Si elle avait péché, c’était par excès d’amour
Stendhal, Vanina Vanini
A Livia de Boito
Na novela de Camillo Boito que Visconti adapta, igualmente intitulada Senso, a protagonista, Livia, é desde o início caracterizada como uma espécie de femme fatale lúbrica, amaneirada e manipuladora. Quando a narrativa – que assume a forma textual de um diário – começa, Livia encontra-se num salão, observando o seu reflexo num espelho ao mesmo tempo que, agastada, ouve as súplicas apaixonadas de um jovem advogado. O espelho surge, assim, como a primeira figura da obra, funcionando como possível símbolo de vaidade, mas também, e essencialmente, do solipsismo desta mulher que encontra no espelho, isto é, na sua imagem, o único conforto: “Preciso de mortificar a minha vaidade. À inquietação, que me corrói a alma e que deixa quase intacto o meu corpo, alterna-se a presunção da minha beleza: nem tenho outro conforto que não seja este, o meu espelho” (18).
Para além de caracterizar a protagonista, a localização do espelho no início do texto faz com que este abra, significativamente, sob o signo da representação, não só enquanto fenómeno abstracto, mas também enquanto algo do domínio da experiência: no interior do espelho, Livia vê-se a representar o espectáculo da sua vida. Deste modo, ela não só vive a acção como observa o seu reflexo, desempenhando simultaneamente os papéis de actriz e espectadora, sublinhando-se assim a noção de que, para esta mulher, a vida não existe sem o seu duplo representativo, sendo que ela habita simultaneamente ambos.
Poucas páginas depois do início, Livia inicia o relato do seu envolvimento amoroso com Remigio, ocorrido treze anos antes. Em consonância com o estilo característico de alguma literatura decadentista do fim do século XIX, encabeçada por Gabriele D’Annunzio [que Visconti adaptaria no seu último filme, L’Innocente (O Intruso, 1976)], uma certa noção de sensualidade é aqui fulcral; e ela não é apenas temática, contagiando o discurso de Livia e também toda a obra, uma vez que todo o livro corresponde ao diário escrito na primeira pessoa. Um dos exemplos paradigmáticos desta característica é a descrição que a autora faz de Veneza:
Veneza, que eu nunca vira e que tanto tinha desejado ver, dizia-me mais aos sentidos que à alma: os seus monumentos, dos quais não conhecia a história nem entendia a beleza, interessavam-me menos que as águas verdes, o céu estrelado, a lua de prata, os crepúsculos dourados e, sobretudo, a gôndola negra em que, deitada, me deixava levar pelos mais voluptuosos caprichos da imaginação. (25)
Esta passagem é importante por duas razões: por um lado, permite-nos perceber que Livia é uma personagem de tal forma sensual, que até a sua descrição dos espaços está ligada a fortes impressões sensoriais – ela prefere o sentir ao conhecer e ao entender; por outro, ela sinaliza a entrada clara da imaginação na economia narrativa e conceptual da obra, associando Livia a outras heroínas adúlteras da literatura do século XIX, e em particular Madame Bovary (mas também Effi Briest e, em menor escala, Anna Karénina), tendo em conta a sua vontade de se perder nos “voluptuosos caprichos da imaginação”.
Tal como nos romances de Flaubert, Tolstói ou Fontane, estamos aqui perante uma mulher casada com um homem mais velho, num casamento sem paixão, presa às “estúpidas convenções sociais” (19) e incapacitada, pelos constrangimentos da sua condição, de perseguir os seus sonhos românticos. À semelhança do que sucede com Ema Bovary, esta incapacidade resulta num sentimento de tédio e numa paralisia que vão corroendo Livia até serem interrompidos no momento em que um homem jovem e belo surge, e, com ele, a promessa de um amor proibido que a liberte da convencionalidade e lhe possibilite ingressar na fantasia que ambiciona para si mesma. A propósito disto, Livia escreve, a certa altura, “eu tinha necessidade de amar” (26), o que certamente se poderia encontrar também nos “diários secretos” (“Diário secreto de Livia Serpieri” é o subtítulo da novela de Boito) das conterrâneas literárias Bovary, Briest ou Karénina.
