Segunda parte do acompanhamento que fiz da 12ª edição do LEFFEST. Filmes em competição e fora dela, e ainda dos ciclos temáticos. Ao sabor dos meus interesses e disponibilidade. Estive em muitas salas cheias, sempre em Lisboa, algumas sessões chegando mesmo a esgotar. Não é difícil prever que em 2019 o LEFFEST vai continuar a existir.
Em Long Day’s Journey Into Night (é o título internacional da segunda longa-metragem do chinês Bi Gan, que ainda não completou 30 anos) não saímos da cabeça do protagonista, nem da do realizador. Misto de sonho com memória, embrulhados num enredo psicanalítico, o filme avança por espaços que não têm uma lógica de continuidade entre si, e encontra figuras femininas (diversas?) que podem muito bem ser uma só mulher. Dê-se algum desconto a estas conjecturas pessoais, porquanto a China é um país ainda mais estranho quando querem que nos percamos nela, e a fisionomia dos chineses pode gerar no olhar estrangeiro uma certa confusão. Mas o “lost in translation” é provavelmente intencional. Bi Gan mostra um controlo obsessivo pela forma e pelo conteúdo do filme, parecendo deslumbrado com o próprio rigor e inebriado pela sua poética abstracta. Se nos lembra alguns momentos das filmografias de Wong Kar-wai ou Hou Hsiao-Hsien, diria que Bi Gan perde para os dois.
A nossa memória guarda todo o tipo de coisas, até a informação de que Artur Jorge (ex-jogador de futebol, treinador e seleccionador nacional) não gostava de ver futebol na televisão com o som ligado. Então tirava o som e substituía por música clássica. Julien Faraut usa o mesmo procedimento a dada altura neste L’empire de la perfection, e a opção justifica-se porque John McEnroe se via a si próprio no campo de ténis como Tom Hulce no papel de Mozart filmado por Milos Forman. Uma beleza: a música do prodígio de Salzburgo por cima do jogo do norte-americano, que muitos não saberão ter nascido em Wiesbaden, na Alemanha. O filme de Faraut não é experimental ao ponto de se tornar frio e doseia este tipo de intervenções para potenciar a estética do jogo de ténis e o carácter de um indivíduo que no campo antagonizava os demais para galvanizar-se a cada nova tentativa de superação. Não apenas uma curiosidade, L’empire de la perfection é bela surpresa.
Petzold pratica uma cinefilia de alta-costura que cava a cada filme a minha indiferença. No caso de Transit, as referências podem ser estas ou quaisquer outras que um outro espectador nele encontre. Pensei no Professione: reporter (1975) de Michelangelo Antonioni, que é a minha matriz para o assumir da identidade de uma outra personagem num filme, com as implicações existenciais e de acção que acarreta. Pensei depois no Casablanca (1942) de Michael Curtiz, um filme mais universal sobre o sacrifício do amor por um propósito mais nobre e altruísta. Petzold joga com estes elementos em Transit, mas o filme é tão engomado e cheio de entrelinhas que esgota qualquer possibilidade de a ele nos ligarmos por via das emoções. Christian Petzold tenta fazer literatura em cinema, e o cinema resulta em acto falhado.
Visto na véspera da notícia da morte do realizador italiano. É um objecto desigual que perante o desequilíbrio dos seus vários momentos, podia até levar-me a pensar que não foi filmado pela mesma pessoa. O meu desagrado com Il conformista começa com a figura do protagonista interpretado por Jean-Louis Trintignant. Um covarde. Um homem sem qualidades. Um fascista de ocasião. Acima de tudo uma personagem por quem fui deixando de me interessar. Se o filme é uma denúncia do fascismo, não foi para mim claro se ela estava lá. Os vilões, tenham muitos rostos ou apenas um rosto, devem mostrar traços de atractividade, para que possamos entender que outros se sentissem igualmente atraídos. Clerici é um fraco, a sua sexualidade é dúbia e Bertolucci aproxima-a do grotesco na cena final. É um indivíduo que não age; que é agido pelas circunstâncias, pelos outros, que hesita e que se nega. É fácil deitar abaixo um fascista como este. Relativamente à mão pesada de que Bertolucci aqui faz uso, o tempo se encarregou de fazer notar os méritos existentes numa intriga baça. O filme brilha quando os corpos se despem ou se acendem ao dançar.
Doubles vies tem a ligeireza de um intervalo ou de um recomeço. Não recordo outro filme de Assayas neste tom e nunca imaginaria poder ver no seu cinema as caras de Guillaume Canet e Vincent Macaigne: que interesse ou graça tem Macaigne? Muito pouco/ pouca na minha opinião. Assayas enche o filme com o mundo actual. Relações líquidas, redes socias, a quebra do interesse e o eventual desaparecimento do suporte material nos objectos com que acedemos à cultura, as ficções a darem lugar às micro-ficções, as infidelidades a cederem a posição às micro-traições, os mercados a regerem-se por micro-intenções que escondem outras de maior porte, tudo a circular entre conversas do tipo pescadinha de rabo na boca, onde não falta a citação do Leopardo de Lampedusa que cada qual torce a seu modo. E de facto quase nada muda neste filme, e o que acontece passa-se com uma gravidade tão entretida e superficial que é como se tudo continuasse na mesma.
O filme anterior do belga Felix van Groeningen, The Broken Circle Breakdown (2012), já olhava para a América (através da música) e chegou mesmo até ao restrito grupo dos nomeados para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – perdeu para La grande bellezza, de Sorrentino. As portas de Hollywood abriram-se com Beautiful Boy, também cheio de música (o indie rock em vez da folk de Broken Circle) justificada em parte pela personagem do pai (Steve Carrell, a reincidir nos papéis dramáticos) um jornalista da Rolling Stone que recorda os melhores tempos passados com o filho mais velho (Timothée Chalamet). que no final da adolescência começou a experimentar todo o tipo de drogas de que não mais se livraria. É um filme sensível que se deixa prender pelas convenções dos teledramáticos, em particular quando se encaminha para o final e o problema da dependência de Nic parece não ter solução. Lembra ainda o tipo de filme que é Manchester by the Sea (2016), de Kenneth Lonergan, que venceu dois Oscars, “proeza” que não admira que Beautiful Boy possa vir a igualar.