“As the earth moves toward the sun, Travis Bickle moves toward violence.” A frase é do argumento de Taxi Driver (1976), realizado por Martin Scorsese, escrito pelo cineasta Paul Schrader, e talvez seja a que melhor descreva o que caracteriza a obra cinematográfica deste último, atormentada por personagens obcecadas e auto-destrutivas a entrarem gradualmente em jornadas de violência que, por vezes, podem terminar em redenção. Como Schrader já disse, é talvez esse trabalho de argumentista pelo qual seja mais recordado, independentemente do que faça, pairando como uma sombra impossível de se desviar em qualquer entrevista que conceda. A retrospectiva organizada pelo LEFFEST – Lisbon & Sintra Film Festival foi então uma oportunidade de ouro para salientar o seu trabalho enquanto realizador, com uma selecção estimável de alguns dos seus grandes filmes a necessitarem de redescoberta [Hardcore (A Rapariga na Zona Quente, 1979), Affliction (Confrontação, 1997)], outros que (dizem-nos) vieram a crescer com os anos [American Gigolo (1980)], assim como favoritos do próprio Schrader [Mishima: A Life in Four Chapters (Mishima, 1985), Light Sleeper (Perigo Incerto, 1992)].
Impossibilitado por razões de força maior em vir ao festival, esta figura-chave da Nova Hollywood disponibilizou-se para uma masterclass a partir do outro lado do Atlântico, via vídeo-chamada. Com as melhores condições técnicas asseguradas (pelas quais deixamos aqui as felicitações sinceras ao Festival, assim como um agradecimento pelo convite na moderação deste evento), o realizador pediu para começar a falar da sua jornada fílmica, deixando ao nosso critério o rumo que gostaríamos de conferir à conversa. Foi uma oportunidade para falarmos da sua cinefilia, do slow cinema (com referência a Pedro Costa), da diferença entre escrever uma crítica e fazer um filme (é a mesma que fazer uma autópsia e dar à luz), da Nova Hollywood e, obviamente, de parte da sua obra cinematográfica. O que aqui fica é uma transcrição editada dessa conversa, a qual incluiu a participação da audiência.
Paul, quando se sentir pronto, pode começar a falar-nos da sua jornada fílmica.
No meio da Era do Jazz, quando os filmes estavam na sua fase mais ousada, a minha igreja [a calvinista] proibiu a frequentação de salas de cinema. Nunca vi um filme enquanto crescia, mas também não conhecia mais ninguém que o tivesse feito, portanto, não sentia assim tanta necessidade. Só comecei a ver cinema na universidade, a Faculdade Calvin. E essa era a altura do cinema europeu da década de 1960: Bergman, Bresson, Godard, Antonioni, Truffaut. Amamos sempre os filmes pelos quais nos apaixonámos pela primeira vez e, no meu caso, foram os do cinema europeu intelectual, não os géneros americanos ou os que os miúdos gostavam de ir ver. Portanto, cheguei ao cinema como um adulto muito sério, ia para Nova Iorque durante o Verão só para ver cinema e lá conheci a Pauline Kael, que era uma crítica influente no país e que se tornou a minha mentora. Fui a casa dela graças a um amigo em comum e, mesmo não tendo visto muitos filmes, falámos ao longo da noite. Na manhã seguinte, ela disse-me: “Tu não queres ser um padre, queres ser um crítico de cinema. E nós vamos manter o contacto.” Ela fez com que eu entrasse na escola de cinema da UCLA, onde me graduei há 50 anos.
