobiográfico. Um filme sobre uma menina de seis anos que perde a mãe (já havia ficado orfã de pai anos antes) e vai viver com o tio, sua mulher e prima para uma aldeia longe da sua Barcelona Natal. Podemos dizer que, narrativamente, o filme busca compilar pequenos episódios vividos por Carla na altura, misturados com sensações, emoções próprias das crianças. E depois um silêncio e mistério muito Víctor Ericianos. Podemos até ir ao ponto de perceber aquele Verão como o momento em que as lágrimas pela morte da mãe (as mesmas que, quando o filme abre, estão secas e invisíveis) hão-de sair cá para fora. Mas aquilo que deslumbra neste Estiu 1993 é precisamente a forma como reinventando o ponto de vista da criança, vamos tendo acesso a fogachos de mundo, de baixo para cima, a brincadeiras, a birras, a cenas incompletas. Ou fugas, asneiras, injustiças e, nos seus interstícios, lá vem o “grande drama”, aquele que se vai instalando aos poucos, aquele para os quais os adultos vão e vêm como que sendo chamados, pontualmente, a uma boca de cena. Carla Simón ganhou um prémio para melhor primeira longa em Berlim e Estiu 1993 vai aos óscares em representação espanhola para um filme rodado em catalão (a arte prega destas partidas à política). Mas o que me parece mais relevante, e que proponho, é que vejamos esta obra como um certo modo do cinema esculpir a percepção infantil. De nos dar acesso a um cubismo perceptivo – tudo é vago e nítido, irrelevante e central ao mesmo tempo -, que é condição de veridicidade desse referido cubismo existencial que podemos ver em Happy Hour. Dois dos melhores filmes do ano que podem ser vistos como ponto e contraponto de um dado multi-perspectivismo, de uma relatividade que vai da couve à alface, do casamento ao divórcio, no espaço de segundos.
Carlos Natálio
Happy Hour (Happy Hour: Hora Feliz, 2015) de Ryûsuke Hamaguchi
Talvez o momento que melhor traduza a totalidade do filme seja a sessão de leitura. Enquanto o workshop procura literalmente o equilíbrio do filme, numa timidez difícil de encontrar no ecrã, disposta a contrariar as regras ao dispor de um tempo considerável numa acção aparentemente inócua; a sessão de leitura procura redimir esse aspecto, ao introduzir claramente a arte no objecto que até aquele momento se parece afirmar como não-artístico. Tal como o “equilibrista”, Hamaguchi procura até ao último episódio de Happy Hour admitir que este pode não ser o trabalho de um cineasta ou de que a série pode não ser capaz de elevar os códigos formais da televisão ao universo do cinema. Porém, este acanhamento nas pretensões escapa por completo às inseguranças do equilibrista-cineasta, ao revelar um segundo episódio que depois da contenção entre salas, desvela a luminosidade dos espaços tal como das suas personagens. Enquanto o workshop confinava as imagens à escuridão e à clausura, tal como as nossas entranhas, o segundo episódio surge sobre o signo de Jun, que liberta da opressão do casamento, manifesta o vigor e a necessidade dos espaços amplos.
Enquanto o primeiro episódio começa num espaço mesmo que aberto, é fechado pelas suas condições atmosféricas, passando pelo workshop e que termina numa sala de audiências de um tribunal – este afunilamento espacial é de uma inteligência enorme –, o segundo episódio parte precisamente dessa mesma sala de tribunal, para revelar a catástrofe na sua plena exuberância. É o exterior cénico que irá suportar o desagregar das relações, porque depois da sala do tribunal há a saída, indicando o início de um reservo cénico – um crescente espacial – pronto para deixar escapar Jun. Enquanto a acção pretende conter as suas personagens – a decisão do tribunal sobre a manutenção do casamento, o pedido do marido de Sakurako a Jun sobre o fim daquelas viagens, a impessoalidade sufocante do casamento de Fumi – são os espaços que revelam as possibilidades de fuga. Por isso a segunda viagem já não é sobre o fechamento do nevoeiro, mas antes sobre a luz – a janela que abre, a cascata que corre – culminando no plano da viagem de barco de Jun (sem dúvida um dos mais belos momentos do filme).
Se no entanto o filme regressa a uma sala na terceira parte, já não é para nos devolver ao interior, porque tudo está à flor da pele. É esta vitalidade que involuntariamente precipita a pretensão tímida do cineasta à concretização de um momento assumidamente artístico. Portanto o “falsário” não regressa e ao artista cabe impor-se. A sessão de leitura é por este motivo a súmula do próprio objecto, a partir do qual assistimos ao pleno amadurecimento das ideias e que tal como o texto revela a fragilidade e desequilíbrios da sua poesia. Tudo se volta a concentrar nesta terceira parte, mas o restaurante, o bar, a casa de Sakurako ou de Fumi, já não são lugares capazes de oprimir e condicionar, pelo contrário, são parcas as paredes para conter esta imensa energia.
