Oiço com surpresa o leitmotiv do compositor Haruomi Hosono para Manbiki kazoku (Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões, 2018), discreta colagem ao piano reminiscente do aviso sonoro e tilintante de uma passagem de nível ferroviária a ser decepado e distorcido por um comboio em velocidade, e fico a pensar naquilo que ele significa: uma espécie de desconstrução concreta de algo adiposamente familiar, entre tonalidade e atonalidade, regularidade e estranheza. Um fino labor que incide sobre as pequenas percepções do quotidiano mas que não é limitado por elas, antes as transforma, funde e desfigura num ímpeto criador. As melhores bandas-sonoras dos filmes de Hirokazu Koreeda revestiam-se de não-intrusividade para não perturbar os ritmos da vida que neles eram desenhados – lembrem-se as composições do duo de guitarristas Gontiti em Dare mo shiranai (Ninguém Sabe, 2004) e Aruitemo aruitemo (Andando, 2008), filmes cujas melodias soalheiras e quase anónimas serviam efeitos bastante diferentes para cada um dos casos – mas aqui é sob o signo de uma delicada tensão (e sublinhe-se o “delicada”) que nunca deixamos de sair, sonoramente e filmicamente falando. E essa tensão é a que pertence às grandes obras, as que carregam uma carreira inteira às suas costas. Manbiki kazoku consegue ser, por isso, a consagração dos estilos perfilados nas duas películas anteriormente citadas: um casamento feliz entre a crueza e a consciência social de Dare mo shiranai e a extraordinária intimidade empática do ciclo dos chamados “filmes familiares”, de Aruitemo, aruitemo para a frente.
Por onde anda a frieza observacional de Dare mo shiranai aqui? Logo no inicio, um adulto e uma criança, após rapinarem comida e outros bens de um supermercado, encontram uma menina aparentemente abandonada à porta de um prédio. As sequências seguintes inauguram aquilo que poderia chamar o regresso, no cinema de Koreeda, das caras sebosas, educadamente necrófagas, que se alimentam daquilo que está nas lojas “porque ainda não é de ninguém”. Rostos de uma dura sobrevivência urbana, ausentes desta filmografia há quase quinze anos. Cortamos para a casa que acolherá a faminta criança e, à mesa de jantar, encontramos uma mulher adulta, uma velhinha mastigando demoradamente uma couve e uma rapariga adolescente que se apronta frente a um espelho. Se esta descrição não for extraordinariamente precisa (e temo que possa não sê-lo) é porque, atirados para debaixo deste “albergue espanhol”, somos logo vítimas de um erro de perspectiva intencionado pelo realizador. Julgamos que os graus de parentesco estão estabelecidos previamente e não perdemos muito tempo a investigá-los até que nos façam prova do contrário. Pensamos: há uma mãe jovem, uma filha mais velha, uma avózinha e todas aguardam pelo filho e pelo pai. Adoptamos a presunção de conhecimento do olhar da menina acerca daquelas pessoas, olhar que, porventura, jamais mudará no seu caso, mas não no nosso. Ao longo do filme, descobriremos que quase nenhuma destas personagens se conhecia antes de se mudarem para o mesmo espaço. Uma família de faz-de-conta que, entre outros biscates e empregos sazonais de cariz duvidoso, rouba para viver. Ao contrário, porém, de Dare mo shiranai em que a deambulação pelos bairros habitacionais de Tóquio à procura de sustento significava o prenúncio da morte silenciosa de crianças deixadas à sua sorte pela mãe biológica, é através desta marginalidade e divagação conjunta, de uma igualdade na miséria poderíamos crismar, que esta família sem laços de sangue se renomeia, renasce e fortalece.
É aqui que a câmara de Koreeda se liberta, quer da frígida observação do cientista social, quer da tentação do filme-tese que desembocaria na atribuição de qualidades morais absolutas a indivíduos em condições sociais desvantajosas.