Algo muito interessante aconteceu em Março de 1969. Era crítico de cinema para o LA Free Press e fui a uma exibição do Pickpocket (O Carteirista, 1959) de Bresson. Só tinha 75 minutos, mas mudou o rumo da minha vida de duas maneiras. Primeiro, não pensei que houvesse quaisquer ligações entre as tradições sagradas da minha educação e os prazeres profanos da minha vida enquanto estudante de cinema. E ao ver este filme percebi que havia uma conexão, mas de estilo, não de conteúdo, que havia uma série de cineastas ao redor do mundo que estavam a usar as mesmas ferramentas. E foi isso que me levou, dois anos mais tarde, a completar um livro chamado Transcendental Style in Film: Ozu, Bresson, Dreyer, o qual foi actualizado numa nova edição este ano. A outra coisa que aconteceu durante essa exibição foi que… bom, não pensava que houvesse lugar para mim no cinema, era demasiado sério. Mas depois vi o Pickpocket e pensei que poderia escrever um filme assim. Ele escreve num diário, vai para a rua e rouba, escreve no diário, encontra-se com a vizinha, escreve no diário, os polícias vêm vê-lo. Três anos mais tarde escrevi esse filme, chamava-se Taxi Driver. Portanto, duas sementes caíram numa placa de Petri. Uma cresceu num empreendimento crítico, outra num empreendimento fílmico criativo. E levou quase 50 anos até que esses dois caminhos se cruzassem, o que há aconteceu há ano e meio com First Reformed (No Coração da Escuridão, 2017), onde tento usar o estilo sobre o qual escrevi. Antes havia pessoas que tentavam comparar os meus filmes a esse livro e eu dizia: “Não, os meus filmes não são espirituais. Estão cheios de sexo, violência, acção e empatia. Eles não fazem parte do ‘kit transcendente’”. Mas há três anos estava a falar com Pawel Pawlikowski, tinha acabado de lhe dar um prémio por Ida (2013) e estávamos a falar sobre filmes espirituais. Depois dessa conversa, cheguei a casa e disse a mim próprio: “Chegou a altura de escreveres aquele argumento do qual tinhas a certeza que nunca irias escrever. Este filme espiritual.” E quando tomei essa decisão, as coisas caíram no seu lugar.
A transição de crítica para a escrita aconteceu de uma maneira prática porque um certo número de coisas falhou: o meu casamento ficou destruído, não tinha dinheiro e estava a entrar em lugares muito, muito escuros. Estava no meu carro com uma arma, enquanto me passavam estes pensamentos negros pela cabeça, quando comecei a sentir uma dor no meu estômago. Tinha uma úlcera péptica aos vinte e tais anos. Estava no hospital, não falava com ninguém há semanas e surgiu-me a imagem de um táxi. Esta metáfora, este símbolo, este caixão amarelo a vaguear pelos esgotos abertos da cidade com um homem encurralado no seu interior, alguém rodeado de pessoas, mas totalmente só. Sabia que tinha de escrever sobre ele, porque estava a tornar-me nele. Se não o fizesse estaria em perigo. Portanto, comecei a escrever como maneira de auto-terapia. Quando acabei, pus o argumento numa gaveta e fui conduzir ao longo do país para melhorar a minha saúde. Seis meses depois fui ter com o meu irmão [Leonard Schrader], que teve uma situação semelhante no Japão. Ele tinha estado a ver filmes sobre a yakuza e escrevemos um argumento sobre ela [The Yakuza (Yakuza, 1974)], o qual foi leiloado e vendido pelo preço mais elevado até à data.
Voltei à actividade crítica. Estava a jogar xadrez com o Brian De Palma e disse-lhe que tinha escrito um argumento. Ele leu-o e deu-o ao Scorsese porque achava que poderia ser algo para ele. O “Marty” leu-o e levámos dois ou três anos para levar esse filme adiante porque não conseguíamos fazê-lo sendo quem éramos na altura. Tínhamos todos de esperar por algum tipo de sucesso. O “Marty” teve-o com Alice Doesn’t Live Here Anymore (Alice Já Não Mora Aqui, 1974), o De Niro ganhou um Oscar pelo The Godfather: Part II (O Padrinho: Parte II, 1974), eu tive aquela venda do The Yakuza, e os produtores ganharam um Oscar pelo The Sting (A Golpada, 1973). De repente, já tínhamos as condições para arranjarmos financiamento para esse filme. Este é o meu ponto-de-partida para esta conversa, mas deixo ao vosso critério para onde quiserem levá-la.
Jean-Luc Godard disse uma vez que os primeiros filmes feitos pelos membros da nouvelle vague foram as críticas que escreveram nos Cahiers du Cinéma. Como só o Paul e o Peter Bogdanovich são os únicos críticos tornados realizadores na Nova Hollywood, pergunto-lhe se sente o mesmo relativamente aos seus escritos.