Na terceira parte já não é perante o signo de Jun que nos encontramos, mas antes sobre o de Akari. Nesta derrocada total – que no entanto assume os contornos de um aparente anti-clímax – não é a força que sempre esteve lá que se revela, mas antes são as sombras que ganham forma frente à clareza do mar e do céu. Por isso Akari surge plena naquele terraço do hospital, porque é ela agora a coluna vertical de todo o filme. É de uma enorme coragem e inteligência emocional este desfecho, ao devolver à personagem traída e frágil (na primeira parte ela está absolutamente interiorizada e obscurecida, porque é incapaz de ouvir ou deixar ouvir as suas entranhas), a capacidade de cura e a força capaz para se suster e fazer suster (Akari por fim já ouve e deixa ouvir). É por isso que Sakurako termina encostada a Akari naquele terraço, também ela sabe que terá de enfrentar esse processo de regeneração – dela e do seu casamento – revelando assim a importância da amizade e do que esta significa.
Bernardo Vaz de Castro
Lazzaro felice (Feliz Como Lázaro, 2018) de Alice Rohrwacher
Lazzaro felice, vencedor do prémio para o melhor argumento em Cannes este ano, é baseado em parte num caso verídico acerca de uma marquesa italiana que, tendo uma propriedade rural isolada, escondeu dos seus camponeses que o feudalismo havia terminado. Uma perversa e conveniente máquina do tempo digna de um argumento de M. Night Shyamalan ou de um episódio de The Twilight Zone. A realizadora Alice Rohrwacher quis expandir um pouco tal bizarria transportando-a para o seu mundo de fábula, na qual a ruralidade surge como posto último, sagrado, celestial, oposto a uma certa perversão urbana. Em Le meraviglie (O País das Maravilhas, 2014) já isso se explorava, tendo este por base o mundo dos reality shows por oposição a uma infância passada no campo, junto das abelhas (o seu pai era apicultor). Neste seu último filme, a oposição campo/cidade não surge tanto como forma de nos fazer tomar partido por um dos lados, mas é mais o palco de uma recorrente e intemporal luta de classes.
Por isso, Lazzaro estrutura-se em duas partes: na primeira Rohrwacher filma a tal condessa (Nicoletta Braschi) enganando os seus camponeses e na segunda, já após descoberto o “esquema”, a mesma exploração continua, por outros meios, na cidade. As maravilhas de Lazzaro começam aqui, na forma como o caso verídico devém fábula, e a fábula, acto verídico. A transição destes dois espaços nunca é puramente lógica, os raccords de planos e espaços saltam idades impossíveis de comprovar pela razão. Depois temos o jovem Adriano Tardiolo, escolhido entre mais de 1000 candidatos, que faz de Lazzaro. Escolha impressionante a mostrar como o casting pode ser o ponto de partida para uma certa transcendência do rosto e da expressão. A bondade pura – como o burro em Bresson [Au hasard Balthazar (Peregrinação Exemplar, 1966)] -, que, contra a exploração, se ergue como Lázaro e sempre regressa. Independentemente desta leitura funcional e política, há uma outra “política” que importa aferir. Embora se tenha visto este Lazzaro felice como uma espécie de Miracolo a Milano (1951), convém dizer que o “eterno retorno” da bondade pode muito bem passar pelo retorno de um rosto que inaugura um mundo. Uma ressurreição do cinema italiano que visse surgir em Adriano o seu novo Ninetto Davoli. E Pasolini não está 100 por cento arredado deste universo, embora, há que dizê-lo, o filme de Rohrwacher termine com a arma do lirismo apontada à cabeça do espectador. Bach, música esvoaçante, um lobo nobre, um apedrejamento crístico e urbano. Isto, creio, Pasolini nunca filmaria. Mas tudo somado, é um dos mais interessantes filmes do ano.
Carlos Natálio
Halloween (2018) de David Gordon Green
De facto já o esperava. Este Halloween de David Gordon Green é bastante chocho. Não me entendam mal, eu creio que a personagem de Carpenter tem a força suficiente para aparecer a cada 31 de Outubro, o mal renovado por sobre uma máscara branca e inexpressiva. Aliás, basta olhar à volta para ver esse eterno retorno. Um dos problemas desta abordagem de Green é que, na vontade de regressar/actualizar Michael Myers, enrola-se numa história desnecessária de um par de jornalistas (que servem um pouco como aquela carne para canhão que apenas vem reabrir a porta a um universo), perde tempo com detalhes da backstory da filha de Curtis, engendra em demasia o final em formato female empowerment (que é, de resto, um dos motivos, não o único, que contribui para um certo envelhecimento, diria mesmo impotência, da presença de Myers).
