Na passagem pelo LEFFEST’18, antecipando a estreia em sala de Suspiria (2018) de Luca Guadagnino, revejamos o clássico de 1977 assinado por Dario Argento e recordemos o que tivemos oportunidade de salientar anteriormente nestas páginas: Suspiria de Dario Argento é um dos últimos sinais de uma época fecunda em que o psicadelismo, enquanto legado da contracultura hippie dos anos sessenta, que se posicionou como ferramenta para o indivíduo reclamar a despossessão do corpo, por meio de uma deriva alucinatória conduzida pela emoção, à margem da razão. Ao longo da década de 1970, nos Estados Unidos, surgiam sinais de tensão dentro do movimento, sendo Let’s Scare Jessica to Death (As Escarpas do Medo, 1971), de John D. Hancock, um dos melhores exemplos, através da imagem de uma carrinha funerária a servir de veículo de transporte para um grupo de hippies que abandona a cidade para se refugiar no campo. Por sua vez, em The Last House on the Left (1972) de Wes Craven entra em cena a violência dos monstros, filhos da contracultura, que agem segundo leituras desfasadas das práticas contestatárias e libertárias do movimento. Em Itália, o cinema de terror demorou a desligar-se da sobriedade do gótico e foi o giallo (na versão ácida), género que associa crime, suspense e erotismo – de que Suspiria e o sucessor Inferno (1980), também realizado por Dario Argento, são dois dos seu pontos altos -, que abraçou a realidade estética promovida pelo psicadelismo. Suspiria tem uma considerável visibilidade, incluindo apetecíveis edições em DVD e Blu-ray, tendo a 10ª Festa do Cinema Italiano (2017) programado uma versão digital restaurada em 4K, anos depois de o Motelx (2012) ter convidado Dario Argento a deslocar-se a Lisboa para acompanhar a sua exibição. Com a ajuda de filtros gelatinosos e tecidos difusores, a paleta cromática de Suspiria composta por cores primárias em tons vivos e intensos, embriaga os corpos, conduzindo-os a estados de transe, que os transforma em presas submissas e diminui a sua capacidade racional. O espectáculo sensorial em que emerge o espectador, conjugado com a qualidade de definição da imagem e do som das modernas salas de cinema, tornou a experiência de o ver em sala numa experiência única e avassaladora.
Outro ponto em que importa reflectir, ainda que não se queira retirar mérito à sua obra, é a celebração da originalidade de Dario Argento e, por conseguinte, da superlativação dirigida a Suspiria. É um facto que Dario Argento não descobriu a pólvora, nem ele reclama o feito que lhe querem atribuir. Reconhece Mario Bava como o seu mestre, com quem diz “ter aprendido tudo o que sabe”. De facto, em La ragazza che sapeva troppo (A Rapariga Que Sabia Demais, 1963), Bava foi precursor do giallo e em Sei donne per l’assassino (Seis Mulheres Para Um Assassino, 1964) fornece matéria para a sua consolidação. Seria neste género que Argento se celebrizaria, por meio de uma apreciável reescrita da obra de Bava. L’uccello dalle piume di cristallo (O Pássaro com Plumas de Cristal, 1970) retorna a La ragazza che sapeva troppo, e 4 mosche di velluto grigio (Quatro Moscas de Veludo, 1971) a Sei donne per l’assassino. No entanto, é em Profondo rosso (O Mistério da Casa Assombrada, 1975) que assume a determinação em explorar a invenção cromática de Sei donne per l’assassino, que, por sua vez, explode em Suspiria, e em Inferno ganha um novo equilíbrio com a convocação do próprio Mario Bava para dirigir uma segunda equipa de realização. Mario Bava não está mencionado nos créditos de Inferno, mas sabemos que lhe coube supervisionar cenas com efeitos especiais com base em técnicas em que era especialista e com que impregnou os diferentes géneros a que se dedicou, tanto como realizador ou colaborador. Com a inesperada doença de Dario Argento, foi-lhe pedido um maior envolvimento, não sendo suficientemente claro até que ponto se pode separar a colaboração da autoria. Certo é que o maestro não aceitou ser creditado porque queria ser recordado como cineasta e não como técnico de efeitos especiais e, nas principais publicações dedicadas à sua obra, Inferno é analisado juntamente com os filmes que realizou.
A inabilidade em descodificar a energia bruta que convoca, bem como de lidar com os mecanismos do cinema de terror, condenam definitivamente a visão de Luca Guadagnino que, claramente, prometeu mais do que poderia oferecer.