Bom, o Peter era menos um crítico do que um historiador de cinema. E claro que quando comecei a fazer cinema tive de largar a actividade crítica porque, independentemente do que escrevas numa crítica, as pessoas envolvidas no filme em causa irão sempre achar que é insuficiente, pessoas às quais tens de ir ter para fazeres os teus filmes. Escrever críticas de cinema e fazer cinema são duas actividades muito diferentes. De facto, opostas. Gosto de dizer que um crítico é como um médico-legista, alguém que faz autópsias. Tem este corpo na mesa, quer abri-lo e perceber como e porque é que morreu. Um realizador de cinema é como uma mulher grávida, tudo o que ele quer saber é certificar-se que a criança é entregue viva. Portanto, se deixas o crítico entrar na sala de partos, ele irá matar a criança.
Para além disso, tens também de deixar espaço para o mistério, para coisas que não compreendes, porque se as coisas fizerem demasiado sentido pode ser prejudicial. Depois de teres acabado, consegues ver o padrão. No caso do First Reformed, quando decidi escrever o argumento, recuei e revi as características dessa técnica de que gostava. Tirei o protagonista de Journal d’un curé de campagne (Diário dum Pároco de Aldeia, 1951) de Bresson, o cenário de Nattvardsgästerna (Luz de Inverno, 1963) de Bergman, o final de Ordet (A Palavra, 1955) de Dreyer, a sequência de levitação do Tarkovsky. E depois enrolei tudo com o arame farpado de Wise Blood (Sangue Selvagem, 1979). O que não percebi foi do quão lógico tudo se tornou. Foi esta personagem com impulsos maníacos e obsessivos de Taxi Driver que deu ao filme a loucura que precisava, caso contrário não teria sido um exercício intelectual.
Na introdução da nova edição do Transcendental Style in Film fala de Pedro Costa. Do que gosta no cinema dele?
Bom, gosto do… como se chama o que tem o “cavalo” no título?
Cavalo Dinheiro (2014).
Sim, esse é o meu favorito. Gosto imenso do uso que ele faz da cor e de como o filme funciona verdadeiramente na escuridão. É muito interessante, sabes? Começas por restringir coisas ao espectador, que é o que se passa com o slow cinema ou o estilo transcendente. Geralmente é a música. Os filmes estão tão desesperados pelo teu amor, agarram-te e dizem: “aqui tens pessoas bonitas, aqui tens acidentes de carros”, com a música a dizer-te exactamente como te deves sentir o tempo inteiro. Portanto, tens de retirá-la ao espectador se queres que ele seja activo. Depois, os movimentos de câmara e as ferramentas de edição que dizem quem é a personagem mais importante naquele instante. Por isso, vou ter apenas um plano com duas pessoas. Como fazem na Nova Vaga Romena, há duas raparigas, uma à esquerda, outra à direita, estão a falar e não há cortes. A certa altura, o espectador decidirá quem é mais interessante, se a rapariga que está a falar ou a que está a ouvir, começando a assemelhar-se a um cineasta.
Vamos imaginar este cenário hipotético. Temos um campo, com muita relva, algumas vacas, árvores em plano-de-fundo e o céu. Um homem entra na parte superior do ecrã e começa a caminhar para baixo. Se conheces o slow cinema e os seus realizadores, sabes que eles não irão cortar. Ele vai fazer este caminho todo, lentamente, até sair do ecrã. E mesmo aí, o realizador pode não cortar. Portanto, o que fazes? Olhas ao redor, podes ouvir o som de um autocarro ou de algumas crianças. De que direcção virá o autocarro? Da esquerda, da direita? Depois o autocarro vai-se embora. Olhas para o homem e ele percorreu um terço do caminho. Olhas para as vacas, antes havia cinco e agora só há três. Duas delas devem ter-se ido embora enquanto pensavas no autocarro. E agora vem o vento a soprar muito forte. As nuvens estão a mudar de padrão, talvez venha aí uma tempestade. O homem está a meio do ecrã. Espera… Aquele é o autocarro a vir outra vez?
Ora, o que é que se passa aqui? O espectador está a fazer o seu próprio filme. O realizador mostra-lhe a cena e, ao restringir uma série de elementos, torna-o activo. Quando ele fizer alguma coisa, será sempre mais poderosa do que se o realizador fizesse por ele. E se vais tentar arranjar uma maneira de ele apreciar o inefável, o espiritual e o místico, o espectador tem de o fazer por si próprio, porque se fizeres tudo, ele ficará apenas ali sentado. Portanto, pensas em coisas para lhe tirar.