A paixão de Livia, no entanto, é regida por contornos ligeiramente diferentes dos que regem as paixões das restantes. Em primeiro lugar, e sem surpresa, Livia escolhe Remigio porque ele é excepcionalmente belo, tal como nos conta na descrição do momento em que se vêem pela primeira vez, numa ocasião em que ela, nua como uma ninfa (ou como uma prostituta – perceber-se-á esta associação adiante, quando discutir a sequência final do filme de Visconti), nada no mar:
Pareceu-me feito de mármore, de tão branco e belo que era; mas o seu amplo tórax agitava-se devido à respiração profunda, e os olhos azuis-celestes brilhavam-lhe, e dos cabelos louros escorriam gotas como uma chuva de pérolas brilhantes. Direito, em pé, meio velado pela água ainda tremulante, ergueu os braços musculosos e macios: parecia agradecer aos numes e dizer: “finalmente!” (28)
Por outro lado – e aqui se verifica o desvio antes mencionado em relação aos romances modelares –, Remigio corresponde perfeitamente aos impulsos masoquistas da condessa: “Por vezes ele às escondidas carregava no meu pé com o seu, e não raramente fazia-me doer tanto que o meu rosto ficava todo vermelho; mas até essa dor me agradava” (29). A ideia de masoquismo é importante na caracterização da personagem de Boito, e essencial para compreender a relação entre a Livia do passado (a que vive os eventos narrados) e a do presente da narração, essa viagem que transforma uma mulher masoquista – que sofre voluntariamente nas mãos do “forte, belo, perverso, vil” (25) Remigio – numa mulher sádica, que atormenta o inofensivo e submisso advogado Gino.
Na novela de Boito, a razão por detrás da atracção de Livia por Remigio é sugerida nestes termos: uma mulher entediada e com tendências sadomasoquistas encontra naquele homem alguém que pode concretizar simultaneamente os seus desejos de aventura e de sujeição. Posto isto, é forçoso notar que, no texto de Boito, Remigio nunca é apresentado como um homem real, que incorpore uma dimensão psicológica. Isto acontece porque, como vinquei antes, o livro e o diário coincidem, e portanto a condessa é a autora do texto, isto é, a voz através da qual toda a matéria narrativa chega até nós. Nunca temos acesso ao verdadeiro Remigio, mas sim a um homem percepcionado por uma mulher que, na verdade, é uma criatura solipsista que – como sabemos desde as primeiras linhas – tem em ver-se ao espelho o seu último consolo. Deste modo existem, ao longo da novela, várias passagens que apontam para o facto de, na verdade, ela não estar apaixonada pelo homem, mas pela ideia do homem, uma imagem, um ícone “feito de mármore”, também ele uma espécie de espelho onde ela se vê reflectida.
A certa altura, perante a possibilidade de Remigio ter de partir para a guerra, Livia escreve: “Temia pela vida do meu amante; mas temia ainda mais a longa e inevitável separação entre nós dois que deveria seguir-se” (38), dizendo ainda, noutro passo, estar, “contudo, mais preocupada por [si] do que por ele” (47). Não obstante o sofrimento, ela revela, perto da conclusão do diário, ter demasiado apego a si mesma para ceder à fantasia romântica final do suicídio, que consagrou as suas conterrâneas Ema e Anna: “mas não me veio, nem sequer por um instante, a tentação do suicídio” (59). Livia vive unicamente consigo mesma (o exercício onanista de escrever um diário aponta nesse sentido), e vê tudo o resto num espelho imaginário, no centro do qual ela mesma surge emoldurada, como no primeiro quadro do livro. Como se, fora do âmbito da consciência de Livia, isto é, no mundo físico, a vida fosse efectivamente um espectáculo em que ela é a protagonista (o que não acontece de facto, e será ao tomar conhecimento disso que ela precipitará a tragédia final). Assim sendo, não causa estranheza que esta mulher frívola e dependente do seu reflexo escolha, como tema da rememoração, o episódio de vida que mais eficazmente a aproxima de uma heroína romântica. Sendo o mais espectacular e dramático, esse episódio funciona por conseguinte como o mais relevante para uma exímia espectadora de si.
