Integro este ano a oficina de escrita de crítica de cinema Talent Press Rio (parceria entre o Festival do Rio, o Berlinale Talents, o Goethe Institut e a Fipresci) e por isso escrevo da outra margem do Atlântico, da cidade maravilhosa, sobre alguns dos filmes brasileiros que vi nos primeiros dias do festival. Mais há-de vir, m’ aguardi!
Los silencios (2018) de Beatriz Seigner
Tudo começa no breu: águas escuras, uma jangada flutuando, alguém segura uma lanterna, o pântano nocturno acende-se numa estreita faixa luminosa, silêncio. Neste primeiro plano de Los silencios são dispostos os elementos principais que constituem o filme de Beatriz Seigner. Na verdade, esses elementos são compostos num constante jogo de contrastes. Mais não fora, este é simultaneamente um filme sombrio onde a iluminação se torna preponderante, na construção de atmosferas e como ferramenta narrativa. E também, sobre a territorialidade específica de um enclave amazónico sob fortes tensões económicas e geopolíticas que se descobre inundado por um lodo informe que tudo uniformiza e tudo equivale. É ainda um filme onde convivem smartphones com máquinas de costura a pedal, onde se fala em ser-se “limpa” mas se tem medo da água, onde entram actores profissionais com outros que interpretam versões de si, onde o formato de imagem larguíssimo trabalha o quadro sempre em eixos cruzados (e quase sem profundidade de campo) ou, além do mais, um filme onde coexistem os mortos e os vivos.
Será abusar da paciência do leitor afirmar que a realizadora parece imbuída pela teoria dos contrastes simultâneos do pintor oitocentista Eugène Chevreul, mas o clímax fluorescente do filme parece a isso aludir directamente. De facto, tudo em Los silencios trabalha o choque entre elementos, em especial no modo como faz convergir um misticismo quotidiano (à la Apichatpong) com a realpolitik fantástica dos refugiados e dos acordos de paz entre o governo colombiano e as FARC. Sendo que o resultado dessas oposições tonais parece ter por fim, apesar do peso de uma fotografia perfeccionista e de uma vontade documental, uma delicada ironia, recheada de humor negro (por exemplo, pergunta-se a certa altura a um fantasma se aceita o valor da indemnização da sua morte). Talvez por aí, através desse sentido de humor torcido, se perceba melhor o twist shyamalaniano que, a despropósito, procura coser o que se encontrava disperso e literalizar o que se achava simbólico.
Gilda Brasileiro – Contra o esquecimento (2018) de Roberto Manhães Reis e Viola Scheuerer
Câmara que filma outra câmara; uma voz trémula; uma lágrima descendo o rosto; “as pessoas têm que acordar”; uma fotografia surge lentamente, mergulhada no líquido revelador; uma narração em tom arrastado. Gilda Brasileiro – Contra o Esquecimento: dois realizadores, quatros filmes, um para cada mão. Primeiro, um filme-retrato de Gilda, uma mulher que investiga a herança esclavagista da sua cidade, Salesópolis. Depois, um filme-investigação, sobre os documentos, sobre as ruínas dos postos comerciais de seres humanos, sobre os testemunhos dos mais velhos que ainda conheceram os resquícios desse horror. Mas também, um meta-filme, sobre o processo de fazer cinema, de enveredar pelo mato de câmara em riste e confrontar os descendentes dos mercenários nas suas confortáveis mitologias. E por fim, um fotofilme-ensaio, feito a partir de negativos do final do século XIX onde as imagens de publicidade da cultura do café se fazem testemunho de uma realidade (Didi-Huberman ficará contente).