Um exemplo muito claro é o corte adiado. Imagina aquela porta ali ao fundo. Usamos um corte no cinema quando alguém entra ou sai por ela. Se um homem saísse por ela agora, cortaríamos assim que a porta se começasse a fechar. Mas, e se eu não o fizer? E se ficar apenas aqui sentado a olhar para ela e começar a contar “um, dois, três…” Agora, não ficas apenas a ver a porta depois de alguém sair, o teu olho vai arranjar coisas mais interessantes para olhar. Mas eu, enquanto realizador, não te estou mostrar mais nada, só esta porta fechada. “…quatro, cinco, seis”, e ainda estás a olhar para ela. Algo está a acontecer aqui, algo a que chamamos de duração, a imagem-tempo de Gilles Deleuze: o que é que acontece quando o tempo é imposto numa imagem? Estás a olhar para aquela porta através do tempo. E há nestes estilos contemplativos, provavelmente, seis ou oito elementos que todos os realizadores usam. Todos eles vão ao buffet, mas põem coisas diferentes nos seus pratos, pelo que nenhum realizador é igual a outro. Pedro Costa não vai ser igual a Béla Tarr nem ao Theo Angelopoulos. Cada um encontra o seu caminho. Estão a usar algumas das mesmas ferramentas estilísticas, e é por isso que se pode ter algo como o “estilo transcendente”. Pessoas muito diferentes devem algo a Bresson ao usarem este tipo de ferramentas.
Dado que First Reformed é o seu filme mais criticamente aclamado, gostaria de fazer outro filme sob o “estilo transcendente”?
Penso que não. Escrevi dois argumentos desde essa altura e são diferentes. Aquele estilo era adequado para aquele tema. E tenho medo de tentar outra vez, porque pode não funcionar e estragar o que fiz antes. E, na maioria do tempo, tenho a certeza de que não resultaria outra vez. Espero que First Reformed não seja o meu último filme, mas se for é um último filme muito bom. E não teria problemas nenhuns com isso.
O cinema americano mudou muito desde a Nova Hollywood. Sente nostalgia dos anos 70 e quais pensa que são as diferenças entre esse cinema e o contemporâneo?
Houve muitos filmes importantes nos anos 70. Não porque os cineastas eram melhores, mas porque as audiências eram melhores. Tivemos um período onde as audiências estavam preocupadas com temas como a homossexualidade, liberdade sexual, direito das mulheres, civis, etc. Tínhamos muitas perguntas e virávamo-nos para os filmes com elas. E estes filmes começaram a fornecer respostas. Portanto, surgiram Bob & Carol & Ted & Alice (Bob, Carol, Ted e Alice, 1969) sobre o wife swapping, Coming Home (O Regresso dos Heróis, 1978) sobre o Vietname ou An Unmarried Woman (Uma Mulher Só, 1978) sobre a emancipação feminina. E quando as pessoas levam os filmes de maneira séria, é fácil fazer filmes sérios. Não penso que os cineastas que trabalham na actualidade sejam melhores ou piores que os dos anos 70, talvez sejam piores, mas as audiências eram tão boas que quase todas as semanas sairia um filme para falar destes problemas sociais. Agora as artes têm tido dificuldades a ocupar o centro da conversa porque as audiências não discutem algo sério através delas, não vão ao cinema para compreender coisas, fecham-se nas suas redes sociais e nos seus grupos ideológicos temáticos. Antes, diferentes tipos de pessoas haveriam de ver juntas estas figuras que eram capazes de unir uma cultura, como o Walter Cronkite, o Bruce Springsteen ou o Johnny Carson. Hoje, a relação das pessoas com as artes está determinada por um nicho ideológico. Portanto, acho que o que se perderam não foram os cineastas, mas sim as audiências.
Uma vez disse sobre American Gigolo, o seu terceiro filme, que foi graças a ele e à colaboração com o director artístico Ferdinando Scarfiotti [director artístico de Ultimo tango a Parigi (O Último Tango em Paris, 1972) e Il conformista (O Conformista, 1970)] que conseguiu aprender a pensar visualmente. Qual é a sua definição deste pensar visualmente e como mudou o seu cinema daí em diante?
