Integro este ano a oficina de escrita de crítica de cinema Talent Press Rio (parceria entre o Festival do Rio, o Berlinale Talents, o Goethe Institut e a Fipresci) e por isso escrevo da outra margem do Atlântico, da cidade maravilhosa, sobre alguns dos filmes brasileiros que vi nos primeiros dias do festival. Depois da primeira parte, chega a hora da sequela. Mas mais ainda há-de vir, m’ aguardi!
Meu Nome É Daniel (2018) de Daniel Gonçalves
A equipa de programação do Festival do Rio está particularmente atenta (como aliás, parece ser o caso na comunidade do cinema como um todo, aqui no Brasil) às questões da representação e da representatividade: filmes com e de mulheres, filmes com e de pessoas indígenas, filmes de e com pessoas negras, filmes de e com pessoas LGBT, filme de e com pessoas com deficiência. Meu Nome É Daniel é um filme que se centra na ideia de subjectividade já contida no título, sendo por isso um objecto feito na primeira pessoa, uma apresentação de si (e de uma identidade) e de forte componente confessional. Daniel Gonçalves tem um deficiência motora muito debilitante e este filme, a sua estreia na longa-metragem retrata o seu percurso de vida de cerca de três décadas. Composto em grande medida por filmes familiares (em Super8, VHS e Mini-DV) e por uma narração muito presente (feita de intimidade e humor) o realizador criou um objecto que é, mais do que qualquer outra coisa, uma reflexão sobre o poder das imagens em movimento (e das câmaras) no desenvolvimento de uma personalidade, evitando (como afirmou na sessão de debate após o filme) “tanto o discurso do coitadinho, como o arauto da superação” – dois clichés típicos do retrato das pessoas com deficiência, transformadas quase sempre em ferramentas de auto-ajuda para o espectador que vive sem enfermidade poder abrir espaço a uma reavaliação da sua percepção das dificuldades.
Mas como dizia, o pensamento ultra-pessoal sobre as imagem em movimento é o que mais surpreende no filme de Gonçalves. É sabido, pelos estudiosos do home movie, que este “sub-género” está repleto de esquemas e soluções reconhecíveis: a figura paterna quase sempre ausente da acção (por ser ela que segura a câmara – algo que o realizador prontamente inverte quando é a sua vez de segurar a câmara e a apontar ao pai), a constante correcção do movimento e da postura das crianças, a prevalência de eventos sociais como festas de anos e natais, etc. No entanto, no caso da família do realizador, a câmara caseira, além de servir esses propósitos, também foi um espaço de reconhecimento e de re-avaliação pela auto-representação. Daniel descobriu nessas imagens um corpo e uma voz que não coincidiam com a imagem que tinha de si , e nesse não-reconhecimento criou-se uma brecha que serviu de molde a um desenvolvimento. Não por acaso estes filmes (e a extraordinária montagem do filme, ele mesmo) são feitos e refeitos várias vezes: o almoço de Daniel em diferentes idades para poder acompanhar a evolução da sua coordenação, as peças de teatro familiar que são refeitas entre a adolescência e a idade adulta, entre outros. A ideia de remake nestes filmes caseiros está intimamente ligada a esta consciência da imagem como algo que se constrói através do jogo de espelhos entre representações (de si, dos outros, do olhar da câmara, do olhar médico…). E mais importante, a consciência da possibilidade de repetir e refazer uma imagem abrem por isso espaço à falha, porque é nela que se pode crescer. E Daniel falha: estampa o carro no primeiro plano do filme, não consegue acender o fogão nem à terceira tentativa… E dessa falha produtiva surgem deliciosos gags cómicos onde se descobre, afinal, a humanidade de um indivíduo e do seu olhar sobre o mundo.