Este é um filme que se des-multiplica em soluções visuais, ao ponto de estas se tornarem contraproducentes. Ainda assim, apesar das convulsões que desarranjam o emaranhado documental, fica a solenidade de Gilda, de cigarro entre os lábios, olhando o verde. E, claro, um sorriso desarmante encontrado nos confins do esquecimento. É esse o ponto mais certeiro do filme, a relação entre a materialidade dos documentos fotográficos e o acesso ao que estes contêm. Os realizadores partem de um conjunto de fotografias onde se encenam os vários momentos da produção do café e descobrem nelas evidências de trabalho escravo e infantil. Só que esses negativos surgem num confronto com a (in)definição da imagem, feita (in)definição da própria História: o pontilhismo da impressão a jacto versus a brilhante definição dos daguerreótipos. Porque no acto de revelar as fotografias, de as digitalizar e de investigar os seus recantos, os realizadores reflectem afinal o processo de Gilda, que descobre, clareia e re-define o passado.
Deslembro (2018) de Flávia Castro
É um excerto do Livro do Desassossego de Fernando Pessoa que dá o título ao filme de Flávia Castro, excerto que é lido mais do que uma vez pelas personagens: “meu passado / não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui, / está confusamente deslembrado / e logo em mim enclausurado fui”. Só que o caos identitário pessoano (nas suas múltiplas encarnações heteronímicas e nos seus desencontros fingidos) choca com a lisura quase anónima de Deslembro. Neste filme tudo está perfeitamente polido, não há superfícies irregulares, não há desvios nem desleixos. E diante disso a minha mão escorrega, não tem por onde se agarrar: é um filme impecável e por isso um filme lúbrico, esquivo. Só que esse lustro não é bem o de pedra preciosa, antes o de estátua de bronze em lugar de passagem, por onde todas as mãos afagam o pé do monumento até este ficar dourado. É a primeira longa-metragem de ficção da realizadora e demorou quase uma década a ser produzida. Nesse processo (entre laboratórios de escrita, co-produções internacionais, e demais demandas – e de-mãos) qualquer espontaneidade de obra de estreia se esvaiu na segurança de um retrato doce e íntimo, é certo, mas segundo o olhar de um taxidermista ou de um pintor de naturezas-mortas.
Mais triste pelo facto de se perceber que muito daquilo que é a história do filme é profundamente pessoal: um despertar para a idade adulta de uma filha de pai vítima da ditadura militar brasileira e de padrasto militante da resistência chilena. Depois da Diário de Uma Busca (2010), a realizadora prossegue o seu mapeamento afectivo das sequelas familiares que os espíritos revolucionários da esquerda dos anos 1960 e 1970 deixaram junto dos seus entes queridos. Raízes culturais estilhaçadas por diferentes nacionalidades, hábitos e línguas. Isso é o que de mais belo há em Deslembro: a verdade que se descobre no processo de “adaptação” de uma adolescente a um novo país, segundo uma percepção sensorial feita de chuva, areia, cheiro a livros, charros, sexo… Verdade essa enclausurada num perfeito diorama histórico.
THF: Central Airport (2018) de Karim Aïnouz
No título temos o nome de um edifício e nos primeiros planos do filme somos levados numa visita turística a esse mesmo espaço: enquadramentos distantes, olhar arquitectónico, pessoas reduzidas a formigas, simetria e monumentalidade de uma construção fascista (o aeroporto de Tempelhof construindo pelo regime nazi). Estas parecem ser as marcas autorais do cinema de Aïnouz, cineasta brasileiro a viver e trabalhar em Berlim. Releio o que escrevi sobre o seu filme anterior a estrear em Portugal, Praia do Futuro (2014), e parece que estou descrevendo THF: “contenção é coisa que não lhe falta”; “filma quase sempre com uma distância higiénica todo o drama que põe em cena”; “cinema (…) à medida dos festivais, meio oco e ultra atmosférico” e “ainda assim ficou comigo uma certa sinceridade no retrato das relações, no desenvolvimento das personagens e na ideia do estrangeiro”. Se autor é aquele que faz sempre o mesmo filme, aqui está a prova disso (ou de que o meu olhar sobre o cinema de Aïnouz não se alterou…).