O passo – aliás, recuperado em Visconti – em que Livia recebe uma carta do amante é perfeitamente ilustrativo desta ideia. A reacção inicial face à missiva é de desgosto com o seu “tão ordinário” conteúdo (46); porém, no desejo de ultrapassar essa vulgaridade indesculpável no contexto de um grande amor inventado, Livia efabula em torno da carta, sublimando-a e imprimindo-lhe o valor simbólico que esta tem obrigatoriamente de ter, se de facto lhe cumpre protagonizar um papel de destaque num melodrama:
depois, ao voltar a lê-la, pouco a pouco fui-me persuadindo de que o tom em que estava escrita era afectadamente ligeiro e alegre, e que o meu amante fizera um cruel mas nobilíssimo esforço para conter os ímpetos do seu coração, quer para não lançar uma nova acha na minha paixão, que era já um incêndio, quer para me tranquilizar um pouco o espírito, que ele sabia terrivelmente ansioso. (46)
Ela escreve ainda: “e aqueles períodos grosseiros e cínicos apresentavam-se à minha fantasia sublimes de generoso sacrifício. Precisava muito de acreditar que a minha inquietação encontrava uma desculpa na inquietação do outro” (47). E acrescenta: “Eu sonhava que ele corria perigos, que me surgiam tanto mais horrendos quanto mais incertos eram” (47). Livia regista as suas memórias de factos como se efabulasse uma existência ficcional, escrevendo um diário como se escrevesse um romance. Ora, o que é interessante, aqui, é que ela o faz efectivamente – e não me refiro ao facto de Livia ser na verdade uma personagem de um romance escrito por Boito, estando por isso condenada a uma existência ficcional de romance, pois esse é o nível mais elementar da auto-reflexividade. O problema, no esquema proposto por este texto, é que Livia viveu efectivamente uma história de amor num mundo de romance que é, afinal, o seu mundo real, denunciando que a realidade do mundo – enquanto algo passível de ser experienciado por alguém – pode coincidir inteiramente com a “fantasia sublime”.
Que a fantasia adquira um estatuto de real em Senso não é problemático. Livia vive a sua vida como se de um sonho (romântico) se tratasse aparentemente sem problema algum. A dificuldade, no que diz respeito ao episódio do passado que aqui nos é contado, reside no facto de a realidade sonhada de Livia não ser, afinal, partilhada por Remigio. A certa altura, ela descobre que ele alimentou o relacionamento apenas porque ela repetidamente lhe dá dinheiro, e que, na verdade, mantém relações com outras mulheres, junto das quais faz troça de Livia. Ou seja, ela descobre que o amado não é apenas um actor no seu devaneio romântico, operando ainda numa outra dimensão à qual ela não tem acesso e na qual é apenas uma mulher patética, objecto de chacota. Reportando-se ao momento em que tomou conhecimento de tudo isto, a diarista diz-nos: “Via e ouvia tudo como se estivesse mergulhada num sonho: perdera o sentido da realidade”. Aqui, a realidade imaginária, espécie de sonho romântico em que Livia vive, é temporalmente substituída por um outro sentido de realidade que, não obstante ser a realidade exterior (efectiva), ela toma – pervertendo absolutamente a ordem natural das coisas – como um sonho.
O episódio de humilhação acaba por oferecer à história de Livia um desenlace mais perfeito (porque verdadeiramente infeliz) do que ela alguma vez imaginara. Ela arquitecta um final para a sua fantasia, e trai Remigio, denunciando-o enquanto desertor e assistindo ao seu fuzilamento. Quando Livia denuncia o amante, o general apercebe-se de que a denúncia tem origem num acto de vingança, e diz-lhe: “Minha senhora, pense bem: a delação é uma infâmia, e a sua obra é um assassínio” (68), trazendo para o interior da narrativa (contada na primeira pessoa, lembre-se) um ponto de vista discordante do seu, que devemos manter no horizonte da análise: esta pode ser a história de um grande amor que progride para uma humilhação e termina numa vingança justificada (esta é a perspectiva de Livia), ou pode ser a história de uma relação entre duas pessoas que, com poucos escrúpulos, não fizeram mais do que abusar uma da outra, culminando na morte de uma delas (esta seria a perspectiva do general).