Bom, naquele meio de onde vim, se queríamos dizer alguma coisa fazíamo-lo através de palavras ou canções, nunca com imagens. Foi enquanto estava em Los Angeles que comecei a aperceber-me que as imagens são ideias também. Os meus dois primeiros filmes [Blue Collar (1978) e Hardcore] foram mais ilustrativos, mas com o terceiro e a chegada do Scarfiotti, que tinha uma capacidade visual incrível, aprendi a transmitir ideias verbais em visuais. Portanto, este copo [pega num copo de água] é uma ideia visual. Podemos usar palavras para a descrever, mas isto é uma imagem, e cada vez que a virarmos ou a torcermos uma nova ideia é criada. Quando escrevo um argumento não penso em lógica visual, só nos fundamentos da escrita: personagem, tema, diálogo, enredo… Depois do processo de escrita, volto ao argumento e tento abordá-lo de outro ângulo “Como é que o consigo transpor visualmente? Como é que posso repensá-lo? Qual é a lógica visual da minha história?” Escrevo como um argumentista e realizo como um realizador, tento manter as actividades separadas.
Para dar um exemplo, estávamos à procura de uma casa em Malibu, e o Scarfiotti andava a fazer o location scouting porque encarreguei-o de tudo o que era visual: os locais, os cenários, maquilhagem, guarda-roupa… Ele estava encarregue da produção visual. E ele não conseguia encontrar aquela casa em Malibu que queríamos filmar na primeira semana. Até que um dia me disse que a tinha encontrado. Fomos lá e ele disse-me: “Agora, ignora o interior da casa. Iremos remodelá-lo completamente. Mas quanto ao exterior, aquela discussão que eles têm, acho que deveria ocorrer cerca das 16:30 ao pé destes pilares. Eles devem caminhar para dentro e fora deles à medida que a água lhes chega aos pés.” E nós fizemo-lo. Tinha criado uma arcaria milanesa no meio de Malibu.
Diz que escreve como um argumentista e realiza como um realizador. Prefere a escrita ou a realização?
Quando me perguntam isso gosto de dar a resposta do Truffaut: “Quando estou a escrever prefiro realizar, quando estou a realizar prefiro a montagem, quando estou na montagem prefiro escrever.” Na escrita tens imensa liberdade, o mundo é tão grande quanto a tua imaginação. Na realização não és tão livre porque estás condicionado pelas condições atmosféricas, logística, orçamento… não sentes a liberdade que antes sentias, mas é muito comunal, a começar pelo acto de sair todas as manhãs e dizer “bom dia” a cem pessoas diferentes.
[Membro da audiência nº1] O que pensa actualmente de Affliction (Confrontação, 1997)?
Acho que é, provavelmente, uma adaptação quase perfeita do livro. Acho que lhe fiz justiça e isso é do que mais me orgulho. Tinha pensado em fazê-lo muito robusto visualmente, como em The Comfort of Strangers (Estranha Sedução, 1990), onde a câmara quase nunca pára. Eu e o director de fotografia, Paul Sarossy, estávamos a olhar para estes movimentos de câmara e depois fui ensaiar. Quando voltei, encontrei-o e disse-lhe: “Sabes aqueles movimentos de câmara de que falámos? Não os vamos fazer. Porque acabei de ver a coisa mais interessante deste filme inteiro. É a cara do Nick Nolte, e é nela que nos vamos focar.” E é exactamente assim que tu te adaptas enquanto realizador.
É interessante porque, mesmo sendo uma adaptação, quase que se sente que foi o Schrader quem o escreveu. Lembra-me muito o Taxi Driver, uma personagem obcecada, auto-destrutiva, e depois este momento violento, catártico, no final. Concorda?
Bom, o Renoir disse uma vez: “Cada realizador só faz um filme na sua vida. Depois arranja maneiras diferentes de o refazer.” E acho que Taxi Driver, Light Sleeper, American Gigolo, The Walker (O Acompanhante, 2007), Affliction, First Reformed, toda esta galeria é sobre uma personagem que é geralmente parecida comigo. O que me interessou em Affliction foi o outro ângulo de abordagem: o fraterno, porque esta história é-te contada sobre o ponto-de-vista do irmão mais novo. Não é uma história que estás a observar per se, mas a ser narrada, e foi esse prisma que me interessou.
[Membro da audiência 2] Pode falar um pouco sobre o sagrado e o profano nos seus filmes?