Mas há mais coisas a mais: o menino a quem uma das adolescentes faz babysitting é o comic relief (num filme que não aperta ao ponto de precisarmos de libertação), a inabilidade narrativa para lidar com a fetichização da icónica máscara, mesmo um certo overacting de Curtis, apesar desta ser, em formato war maverick, um dos pormenores interessantes deste regresso. Para utilizar uma metáfora poderia dizer que o filme de Green está demasiado preocupado em construir um mundo expressivo à volta da inexpressão do mal, ao ponto de ir, em travelling lento, expulsando o mal de um filme que é suposto ser acerca desse próprio mal. Paradoxo, ou talvez nem tanto. Este Halloween assemelha-se um pouco a um produto que tivesse sido objecto de aturado controlo sanitário, escrito com um olho na narrativa e outro na ASAE. Mas nem tudo é mau. O que mais me agrada neste regresso, além dos momentos em que se procura tecnicamente evocar o original – por exemplo, o plano sequência que vai do martelo à faca, na matança na vizinhança, em plena noite de Halloween – são os pequenos indícios que temos de uma certa multiplicação do mal. Quer na personagem de médico de Myers, que quer sentir o que o seu paciente sente ao matar, quer na própria obsessão de Curtis, convertida num duplo não menos violento e indestrutível do seu irmão. Contas feitas, o Halloween (Halloween – O Início, 2007) de Rob Zombie continua a ser o melhor regresso à saga desde os anos oitenta.
Carlos Natálio
Hold the Dark (Para a Escuridão, 2018) de Jeremy Saulnier
Um filme a dois tempos, Hold the Dark é ao mesmo tempo uma intrigante história de investigação criminosa e uma insípida contemplação sobre a natureza animalista do Homem. Jeremy Saulnier movimenta-se por terrenos sombrios do comportamento humano, e depois de Blue Ruin (Ruína Azul, 2013) e Green Room (2015), este filme mantém o foco sobre um existencialismo lúgubre. O filme acompanha Russel, especialista em comportamento animal, em particular de lobos, que é chamado a uma remota localidade a pedido de uma mãe, depois do seu filho ter desaparecido, raptado por animais, um acidente trágico que repete-se naquela área. O ritmo lento do primeiro terço do filme, que demora-se nas ocorrências da vida quotidiana e da acomodação às condições agrestes, prepara o espectador para uma representação naturalista – isto é, próxima de uma realidade impiedosa – e evoca o legado do anti-herói solitário à procura de redenção, próprio dos westerns, porém o filme desvia-se deste rumo ao associar à chegada de Russel uma conduta misteriosa por parte da mãe, que parece indicar que nem tudo é o que parece, ou que certas coisas não têm uma explicação simples. Fica assim aberta a janela para um embate entre Russel, homem da ciência e da lógica, e as tradições locais e um ocultismo que pairam de forma ameaçadora sobre aquelas terras e o percurso da investigação de Russel.
Tudo complica-se com a entrada em cena do pai da criança desaparecida, que regressa de um destacamento militar num país no médio-oriente depois de ferido em combate, para encontrar a sua família em destroços. É a personificação de um verdadeiro animal ferido, e portanto perigoso e em descontrolo, próximo assim também de outras personagens que Saulnier examinou antes. Não há dúvida que Saulnier é exímio em criar um ambiente sufocante e ofuscante (a fotografia é impressionante), mas aqui o argumento desvaloriza esse trabalho de composição visual: a naturalidade com que a violência se propaga, e por consequência a morte, e a sua integração no dia-a-dia daquela comunidade como algo iminente e perene [algo também presente nas obras de Taylor Sheridan, como Wind River (2017) e Hell or High Water (Hell or High Water – Custe o Que Custar!, 2016)], e que repete um olhar fatalista sobre a humanidade presente nas obras anteriores, é desmontado pelos desvios esotéricos da história e pelo carácter sobre-humano ou sobrenatural do pai e da mãe e pelas suas motivações. Certos eventos no filme colocam-nos lado a lado com a personagem de Russel, como um estranho a tentar fazer sentido do que vê, mas criam uma barreira intransponível: ao tornar o comportamento do pai e da mãe da criança desaparecida carregado de algo transcendental, mais próximo do animal do que do humano, retira precisamente essa componente humana, que era o sustentava o fascínio pela espiral em que entravam as personagens. Contudo, é preciso referir que o filme reserva-nos uma entusiasmante sequência, e algum do melhor diálogo a que assistimos recentemente (num filme que contém algumas linhas de diálogo sofríveis), no retrato de um stand-off entre dois lados prestes a entrar em guerra, como se estivéssemos naquela calma temporária do olho da tempestade, sabendo o que vai acontecer a seguir – quase que justifica o interesse neste filme.
João Araújo