Morto Não Fala (2018) de Dennison Ramalho
Se referi os gags cómicos num documentário sobre crescer com a deficiência, também os devo referir sobre um filme de terror. Segundo o meu olhar, Morto Não Fala não me fez propriamente rir (é raro rir-me com filmes deste género), mas a plateia riu – nervosamente – várias vezes ao longo da obra de estreia do Dennison Ramalho (estreado no mais importante festival de cinema de terror do mundo, o Fantasia, e que já passou por Portugal, no MOTELx – integrando a cobertura do Luís Mendonça). Esse humor, qual escape de uma panela de pressão, surge de forma aparentemente não programática, mas que resulta da componente fantástica inverosímil que o filme propõe. Ramalho não procura justificar a habilidade do seu protagonista de falar com os mortos, aliás, este seu dom é-nos apresentado a seco, poucos minutos depois do início do filme. É assim, e pronto, lidem com isso. Há portanto uma qualidade muito desembaraçada dos trâmites tradicionais da narratologia comum dos guiões de cinema. Não que eles lá não estejam (todos e pela ordem), mas são reduzidos aos mínimos denominadores comuns. Tudo é despachado com golpes certeiros, sempre no limite do traço grosso, da caricatura. Essa é, realmente, a primeira percepção: de uma sucessão de personagens planas, arquétipos proto-telenovelescos, do marido corno à mulher cabra, do adolescente marginal à vizinha delicada. Mas em boa verdade esse retrato em linhas rápidas transforma-se, com a duração do filme, numa descrição cada vez mais complexa e com cada vez mais profundidade (um exemplo evidente, o paradoxo que o filme subtilmente constrói sobre a questão da religião evangélica e os seus pastores mediáticos).
Mas Dennison Ramalho é neste filme, mais do que um contador de histórias, um construtor de situações eminentemente visuais. Por um lado, há um personagem chamado “sujo” e todo o filme tem essa qualidade pesada, encharcada, bafienta, pastosa e lúgubre. Por outro lado, há um prazer evidente na produção de momentos que trabalham acima de tudo o choque do olhar ou a referência imagética. Desde a citação directa a George A. Romero com a mão saindo da cova no meio da noite, passando pelo twist gore da festa de anos do filho mais velho, ou mesmo o desenlace, com o fim da possessão, são tudo cenas que vivem de uma visualidade que não depende nem da palavra nem da profundidade do personagem, pelo contrário, são como que signos de horror reduzidos a uma qualquer essência dramatúrgica. Imagens estas que vivem, fortemente, de um imaginário que se supõe (sem dificuldades) bem recheado por uma cinefilia feita de cinema de culto – é evidentemente um filme de aluno ávido do género. Mas o que mais me tocou é a parábola sobre as famílias complexas que marcam as vivências contemporâneas, uma vez Morto Não Fala pode ser, afinal, resumido como a história de uma união de facto assombrada – literalmente – pelo fantasma da ex-mulher – cristalizado numa das últimas linhas de diálogo em que esse fantasma afirma “hoje os meninos vão ficar com a mamãe”.
Domingo (2018) de Clara Linhart e Fellipe Gamarano Barbosa
Um tango argentino toca na trilha sonora, surge escrito numa tipografia clássica a palavra “Domingo”, o segundo plano do filme apresenta três personagens alcoolizados, deitados em espreguiçadeiras, junto à água, as crianças brincam e na primeira linha de diálogo ouve-se “que saudades tenho de Buenos Aires”. Só não percebe quem não quer: Domingo é uma espécie de remake brasileiro de La Ciénaga (O Pântano, 2001) de Lucrécia Martel em versão comédia sexual de des-enganos – ou, mais do que um remake, uma colagem, já que a primeira versão do argumento data exactamente de 2004, quando o Novo Cinema Argentino começava a transformar-se em cânone da contemporaneidade. Aqui encontramos uma mesma burguesia decadente, o mesmo ambiente pantanoso (onde a piscina foi substituída pelo rio – mas onde a casa colonial se desfaz em caliça) e o mesmo conflito de classe entre a família rica e os criados (antes indígenas, agora negros). Mas onde La Ciénaga levantava já várias questões sobre a interiorização do colonialismo na sociedade argentina, que agora Zama (2017) ataca de frente, Domingo trabalha isso segundo o ponto e vista da política contemporânea brasileira: tudo se passa em 2003, no dia da tomada de posse de Lula da Silva. Era portanto para ser uma sátira (de inspirações buñuelianas ou vinscontianas) sobre o fim de uma época, ou início de uma outra, onde os antigos privilégios se democratizavam e já só restava o fogacho das aparências (cristalizado no baile de debutantes que encerra o filme). No entanto, por questões de produção, o filme só ficou pronto em 2018, o que lhe dá um sentido diametralmente oposto. Já não é a vingança do proletariado, tudo virou profecia negra sobre a ascensão do fascismo (o anti-petismo como ideologia dominante nas faixas da população mais ricas e com mais formação superior).