O filme de Visconti retirará à história a dimensão puramente subjectiva que o formato do diário concretiza. Contudo, o filme retoma esta reflexão acerca de subjectividade e objectividade, interior e exterior, e, particularmente, efabulação e experiência.
A Livia de Visconti
Se Camillo Boito associa a sua personagem a Valeria Messalina, esposa do imperador Cláudio reputada como mulher cruel, ambiciosa e promíscua (62), a protagonista do Senso (Sentimento, 1954) de Visconti é, pelo contrário, inicialmente apresentada como uma mulher íntegra do ponto de vista ético, fiel ao matrimónio e à causa dos revolucionários (a acção passa-se em pleno Risorgimento). Este último elemento, de carácter político, está ausente do texto de Boito e constitui, porventura, a transformação mais importante de entre as várias operadas pelo cineasta. A queda da Livia de Visconti acaba por se revelar mais acentuada do que a da condessa de Boito precisamente porque, no final, ela não é apenas uma mulher que traiu um marido e um amante, mas sim alguém que traiu igualmente uma causa maior, um imperativo colectivo e histórico que passou a desvalorizar no momento em que a paixão entrou na sua vida, originando um movimento para dentro, de concentração exclusiva em si e no seu drama pessoal.
Ao nível da forma, mas com implicações decisivas no entendimento do texto e do filme, é de notar que no primeiro existe um tempo presente bem demarcado no qual acontecem coisas, como, por exemplo, a situação que descrevi, em que Livia se olha ao espelho; por seu turno, o filme de Visconti situa-se, no plano da imagem, inteiramente no passado. Mas só sabemos que vemos o passado porque há uma voz em off, a de Livia, que, falando no presente, identifica os eventos a que assistimos como estando localizados no passado. Esse presente a partir do qual ela fala, contudo, é um presente enunciativo de que não sabemos nada, porque o filme nada nos dá dele para além dessa voz. Este dispositivo inscreve na obra um regime de assombração que funciona duplamente: por um lado, dir-se-ia que a Livia do presente, sem corpo e rematerializada unicamente em voz (acusmática, de acordo com a categorização de Chion), é um fantasma que, posicionando-se no início do filme, o assombra. Por outro lado, os eventos passados a que assistimos durante a progressão de Senso são activados e cinematografados através de um efeito de rememoração, activado pela palavra, que tem lugar porque – tal como a protagonista de Rebecca (Rebeca, 1940) de Alfred Hitchcock – Livia é assombrada pelo passado. Aquilo que talvez importe retirar desta dinâmica é que, nesta transição do passado para o presente, verifica-se a erradicação do corpo de Livia (na sua última aparição no filme, o corpo é transformado numa mancha negra que desaparece na escuridão da noite) e a subsistência da sua voz, isto é, um processo de desaparição do qual fica o único elemento (a voz) que, por meio da linguagem, e com o auxílio do cinema, essa máquina geradora de imagens, pode fazer regressar o momento em que de Livia havia mais do que uma voz que conta uma história: isto é, um corpo que viveu uma história. Pois se, tal como o romance de Boito, Senso é sobre uma mulher que vive uma história, este filme é também sobre uma mulher que, não tendo já, no presente, uma história (uma vida) para viver (ou seja, uma mulher que, para todos os efeitos, está morta), faz regressar a história (a vida) que viveu através da narração, apossando-se, nesse processo, da vida possível.