É aqui que a câmara de Koreeda se liberta, quer da frígida observação do cientista social, quer da tentação do filme-tese que desembocaria na atribuição de qualidades morais absolutas a indivíduos em condições sociais desvantajosas. A estratégia pode parecer simples em teoria, mas muitíssimo difícil na prática. “São os afectos, idiota!” E é também o minucioso estudo de personagem que nos faz reencontrar o prazer de vivermos com estes personagens que vão ultrapassando, em intimidade, as vicissitudes da sua união original. Este era já um tema explorado pelo cineasta em Soshite chichi ni naru (Tal Pai, Tal Filho, 2013): a pergunta por aquilo que constitui uma família. Quais as suas características? Qual o poder real que a consanguinidade acarreta? Como será possível construir laços com força genética exclusivamente a partir dos sentimentos? Seguramente que Koreeda não é falante de latim e a palavra japonesa kazoku (família) não se presta a tais digressões etimológicas, mas quando os nossos antepassados romanos falavam em familia, referiam-se ao conjunto de famuli, dos escravos, que comungavam da mesma divisão física. Na origem do termo, as relações de sangue eram apenas uma contingência: elas podiam existir de antemão ou formar-se a partir das circunstâncias. Apetece-me dizer que nunca um japonês foi tão latino no seu entendimento do que podem ser essas relações cuja gregariedade não é um dado, mas sim um constructo afectivo a partir de uma situação social menos favorável como Hirokazu Koreeda.
A verdade é que as famílias de sangue em Koreeda sempre foram encaradas com um certo amargo de boca a despeito de se considerá-lo como o grande cineasta contemporâneo que voltou a retratá-las. Quem, como ele, defende o mundo dos afectos acima de tudo, defende provas de amor dadas aqui e agora e desconfia da suposta importância nuclear de tudo o que é adquirido por natureza. Os exemplos deste cepticismo amontoam-se na sua filmografia: o tema do divórcio que perpassa Umi yori mo mada fukaku (After the Storm, 2016) e está presente também em Kiseki (O Meu Maior Desejo, 2011); a mãe criminosamente negligente de Dare mo shiranai; as dificuldades comunicacionais entre patriarca e filho em Aruitemo aruitemo; o filho trocado e a irmã de outra relação que abalavam as famílias biológicas de Soshite chichi ni naru e Umimachi Diary (Our Little Sister, 2015) respectivamente. Poderíamos inclusivamente afirmar que neste cinema de inúmeras famílias, nunca uma tinha sido tão simultaneamente disfuncional e feliz como a de Manbiki kazoku. Basta estar atento à partilha da comida; aos leitos comuns; à mesma respiração de uma divisão minúscula, atafulhada ao ponto das relações sexuais serem feitas apressadamente e às escondidas; às caricias e aos abraços (o toque, esse anátema japonês); aos banhos que lavam a sujidade trágica de uma vida nómada, sempre à espreita e contornada com um sorriso traquinas, uma mentira inocente ou uma piada porca.
Uma leve devastação, no entanto, aguarda aqueles que ousaram ignorar as leis do Estado, suplantando-as com a primitividade desregulada do amor fraterno pela humanidade. O olhar da menina de regresso à mãe biológica procurando decifrar o mundo confuso dos adultos não pode ser desprezado neste ponto. É com ele que nos despedimos do filme, de costas para um espectador obrigado a assistir passivamente a um “pedaço da vida” – também de costas se despede o “filho” do “pai” na viagem sem retorno de camioneta para evitar o vislumbre do inexorável. E, como num círculo perfeito, regressamos àquela inquietação do freeze-frame final de Dare mo shiranai quando um dos irmãos sobreviventes nos olhava, ao longe, enquanto os outros caminhavam em direcção a nenhures. Com este Manbiki kazoku, Koreeda demonstra, mais uma vez, porque é, talvez, o mais importante cineasta japonês em actividade.