Uma personagem diz a certa altura, “quero ver o circo a arder” e de facto a dupla de realizadores delicia-se nesse fim de tempo onde tudo está à beira de se desmoronar. E perante a queda inevitável só resta beber, beber, beber, snifar, beber, foder e beber um pouco mais. Aí o filme encontra o seu centro, no humor triste e desesperado feito de portas trancadas e de trancas abertas. Especialmente quando se filmam cenas de conjunto, onde a dúzia de actores do filme ocupam todo o espaço e se movimentam elegantemente em redor de uma câmara que flui pelos rostos e pelos gestos de cada um deles. Claro que tudo está ensopado de uma má consciência de classe, típica de muito cinema brasileiro feito por cineastas de classe média alta (vejam-se os filmes da família Salles). Mas tomara que essa fosse a causa maior do incómodo. O que confrange é o peso de uma moralidade que persiste em condenar (mortalmente) o único personagem pobre e de direita. Fim trágico, é certo, mas profundamente ideológico – o que contraria uma vontade de humanismo que atravessa todo o filme. Fica-me a voz de Lula, no seu discurso de tomada de posse, feita assombração do conturbado presente brasileiro.
A Sombra do Pai (2018) de Gabriela Amaral Almeida
O colega walshiano Francisco Noronha, que frequentou também a oficina de escrita Rio Talent Press, em 2017, enamorou-se de Animal Cordial (2017), o filme anterior da realizadora. Não o tendo visto, mas tendo sido infectado pela curiosidade aguçada de uma forte recomendação, dirigi-me à sessão de A Sombra do Pai com expectativas talvez demasiado altas. Situação agravada por ter sido também o último filme dos meus visionamentos brasileiros (o que o sobrecarregou com as imagens dos vários títulos que me tinham rondado o olhar na última semana). Por isso mesmo não consegui desvincular o filme de Gabriel Amaral Almeida do já referido Morto Não Fala, filme com o qual partilha uma série de lugares-comuns: uma semelhante família quebrada (em ambos a figura da mãe esta ausente, e a sua presença fantasmática influi no quotidiano dos vivos), uma semelhante figura paterna autoritária interpretada por actores em overacting, uma semelhante lacuna afectiva na descrição dos personagens criança, o mesmo tratamento dos objectos do morto na sua relação evocatória (e invocatória – num é o anel de casamento, no outro uma medalha de trazer pelo pescoço), um mesmo retrato suburbano das grandes metrópoles brasileiras (o trabalho mal pago, violento e a constante sombra do desemprego), entre tanto mais (há linhas de diálogo que coincidem quase perfeitamente, formando um estranho coro de ecos e ambos os filmes citam directamente o filme inaugural de Romero). Claro que o tom do filme de Ramalho está muito mais perto do cinema de culto (um gore irónico), enquanto que o filme de Amaral Almeida é o de bom aluno do “cinema de fluxo” contemporâneo.
A Sombra do Pai é um filme de uma enorme planura (como me comentava um amigo, depois da sessão, “falta-lhe rugas”) tanto ao nível da própria composição da imagem (parece uma mera ilustração competente de um argumento trabalhado) retratando tudo em primeiro plano, como plana é também a sua estrutura narrativa (o desenlace é muitíssimo espectável). Mais que isso, o filme anuncia constantemente soluções que nunca chega a resolver (por exemplo, a suposta transferência de poderes entre as amigas que nunca é prosseguida – aliás, a personagem da amiga eclipsa-se a certa altura – ou a introdução do coelhinho maléfico que também nunca mais é explorada). Amaral Almeida tem dificuldades em gerir expectativas, iniciando o filme com uma série de momentos virtuosos (especialmente na montagem – de Karen Akerman -, veja-se o primeiro raccord do filme com a marreta, ou a dinâmica entre a longa duração e os momentos muito sincopados) que anunciam um sofisticação que se esvai em fórmulas muito batidas. O que se consubstancia num clímax que apesar da sua doçura “cafona” não deixa de ser uma materialização óbvia e muito pouco subtil daquilo que todos os elementos do argumento já anunciavam de forma descarada – portanto sem surpresa e, logo, sem graça. O que me toca é a riqueza dos ritos mágicos que o filme percorre, riqueza essa que serve, afinal, de fogo de vista para a brandura de tudo o resto (feito de “Santos Antónios” mergulhados de pernas para o ar em água ensanguentada, dentes enterrados como feijões no solo fresco, tesouras que cortam as ligações dos espíritos… enfim, um mimo para apreciadores das mesinhas do oculto).