Não tem havido muito sagrado, embora tenham havido algumas referências religiosas. Mesmo com The Last Temptation of Christ (A Última Tentação de Cristo, 1987) há muitas referências, mas não sei quão sagrado é. É mais sobre o lado humano de Cristo do que o divino. Isso não aconteceu até ao First Reformed, onde quis que as pessoas chegassem até ele por si. Por isso, quando me encontrei com o Ethan Hawke perguntei-lhe: “Sabes o que é um desempenho recessivo? Sempre que sentires que o espectador está interessado no que vais dizer, recua. E se vires que eles ainda estão interessados, recua ainda mais. Vê quanto podes recuar para longe deles.” É isto um desempenho recessivo. Num filme contemplativo, vais retirando coisas até o espectador sair da sala ou vir até ti. Geralmente, uso muito mais o realismo psicológico.
Mesmo que First Reformed tenha sido a primeira vez que tenha tentado filmar o sagrado, há as derivações de Pickpocket nos finais de American Gigolo e Light Sleeper.
Foi um erro tê-lo feito em American Gigolo. Pareceu-me apenas que lhe atirei aquele final, ao invés de sair do filme. Portanto, quando estava a escrever Light Sleeper pensei: “Como é que vou acabar este?” E depois: “Este é aquele que tem de ter o final de Pickpocket, não o American Gigolo. Se é para roubá-lo, mais vale fazê-lo pela razão certa.” E roubei-o outra vez.
Permita-me discordar. Acho o final de American Gigolo verdadeiramente belo. Temos este homem narcísico, incapaz de exprimir amor genuíno, e é naquele final que percebemos que ele é, finalmente, capaz de amar outro ser humano.
[Titubeante] Bom… sim… mas… estilisticamente… [Resignado] Concordo contigo.
[Risos da audiência]
Mencionou há pouco Renoir. Escreveu um artigo onde expõe o seu cânon fílmico, e apesar da sua adoração por Bresson e de Pickpocket ser talvez a referência mais importante na sua carreira, o topo do pódio é ocupado por La règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939). Por que razão acha este o maior filme de sempre?
Acho que é a combinação de todas as coisas diferentes e maravilhosas que um filme pode ser. Personagens diferentes, temas diferentes, a inventividade da câmara, a relevância política daquele momento. A razão pela qual o escolhi foi porque me propuseram: “Se tivesses que escolher um filme para se salientar diante de todos, qual escolherias?” Nesse caso não iria escolher o Pickpocket, mas sim La règle du jeu para dizer: “Um filme é isto.”
De volta a Taxi Driver e First Reformed, estes dois filmes parecem irmãos. Há estas personagens muito perturbadas, que claramente desejam a morte, embora sejam incapazes de cometer o suicídio. Sentem esta estranha necessidade de se tornarem mártires por alguma causa.
Em First Reformed tens um homem doente, vítima do que Kierkegaard chamou “a doença até à morte”, que é o desespero. Ele diz “vou escrever um diário por um ano”, e ele está a tentar usar várias coisas para se curar: o diário, a liturgia da igreja, o álcool… está a tentar encontrar o caminho para fora deste lugar negro. Depois conhece este rapaz que lhe lembra o filho e que se mata. E ele apanha o vício deste rapaz. Não sei se ele era, de facto, um activista ambiental, mas ele guardou as cartas dele. A razão pelo qual ficou tão atraído foi porque Santo Agostinho disse à Igreja Sagrada que o suicídio era pecado, e qualquer um que cometa suicídio está a cometer um pecado moral. Com uma excepção: Sansão. Sansão não era um pecador, era um guerreiro que sacrificou a própria vida. De repente, o Reverendo Toller já não é um pecador suicidário, é um potencial mártir. Esta linha de pensamento é assustadora. É essencialmente jihadismo. Frequentemente aparece no Cristianismo aquilo a que chamo de “a patologia da glória suicidária”, esta noção de que se contribui para a redenção com a própria dor. O que o Cristianismo nos ensina é que Jesus sofreu por nós. A tentação de ser como Jesus, sofrer como Jesus, de te chicoteares nas costas ou de passares fome deliberadamente, pode ser um pecado ainda maior do que o suicídio. É isso que faz de First Reformed tão assustador. Vêmo-lo a desejar o martírio e isto parece-nos errado. E com frequência vemos jovens cristão a ficarem malucos porque começam a auto-induzir o sofrimento.
[Membro da audiência 3] Poderia falar de The Canyons (Vale do Pecado, 2013)? Já que há pouco falávamos das audiências dos anos 70, este é um filme para as audiências pós-salas de cinema.