A novela de Boito centra-se unicamente nas aventuras sentimentais de uma mulher movida pelas paixões, uma mulher frívola, vitimada pela síndrome Bovary, apaixonada por um homem que, sendo belo e vil, corresponde ao seu pouco exigente ideal romântico. Visconti apropria-se destes elementos de base, mas problematiza-os, adicionando-lhes uma dimensão exterior à subjectividade romântica desta personagem, uma dimensão que, como fiz notar, já marcava presença no fim da novela de Boito, no momento em que o general alertava a protagonista para as consequências morais do seu acto derradeiro. Esta outra dimensão, realista, que serve o propósito de complementar, complexificando, a fantasia romântica (o sonho) de Livia, é trabalhada por Visconti de forma a assinalar a sua degradação moral. De certa forma, não estamos demasiado longe do que Dostoiévski propõe em Noites Brancas, um curto romance protagonizado e narrado por um homem diletante, de temperamento artístico e, acima de tudo, com tendência para a fantasia, isto é, para sobrepujar a contingência material, pobre, da sua existência com a entrega ao reino da imaginação, ansiando por “uma vida [que é] uma mistura exacta de pura fantasia, de ideal fervoroso e […] qualquer coisa descolorida, prosaica e vulgar, para não dizer: de uma chateza incrível” (Dostoiévski 2001: 35). Embora Dostoiévski escrevesse para os jornais artigos de opinião em que condenava a figura do “sonhador” (cf. Leatherbarrow 2009), alertando para o facto de este tipo social existir efectivamente na Rússia sua contemporânea, devendo ser combatido por representar uma forma de alienação perigosa para a sociedade, este julgamento não transparece na sua novela, na qual o autor adopta a perspectiva do seu sonhador para tentar perceber a arquitectura e o funcionamento próprios deste “sonhadorismo”, ainda que aproveite, no final, para deixar o alerta para as consequências potencialmente nefastas deste modo de vida.
Assim, ao mesmo tempo que Visconti constrói uma protagonista à partida virtuosa, ele acaba por transformá-la também, de certa forma, num monstro mais horrível do que a mulher de Boito, sendo que – e é por isto que Livia é uma personagem densa e marcante – ela nunca deixa de ser ambas, ou seja, que a virtude e a monstruosidade nunca deixam de poder coexistir de facto nesta mulher.
Quando, no filme, Livia se aproxima de Franz Mahler (o correspondente da personagem de Remigio), fá-lo sem qualquer interesse pelo homem. Importa verificar que, no filme, Livia tem de ingressar no registo da mentira e adoptar uma persona frívola (ie., mais próxima da Livia de Boito) para chegar ao contacto com o tenente. Quando inicia finalmente a conversa com ele, num camarote do La Fenice, fá-lo com a mais respeitável das intenções: salvar o seu primo, líder de um movimento rebelde italiano clandestino, de um duelo prometido no seguimento de um pequeno confronto com o oficial austríaco Mahler. É também nesta sequência inicial que Visconti inclui a problemática – que vem de Boito – da vida real enquanto espectáculo. Em primeiro lugar, e de forma evidente, a sequência passa-se no teatro, ou seja, o espaço simbólico paradigmático da representação (o próprio título, como se vê na imagem acima, surge impresso sobre o palco); em segundo lugar, o camarote está profusamente decorado com espelhos, elementos que, não tendo (em princípio) vida interior, estão condenados a imitar a vida exterior; por fim, a conversa coincide com o início de uma ária de Il Trovatore, de Verdi, em que se ouve a malfadada Leonora, amante de Manrico, sendo que, em certos momentos, coexistem em campo as personagens da ópera e as personagens do filme, numa sobreposição clara de duas ligações passionais condenadas ao fracasso e à morte.
Reportando-se implicitamente ao confronto entre o tenente e o seu primo, Livia diz não gostar da ópera que se passa fora do palco, e sentir um certo desprezo por pessoas que se comportam como se actuassem num melodrama. Este é o momento inaugural da ironia que o filme vai trabalhar, uma vez que, como vimos, Livia está a desempenhar um papel inventado para um pequeno melodrama da sua própria autoria: uma mulher virtuosa e fiel à causa da libertação aproxima-se de um imoral tenente austríaco, seduzindo-o, de modo a demovê-lo de seguir a sua intenção de se bater num duelo com o primo daquela mulher, um revolucionário destemido.
No seguimento deste passo paradigmático em que a protagonista diz não gostar de melodramas que acontecem fora dos palcos, o que o desenvolvimento do filme mostra é uma Livia que assume o papel de heroína de um melodrama operático, entrando numa relação adúltera com Franz Mahler e perdendo-se no processo. A mulher íntegra e respeitável é eliminada e dá lugar a uma adúltera, uma mulher apaixonada, agrilhoada a uma espécie de amour fou que a obriga a adoptar uma nova concepção do mundo em que todas as falhas são desculpabilizadas pelo seu amor maior do que a vida.Tal como, afinal, a Livia de Boito, a de Visconti entrega-se a um automatismo quase sonâmbulo, tornando-se incapaz de agir com a razão e entregando-se ao instinto subjugado ao desvario romântico. Ainda no confronto com o livro, a diferença fulcral surge quando Livia, na recta final do filme, em vez de oferecer o seu dinheiro e as suas jóias ao amante, lhe cede o dinheiro que pertencia à causa revolucionária com a qual ela estivera comprometida no princípio, antes de abandonar o realismo e de se entregar à magia, como ambicionava Blanche DuBois. Ou seja, se inicialmente Livia se aproximara de Mahler com o desejo de salvar o primo, e, portanto, a causa, o esquema surge, no fim, perfeitamente invertido, acabando Livia por salvar Mahler, comprometendo a causa.