Nos últimos anos, periodicamente, surgia a noticia de que estaria em estudo um remake de Suspiria. Avisadamente, a proposta nunca terá saído da prateleira, até que Luca Guadagnino, o maestro do travestismo boçal, negociou os direitos de adaptação com Dario Argento e Daria Nicolodi, autores do argumento original. Antes de David Gordon Green se dedicar a Halloween (2018), revisão da obra-prima em que John Carpenter trabalhava na mesma época em que Dario Argento se entregava a Suspiria, foi convocado para o projecto. Gordon Green queria um projecto próximo do original, mas a proposta foi considerada demasiado cara e abandonada. Olhando para o Halloween de Gordon Green podemos antever algumas pistas de como seria a sua versão de Suspiria. Apoiado pelo modelo de produção de Jason Blum, sem pôr de lado as premissas do original, Gordon Green propõe uma economia sustentada na reformulação da personagem de Jamie Lee Curtis, envelhecendo-a, de-sexualizando-a, transformando-a numa máquina de guerra que destabiliza as linhas que separam a vítima do monstro. Outro óptimo exercício recente de revisão, embora não oficial, é Thelma (2017) de Joachim Trier, que despedaça Carrie (1976) de Brian De Palma, outro clássico da mesma época, mantendo o corpo feminino como reflexo de dolorosas formas de repressão familiar e social, mas por meio de um dispositivo sóbrio de zooms e lentos movimentos de câmara, em que atmosferas sombrias e frias substituem a original paleta cromática de cores vivas. Fã de Suspiria de Dario Argento, que viu com tenra idade, Luca Guadagnino chamou a si a responsabilidade de realizador e a Amazon Studios assegurou a distribuição, pelo que lhe deveremos reconhecer o mérito de concretizar um projecto que sempre esteve emperrado. É pena que o resultado seja francamente mau. A todo o custo, Guadagnino quer fugir do termo remake, antes preferindo a solução de cover version ou de homenagem. Mas é claro que Guadagnino trabalha sob influência. As decisões foram tomadas como reacção ao filme de Dario Argento e, conjugando com a sua história pessoal, das experiências que lhe proporcionou.
Comecemos pelo final, um emotivo coração riscado numa superfície, que simboliza o amor inabalável entre duas personagens separadas pelas perseguições nazis. A visão de Suspiria como uma história de amor em ambientes frios, embalada docemente pela música de Thom Yorke, no lugar da disrupção dos Goblin sobre as cores surreais, é o sinal inequívoco de que Guadagnino se aborreceu com o papel de fan boy e convoca o amor como resposta derradeira contra um mundo dominado por um vicioso ninho de bruxas. No pretensioso universo de Guadagnino não há bruxas más do oeste, homens de lata sem coração, leões covardes ou espantalhos falantes, mas há tantos trilhos narrativos que é titânico o esforço para os interligar e concluir até ao sprint final, que ansiosamente o espectador aguarda. Dario Argento criou um argumento simples que se poderia resumir em duas ou três linhas. Na falta de garra na componente visual, Luca Guadagnino complexifica a narrativa com temas e motivos intermináveis que se prolongam ao longo de cento e cinquenta e dois minutos. A acção decorre em Berlim, em 1977, durante o período que ficou conhecido como “Outono Alemão”, série de eventos de terrorismo urbano que incluía explosões, assassínios, raptos, assaltos a bancos e tiroteios – como o rapto e assassínio do industrial Hanns Martin Schleyer pelo Grupo Baader-Meinhof, ou o sequestro do avião Landshut, propriedade da companhia aérea Lufthansa, pela Frente Popular para a Libertação da Palestina. A revolta da juventude alemã reflectia o desencanto com o modo como a sociedade resistia ao confronto com os despojos da Segunda Guerra Mundial e o legado do nazismo. O processo de desnazificação era visto como deficientemente concluído, mantendo-se activos muitos elementos nazis em posições centrais dos campos social e político. Guadagnino dispersa-se pelos múltiplos trilhos de um orçamento de vinte milhões de dólares, mesmo tendo por cenário uma cidade que por si só é a imagem perfeita das fracturas do pós-guerra – não passa despercebido o Muro, que surge num dos primeiros planos, nem a memória de Possession (Possessão, 1981) de Andrzej Zulawski. Ultrapassa a motivação política dos movimentos juvenis e a complexidade de temas como o sentimento de culpa colectiva, suscitada pela dificuldade em separar os condenados de Nuremberga dos restantes alemães, não só traçando grosseiramente o contexto social e político, como indicando uma aberrante ordem de equivalências.
Mesmo recorrendo à ambivalência, Dario Argento foi apressadamente questionado pela postura relativa a questões de género e pela sua representação, nomeadamente pela misoginia quando apresenta mulheres enquanto vítimas de assassinatos na sua vertente mais gráfica, sexualizada e glamorosa. Na versão de 2018, Suspiria colapsa deliberadamente as fronteiras entre o masculino e o feminino, opção sobre a qual as mais esclerosadas visões dos estudos de género farão o favor de teorizar. À actriz Tilda Swinton é pedido para interpretar mais que um papel – secundarizando indignamente outras actrizes marcantes de um cinema europeu mais aventureiro (Jessica Harper, Ingrid Caven ou Renée Soutendijk) -, incluindo um psicanalista perdido entre as memórias dolorosas da Segunda Guerra Mundial e a observação das praticas de ciências ocultas, que aparece na ficha técnica como sendo representado por Lutz Ebersdorf, octogenário que aqui se estrearia no cinema. Sem máscara, longe de outras interpretações histriónicas, Tilda Swinton balança entre referências, incapaz de impor um centro. Com o eterno cigarro entre os dedos e a figura esguia, é Pina Bausch (1940-2009), principal herdeira do pioneiro do Tanztheater, Kurt Jooss (1901-1979), combinação de dança com elementos dramáticos, sob uma Alemanha do pós-guerra. Noutra cena, em que o vestido amplo toca o chão, remete para a vida e obra da coreógrafa norte-americana Martha Graham (1894–1991). Na pele de Lutz Ebersdorf, soterrada pelas múltiplas camadas de látex e de próteses que a moldam, é a caricatura do body horror, enquanto discurso das possibilidades transformativas do corpo humano. A inabilidade em descodificar a energia bruta que convoca, bem como de lidar com os mecanismos do cinema de terror, condenam definitivamente a visão de Luca Guadagnino que, claramente, prometeu mais do que poderia oferecer. Não nos larga a sensação de termos sobrevivido a uma perfeita hecatombe.