O LEFFEST – Lisbon & Sintra Film Festival abre hoje com vontade de surpreender. Há uma dimensão “caixa de surpresas” na programação do LEFFEST: nunca sabemos se, ao virarmos a página, vamos surpreender na programação a presença de um dos cineastas do nosso panteão pessoal – Abel Ferrara, David Cronenberg, James Gray, Jim Jarmusch, etc. – ou se vamos dar de caras com aquele(s) filme(s) daquele(s) realizador(es) que há muito queríamos ver, mas não tínhamos como – Artavazd Pelechian, Robert Frank, Hans-Jürgen Syberberg, Hou Hsiao-Hsien, os Rossellinis televisivos, etc. Em certa medida, vai-me parecendo que o LEFFEST é, neste sentido, um pouco feito à imagem do seu director, Paulo Branco, que enquanto produtor de cinema sempre contrabalançou as apostas de risco, arrojadas e até exploratórias, com a sedimentação de um certo cânone.

Da mesma maneira, para esta edição, o festival mantém o pendor intermedial. Há poucos festivais em Portugal em que possamos dizer com tanta propriedade que uma sessão raramente é apenas uma sessão. Normalmente, agarrada a ela, vem uma carta branca, uma masterclass, uma exposição em museu, um encontro, um colóquio ou mesmo uma performance. Aliás, pode já riscar: está esgotadíssima a palestra-performance que Laurie Anderson vem dar no Espaço Nimas. Mas reserve no calendário uma ida ao MU.SA – Museu das Artes de Sintra, em Sintra, para ver a exposição de fotografias de nada mais nada menos que David Lynch: Small Stories é só um dos eventos que celebram a vida e obra do realizador de Twin Peaks: The Return (2017) (por exemplo, vão passar os dois primeiros episódios da nova temporada da mítica série no grande ecrã). Enfim, o LEFFEST é mais um ecossistema que um festival. Mas como podemos habitá-lo?
O espectador é mais conservador e não gosta de apostas de grande risco ou tem pouco espírito aventureiro? Existem sempre as apetitosas “antestreias” de alguns dos títulos que têm tudo para marcar este e/ou o próximo ano cinematográfico. Por exemplo, vá à boleia da Palma de Ouro e veja o novo drama familiar do japonês Hirokazu Koreeda, Manbiki kazoku (Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões, 2018). Ainda do Japão, e na sequência do verdadeiro estrondo que foi para nós Happy Hour (2015), Ryusuke Hamaguchi faz-se representar no festival com o seu mais recente filme, Netemo sametemo (Asako I & II, 2018) – o realizador levantou o véu sobre este projecto em entrevista ao À pala de Walsh. Mantendo-se no continente asiático, pode ainda o espectador dar uma chance ao chinês Di qiu zui hou de ye wan (Long Day’s Journey Into Night, 2018), cujo virtuosismo técnico tem deixado muita gente de queixo caído. Ou então vá pela certa de um melodrama histórico bem burilado (será?) da autoria do alemão Christian Petzold (mas, desta vez, sem a sua musa Nina Hoss) Transit (2018).

Ainda pesos-pesados: o mais recente Leão de Ouro Roma (2018), do mexicano Alfonso Cuáron, promete ser um comovente motivo de “regresso às raízes” para o realizador, sendo que desta vez o efeito especial é o preto-e-branco que cobre as relações afectivas que se desenrolam no seio de uma família mexicana nos anos 1970. Aviso: esta é uma produção Netflix cuja estreia está reservada para a plataforma online – a experiência de a poder admirar em sala pode virar raridade, portanto. Quem volta a abordar dramas familiares, mas de modo pelos vistos prolixo, é o turco Nuri Bilge Ceylan. O seu filme, com mais de três horas, Ahlat Agaci (A Pereira Brava, 2018) parece retomar o bom – e o mau – da sua Palma de Ouro, o pesadamente literário Kis Uykusu (Sono de Inverno, 2014). Para quem tem emoções de aço, e até uma certa inclinação para o masoquismo, temos Lars von Trier regressado ao terror quase dez anos depois do controverso – a meu ver incompreendido – Antichrist (Anticristo, 2009). The House that Jack Built (2018), protagonizado por Matt Dillon, é o “retrato do assassino” segundo o cineasta dinamarquês – tenham medo…
Mas, como disse, um festival como este não se faz apenas de apostas seguras. É preciso saber jogar com uma programação desafiante como esta. Por exemplo, faça uma viagem pelo cinema de longa duração – aproveite o embalo de Happy Hour. Não sabemos se serão horas felizes, mas há mais de 13 horas de filme para ver no argentino La flor (2018) de Mariano Llinás, obra que, como o filme de Hamaguchi, é protagonizado por mulheres, mas cuja ambição é outra: contar a história do cinema a partir de diferentes narrativas. Um percurso no tempo que é uma oportunidade única – o filme só terá passagem em sala e esta é uma sessão única (ainda que dividida em três partes). Outro representante do cinema de longa – ou longuíssima – duração é o filipino Lav Diaz. Sabemos como ele defende que não há cinema longo, apenas cinema. Mesmo assim, a duração é sempre uma questão em Lav Diaz. Apesar de tudo, Ang panahon ng halimaw (Season of the Devil, 2018), com perto de quatro horas, está de facto longe das nove horas do seu Kagadanan sa banwaan ning mga engkanto (Death in the Land of Encantos, 2007). Não terá mudado, contudo, o preto-e-branco assombroso e o tipo de inquirição feita à história das Filipinas, especialmente à experiência da ditadura militar administrada pela chamada Civilian Home Defense Force. Acresce que o filme é descrito como um anti-musical, uma ópera rock que nos faz mergulhar na mitologia filipina – já está a salivar?