Em certo sentido, a Livia de Visconti acaba, então, como uma personagem ainda mais problemática, e desprezível, do que a de Boito, pois não se limita a trair homens, mas também, com efeito, o destino histórico de um povo. A infidelidade sentimental de Boito transforma-se também em infidelidade política no filme de Visconti, anunciando o filme como a denúncia de uma classe social que, por debaixo da superfície polida (e para isto contribui activamente o estilo luxuoso do filme, que toca a fotografia, os décors ou o guarda-roupa), apodrece inexoravelmente, reportando-se à aristocracia de meados do século XIX, em que decorre a acção, mas encontrando, talvez, um espelho na alta burguesia italiana dos anos 50 do século XX. Seguindo esta leitura, dir-se-ia então que, no filme de Visconti, a dimensão essencial é a extra-romanesca: não tanto o drama de Livia propriamente dito, mas a ideia de que estas são personagens que, abandonando-se aos seus dramas pessoais, se entregam à fantasia e ao escapismo (perigosos passatempos, para lembrar Dostoiévski), ignorando a sua responsabilidade política e um drama mais importante do que o seu, o colectivo.
Por estas razões, é relevante que Senso surja no seguimento de um neo-realismo – do qual Visconti participou – que se centrava na denúncia clara dos problemas sociais. Se os neo-realistas procuram mostrar a realidade suja, Visconti problematiza a realidade limpa que aqueles recusam, argumentando que, sob esta, se esconde a decadência mais abjecta. Por outro lado, se um filme como Ladri di Biciclette (Ladrões de Bicicletas, 1948, Vittorio De Sica) funciona enquanto filme de observação, não obstante possuindo um evidente substrato de denúncia, Senso pode operar quase no registo do filme-ensaio. Ao passo que a novela de Boito funciona enquanto escapismo literário, o filme de Visconti apropria-se do enredo da novela e recoloca-o numa mundividência mais ampla em que o peso da História, exterior ao drama romântico, permite a sua problematização e, em última instância, a sua condenação.
A Livia de Livia
E, contudo, julgo que ler o filme de Visconti como uma parábola moral constitui, no fim de contas, um erro em que um espectador mais avisado não deverá querer incorrer, um erro que pode satisfazer aqueles que obtêm um certo regozijo na condenação do filme enquanto objecto diletante ou decorativo, ou aqueles outros que se comprazem na resolução do filme enquanto descodificável alegoria política, mas que não satisfaz os que procuram extrair de uma obra algo mais fundo e concreto do que os seus traços grossos, por interessantes que estes sejam. Em suma, Senso pode ser lido como um filme-tese, mas aquilo que Visconti faz aqui de mais extraordinário é, e na esteira de Boito, um estudo complexo sobre uma mulher em busca de uma vida. Pois se Livia falha o protagonismo num épico histórico-político, ela torna-se efectivamente a heroína de um grande melodrama – o que nunca deve ser subestimado. As sequências finais, a partir do confronto entre Livia e Franz, representam o culminar paroxístico deste melodrama.
