Aquilo que distingue a programação do LEFFEST é o facto de não ser tanto um festival para se fazer descobertas mas principalmente confirmações ou reconfirmações, enquanto preenchemos lacunas da nossa cinefilia através das retrospectivas de homenagem que marcam o ponto em todas as edições. Vamos também ao LEFFEST em busca de ver primeiro filmes premiados nos principais festivais europeus, anunciados como antestreias mas que acontece por vezes ficarem por tempo indeterminado nas gavetas do distribuidor. Segue-se o meu relato dos filmes vistos nos primeiros dias do LEFFEST. Notas curtas e altamente subjectivas, ordenadas em função dos horários e dias da programação.
Apesar dos indícios que Hirokazu Kore-eda vai dando de que a família de Manbiki kazoku (Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões, 2018) pode ser ainda mais alternativa do que aquilo que dela vamos apanhando, o filme quando se encaminha para a resolução dá a sensação de serem dois filmes. Do meu ponto de vista, seria positivo que a narrativa fosse mais clara, que estivéssemos mais por dentro das várias ligações e histórias passadas, que soubéssemos quase tanto como eles na hora da revelação. De qualquer forma é um regresso deste realizador a um cenário que lhe é mais familiar, por contraste com o decepcionante Sandome no satsujin (O Terceiro Assassinato, 2017), embora se repita o efeito “surpresa” do filme anterior. É um Kore-eda a afirmar-se cineasta para o mundo e para um mundo (de prémios).
O lado social ligado ao trabalho que nos lembra o cinema de Elia Kazan, mais o sentimento de impotência do indivíduo face à corrupção do sistema que é marca de filmes importantes de Sidney Lumet, parecem concorrer para a obra de estreia de Paul Schrader: Blue Collar (1978). A acção tem lugar no seio da indústria automóvel de Detroit (entretanto dizimada, com a cidade a perder o seu fervor humano e a tornar-se um fantasma de outros tempos) e filma um golpe frustrado, cujos três autores (operários) procuram compensar com uma chantagem que terá resultados distintos para cada um deles. O filme de Schrader é sólido a dar o contexto social, têm interpretações marcantes de Richard Pryor, Harvey Keitel e Yaphet Kotto mas não transcende a categoria de curiosidade do seu tempo. É que o nível do cinema americano nos anos 1970 era altíssimo.
Em Asako I & II (2018), de Ryûsuke Hamaguchi, há uma história de amores trocados em cidades trocadas. Asako apaixona-se por Baku em Osaka, é deixada por ele de forma abrupta, e vem a ligar-se anos mais tarde a um outro homem, Ryôhei, agora em Tóquio, que é a cara chapada de Baku (e interpretado pelo mesmo actor). Hamaguchi constrói esta narrativa pop (em sentido japonês e com esporádicas canções a acompanhar) fazendo constantes avanços e recuos face à possibilidade de estabelecer uma qualquer tese sobre o amor, mas as várias hesitações de Asako, sobretudo após o reencontro com Baku, geram situações de alguma implausibilidade e o filme, mantendo embora a sensibilidade murakamiana de até então, desbarata demasiado bom senso.
É a vez de Blaze (2018). Reconheça-se o investimento pessoal de Ethan Hawke no projecto – o seu amor pela música é público – que levou a que acumulasse as funções de argumentista (a meias com a ex-companheira de Blaze Foley, Sybil, também personagem do filme), realizador e ainda a participação enquanto secundário com recurso às suas voz e nuca. Mas a sensação que Blaze dá ao espectador é a de ter passado duas horas a aturar um bêbedo. Por muito engenhosa que possa parecer a irradiação da história para diferentes tempos passados, a partir de uma entrevista com companheiros do músico e de uma actuação num bar anónimo que deu azo ao registo de muitas canções suas, o entorpecimento de Blaze, do próprio e do filme, é dominante. A estética da bebedeira é uma fixação masculina dos jovens adultos. Pelos vistos há quem não se liberte dela.
High Life (2018) ou o cinema calculado de Claire Denis para ser fashionable e ao mesmo tempo artístico. Dentro do género sci-fi WTF recuamos cinco anos para encontrar mais estimulante exemplo no Under the Skin (2013) de Jonathan Glazer. Kubrick assume a paternidade de ambos, só que ao contrário de High Life, Stanley Kubrick nunca entrava pelo livremente inexplicável sem haver uma sustentação dramática. Não existe obra do norte-americano que seja mera acumulação de efeitos: o caso de High Life. Filme obcecado com fluidos corporais, encerrado numa estação espacial onde vivem pessoas bonitas, com uma imagem, eles e elas, de rufia cosmopolita, pronto a ser fotografado numa produção de Hedi Slimane. Imagens sedutoras e uma total ausência de sentido. Gratuito e pretensioso.
Sinónimos para bleak. Deserto, desolado, frio, gélido, triste, desanimador. Com estes adjectivos pode-se edificar um projecto de cinema, que já se encontrava em pleno estado de maturidade na obra de estreia de Mike Leigh. Bleak Moments (1971) faz das existências sombrias das suas personagens cinema de câmara que não exibe essa circunstância. Existe sentido de humor; nos que não o possuem notam-se sinais de desespero. A narrativa é mínima e repetitiva. O humanismo é enorme e está distribuído. Existe um trabalho sobre a rarefacção dos diálogos e gestos que dilata os silêncios e dá a ver o desconforto, sem se tornar nunca para nós desconfortável. Como é que ele consegue que isto seja assim? Mantendo o equilíbrio de cada cena no ponto onde intercepta aquilo que as personagens podem suportar, o interesse manifesto do realizador por elas, e o nosso grau de empatia para com aquelas figuras. Bleak Moments abraça sem lambuzar e com a câmara de filmar o absurdo da vida.
Fora de Itália ninguém poderá ver Loro (Silvio e os Outros, 2018) como Paolo Sorrentino o projectou e as salas italianas mostraram. Um filme em duas partes, Loro 1 e Loro 2, com um total de 204 minutos. A versão internacional (mostrada à imprensa dias antes do arranque do LEFFEST) tem 145 minutos e é com essa que nos temos de a ver. Loro resulta numa variação mais excessiva e mais dispersa de La grande bellezza (2013). Os “outros” da tradução portuguesa constituem a corte de Silvio Berlusconi, os que fazem parte do seu grupo de influência e os que querem entrar para aquele mundo de festas e proveitos sem fim. Se nos parece uma vez mais evidente que Sorrentino tem um prazer gigante ao filmar, uma gula que se abre quer para as mulheres belíssimas e com muito pouca roupa do filme, como para os cenários luxuosos à beira do kitsch onde o mesmo se desenrola, falta a Loro aquilo que constituía o verdadeiro espectáculo em La grande bellezza: Jep Gambardella, mestre de cerimónia que ao contrário do Berlusconi que Sorrentino expõe ao fácil ridículo, gozava da camaradagem do realizador e era uma projecção intelectual e mundana deste.
(A segunda parte do texto será publicada após o final desta 12ª edição do LEFFEST.)