As retrospectivas são sempre espaços oferecidos à (re)descoberta. Por exemplo, como envelheceram os primeiros filmes realizados por João Botelho, cineasta irrequieto que merece uma extensa homenagem sob a forma de sessões de cinema, encontros e o lançamento de um catálogo? Falo de Um Adeus Português (1986), Tempos Difícieis (1988) ou Três Palmeiras (1994). Como é que nos revisitam estes “early Botelhos”? O mesmo pode ser perguntado em relação a Paul Schrader, o cineasta que durante demasiado tempo terá sido colocado em segundo plano sempre que se falava em Nova Hollywood. A atenção é máxima para a sessão do primeiro filme realizado por Schrader, com Richard Pryor e Harvey Keitel no elenco: história de corrupção e golpes sujos no seio de um sindicato de trabalhadores metalúrgicos, Blue Collar (1978) é um must see no grande ecrã. Por falar em reencontros, vai um banho do melhor realismo britânico? Mike Leigh, um habitué do festival, um dos nomes principais do velhinho catálogo Atalanta (ligado ao antigo Cinema King de Paulo Branco), faz-se representar no festival por um punhado de filmes que, algo me diz, ganhará em ser descoberto ou revisto – por exemplo, a obra-prima Naked (Nu, 1993), filme marcante dos anos 1990, regressa ao grande ecrã para interagir com a nossa angústia existencial. Outro tipo de realismo britânico parece enformar o olhar do fotógrafo Richard Billingham. Em Ray & Liz (2018) Billingham retoma “a narrativa” do seu célebre photobook A Laugh (1996), que contempla um retrato brutalmente honesto do seu pai alcoólico e da sua mãe obesa. O filme, dizem, importa a força da sua fotografia – o fotógrafo estará cá para apresentar a sessão.
Mas falemos em risco, isto é, em raridades. Por exemplo, que tal uma viagem pelo cinema de um dos nomes mais importantes do avant-garde espanhol, mas pouco visto e reconhecido em Portugal: José Val del Omar? Os filmes de Val del Omar são companion pieces de longas-metragens no âmbito do ciclo, farto em preciosidades, O Desejo Chamado Utopia. Filmes de Harun Farocki, Sylvain George, Alexander Kluge, Chris Marker, Thomas Harlan [atenção à nova (definitiva?) montagem de Torre Bela (1975)], Larry Clark [não o fotógrafo, realizador de Kids (1995), mas o americano, da escola da L.A. Rebellion] e Djibril Diop Mambéty, entre outros, compõem o mais arrojado ciclo deste LEFFEST. Mas, ainda a descobrir, há Blabláblá (1968) do brasileiro, recentemente desaparecido, Andrea Tonacci e dois filmes do realizador francês (nascido na Rússia) Pierre Léon, Deux Dames Sérieuses (1988) e o mais recente Deux Rémi, Deux (2015). Léon, que também é crítico de cinema, estará em Lisboa para apresentar os seus filmes. É assim: estamos sempre a circular, entre filmes grandes, grandes filmes, pequenos grandes filmes e tudo o que os envolve, do olho ao coração, do coração ao olho.