O realizador parece procurar um meio termo entre esse olhar de betão e uma aproximação íntima, dando protagonismo a um jovem refugiado sírio que passa quase dois anos num hangar desse aeroporto à espera de receber o estatuto legal que lhe permita residir no país (personagem cuja presença não suporta de todo o propósito dramático do filme). Esse protagonismo passa por uma presença em campo muito regular e pela introdução de uma narração quase diarística que descreve as vivências e as memórias, ao longo de doze meses. Claro que a frieza do olhar procura reflectir a própria frieza burocrática do processo do personagem, mas acaba por se tornar também ferramenta narrativa tão clássica que roça o esquematismo (um perfeito arco aristotélico construído com o ciclo das estações – Verão, Inverno, Primavera). No entanto, no seu registo observacional, o documentário de Aïnouz acaba por demonstrar um olhar dedicado e exaustivo. Capaz de se demorar sobre as coisas até que estas se revelem perante a câmara (vide a aparição da raposa). Técnica wisemaniana que o realizador parece citar directamente quando descobre uma colmeia dentro do terreno do aeroporto e vê nela uma metáfora das migrações humanas – como fazia o documentarista norte-americano em La Danse (2009).
Chuva É Cantoria Na Aldeia Dos Mortos (2018) de Renée Nader Messora e João Salaviza
Filmar os povos indígenas (brasileiros ou de outras partes do mundo) envolve sempre um processo de intenções complexo que se relaciona com as questões da alteridade, do olhar possivelmente “exoticizante”, da perspectiva exterior da câmara, a possível perversão e apropriação do “lugar de fala” dos indígenas, do perigo da excessiva “antopologização” essencialista do rituais ou da redução daquelas pessoas a bandeiras de causas que lhe são estranhas ou a totens de uma certa ideia de ancestralidade new age (para não referir os casos de mera ignorância racista, quando os indígenas são representados apenas como povos primitivos e perigosos assassinos canibais). Os primeiros minutos do filme de Nader Messora e Salaviza são particularmente importantes na forma como parecem expor esse “processo de intenções” de forma clara mas também simbólica: numa espécie de noite americana azulada conhecemos uma figura masculina por entre a vegetação, quase confundindo-se com ela, por vezes imperceptível, planos fixos, quase abstractos de tão escuros. Depois a câmara, ao ombro, inicia um movimento que segue o seu protagonista, só que o seu olhar desce e fixa-se nas costas dele. Nelas projectam-se os raios de lua filtrados pelo rendilhado das folhas e das árvores altas.
As costas feitas tela, o corpo feito ecrã, o meio projectado no homem e o homem projectando-se no meio. Aqui aparece a simbiose improvável entre a vivência narrativa do povo Krahô e o olhar dos realizadores que encontram nesse modus vivendi um reflexo do próprio cinema. É que tudo são histórias, imagem e sons na tradição mitológica desta comunidade e como tal, tudo é (ou pode ser encarado como) cinema em potência. Mas a sequência prossegue num jogo de fora de campo e num efeito especial algures entre Apichatpong e Méliès. De facto, o olhar desta ficção antropológica está crivado de cinefilia: nessa sequência pré-créditos, podíamos estar em I Walked with a Zombie (Zombie, 1943) de Jacques Tourneur, logo depois dos créditos a câmara enquadra as casas de telhado de colmo como se estivéssemos num dos filmes de época medieval de Kenji Mizoguchi – podíamos estar em Sanshô dayû (O Intendente Sansho, 1954) e o final cita directamente Ugetsu monogatari (Contos da Lua Vaga, 1953) – e a forma como os realizadores trabalham a luz muito quente e as cores muito vivas e contrastadas (extraordinária fotografia de Nader Messora) remetem para uma estética de estúdio e para sistemas de cor dos anos 1950. E claro, o cinema de Jean Rouch é uma referência assumida que se efectiva na forma como Chuva não se prende nem reduz na antropologia visual e trata os seus personagens como pessoas e não como espécimes raros que necessitam ser tratados com extremo cuidado e deferência, preservados na sua pureza. Nader Messora e Salaviza filmam primeiro pessoas e depois filmam as suas histórias e tradições – o método rouchiano da “antropologia partilhada”.