Isso aconteceu porque o Bret Easton Ellis e eu estávamos num filme diferente que acabou por se desmoronar. E disse-lhe: “Sabes Bret, a tecnologia está a mudar tão rapidamente, mais vale fazermos um filme e pagarmos tudo nós próprios. Tu escreves, eu realizo e vamos apenas fazê-lo.” A tentação, a diversão, a experiência de fazer aquele filme, “Isto pode resultar? Consigo fazer um filme assim com 150.000 dólares, financiados a partir da Internet?”, e claro que isso nos deu a liberdade para fazermos o que queríamos, porque era o nosso dinheiro e não tínhamos nada coberto por seguros. A Lindsay Lohan não é contratável porque não consegue arranjar um seguro, o Bret queria que filmasse esta cena de sexo a quatro de que gostava, e o James Deen achei que acabou por ser deliciosamente sofredor da malaise milenar. Portanto, foi uma grande experiência, vendemos o filme, todos fizeram dinheiro. Foi algo que me diverti a fazer uma vez, mas creio que não voltarei a repetir porque envolve muito trabalho.
Qual dos seus filmes prefere?
Tal como tens amor pelas tuas crianças por diferentes razões, o mesmo se passa com os teus filmes. Mishima… é provavelmente o mais singular, o mais experimental, mesmo que tenham já passado muitas décadas não há outro como ele. E isso deixa-te orgulhoso, o facto de teres conseguido arranjar financiamento e fazê-lo. Outros filmes são importantes a um nível mais pessoal, como Light Sleeper. Outro de que gosto muito é The Comfort of Strangers, por causa da sua realização. Isto não é o mesmo que dizer que são todos bons. Não são.
Já que fala em Mishima…, há uma coisa que reparei no seu trabalho fílmico. Mesmo que já tenha escrito sobre Ozu, os aspectos culturais que lhe interessam na cultura nipónica são muito diferentes dos que estamos habituados. Importa-lhe apenas o lado auto-destrutivo deles, nunca esta questão do dever familiar que há em Ozu. Ao invés, o que importou do Japão foi a yakuza e Mishima.
A origem de Mishima… foi que tinha escrito Taxi Driver e queria retornar a esse tema, a patologia da glória suicidária. Estava a escrever um argumento sobre o Hank Williams e achei que devia parar, que ele era apenas mais um miúdo americano burro, e que se eu queria voltar a este tema tinha de partir para um ambiente totalmente diferente. O meu irmão falou-me de Mishima e da sua morte e eu disse: “Agora, aqui temos um homem muito bem-sucedido, que viajou pelo mundo inteiro, de família, homossexual, multi-talentoso. No entanto, apanhado no mesmo vício dessa patologia da glória suicidária.” Foi isso que me atraiu em Mishima, a capacidade de olhar para esta patologia de lados diferentes. E num artigo que saiu este ano (e acho que têm razão) disseram que este não era um filme sobre Mishima, mas sobre o Mishima do Schrader. Foi isso que aconteceu, a História deu-me uma personagem semelhante àquelas sobre as quais habitualmente escreveria.
Que conselhos deseja dar a jovens argumentistas?
Em primeiro lugar, se encontrares algo que te vês mais feliz a fazer, fá-lo, porque as probabilidades de falhanço, desânimo e rejeição são muito altas. Portanto, tens de ser algo obsessivo. Mas eis algo útil: eles têm a tendência de olhar para um filme e quererem fazer algo semelhante ao que viram. E isso não é maneira de entrar na indústria porque eles já têm pessoas que saibam imitar os filmes já feitos. Não precisam de ti para isso, mas sim para algo que ainda não perceberam que necessitam. Portanto, tens de olhar para ti e pensar: “O que é que posso trazer a este mercado que eles só possam arranjar em mim?” Para além disso, ter em mente que a escrita de argumentista não é uma escrita funcional. É uma função de storytelling, de uma tradição oral. Nós não escrevemos verdadeiramente um filme, contamo-lo. E é assim que tento fazer: tenho um problema, encontro uma metáfora, começo a contar uma história. Depois, cada vez que a contares a alguém, olha para a pessoa que está a ouvi-la. Algo vai acontecer à medida que a contares repetidamente a diferentes amigos: ou perdes o interesse, e isso é óptimo porque te poupaste ao trabalho de escrever um argumento que as pessoas não querem ver; ou o oposto irá acontecer e o argumento ficará farto de ser contado e dirá que é altura de começar a ser escrito. Só funciona com argumentos originais, mas foi assim que comecei e é assim que ainda escrevo.