A sequência que precede a do confronto consiste na releitura de uma carta de Mahler pela condessa Serpieri, que a repete em voz over para o espectador. Ela está numa carruagem com destino a Verona, de onde Mahler lhe escreveu a dizer que se encontra a salvo, mas que ela não o deve visitar, uma vez que a viagem seria demasiado perigosa para uma mulher sozinha num país em guerra. Na mente fantasiosa da condessa, responder a esta carta com a sua presença constitui uma prova do quanto efectivamente ama aquele homem. Portanto, envolver-se numa perigosa viagem para encontrar o seu objecto de amor (em Verona, de todas as cidades de Itália!) visa o cumprimento de uma vocação romântica que acredita ser a sua. Poucos minutos depois, o filme terminará, ironicamente, com a traição da condessa, que ditará a morte de Mahler, pervertendo assim o telos que Livia prescrevia para si. Desta prova de amor [ecos de Odete (2005), de João Pedro Rodrigues] em que consiste a perigosa viagem transita-se para uma vingança terrível e uma sentença de morte.
Quando Livia entra na casa de Franz em Verona, ele avisa-a de que não deveria tê-lo visitado, e rapidamente Livia perceberá que efectivamente não deveria ter feito esta viagem, não porque fazê-la punha a sua vida em perigo, mas porque, chegada ao destino, encontraria Mahler na companhia de uma outra mulher. Num estado visivelmente alterado, e num tom quase acusatório, ele lembra-lhe porque está na situação confortável em que se encontra (com o dinheiro de Livia, subornou um médico que o declarou inapto para lutar), o facto de já não ser um oficial nem um gentleman, mas sim um desertor alcoólico, confessando-se física e moralmente sujo.
Uma voz feminina, em off, chama por Franz, e a condessa – através do calculado overacting de Valli – mostra-se assombrada. Ele apresenta as duas mulheres, dizendo a Livia: “No fundo, ela pertence-te. Eu pago-a com o teu dinheiro.” A prostituta – notoriamente semelhante a Alida Valli, porém mais jovem – entra na sala e Mahler aperta os atilhos do seu vestido, repetindo uma sequência anterior em que efectuara o mesmo gesto, dessa vez com a condessa no pequeno quarto onde tinham os seus encontros românticos. Ao apertar os fios do vestido da prostituta com quem passa umas horas por dia, tendo feito o mesmo à condessa anteriormente, Mahler está a mostrar ao espectador e à condessa que os contornos da sua relação com a prostituta e com a protagonista não são demasiado distintos, perguntando mesmo, mais tarde: “Qual é a diferença entre vocês as duas?” A diferença é evidente: se Livia tem algo de prostituta [e tem-no no esquema moral do filme: se inicialmente fora um agente político, Livia acaba por se vender (embora por amor, e não por dinheiro – e esta é uma diferença importante, e que de alguma forma deve matizar a mancha de Livia)], ela é uma prostituta aristocrata que, na verdade, paga a um homem a sua companhia. Afinal, o maior avatar da prostituição naquela sala de Verona é Franz Mahler, que se encontra, neste momento, vexado pela consciência aguda da sua degradação moral (o que, de alguma forma, matiza também a sua mácula).
Esta cena obriga Livia a reequacionar o sonho romântico que vivera com Mahler até ao momento, e a ter de vê-lo como, afinal, ele é na realidade: uma teia de enganos com muito pouco de sublime. É, aliás, esta tomada de consciência que Mahler força sobre Livia durante o confronto. Em termos visuais, esta passagem do sonho à realidade é figurada num único plano verdadeiramente eloquente: quando o plano começa, vemos Livia de costas, toda coberta de negro (as vestes e um véu que lhe desce sobre o corpo); Franz entra em campo e volta-a para si; violentamente, ele retira-lhe o véu negro, descobrindo o rosto, no preciso momento em que diz “é verdade”; dá-se início a um travelling para a frente, Mahler sai de campo, e a câmara avança até nos dar um grande plano do rosto de Valli, que, com lágrimas bem visíveis, fecha os olhos e pergunta a Mahler porque lhe diz aquelas coisas terríveis, e se a sua intenção será magoá-la a ela ou a si mesmo.
Em suma, o movimento do plano pretende concretizar visualmente um momento-chave no filme: aquele em que o sonho de Livia deve desmoronar, em que ela é persuadida a encarar o triste facto de que o amor que viveu era um embuste, e que, consequentemente, a sua história de amor trágica era, afinal, uma farsa. Encontram-se aqui ecos daquele passo final de Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock, em que Scottie toma conhecimento de que também o seu relacionamento com Madeleine continha uma parcela de fraude. Tanto Livia como Scottie enlouquecem na experiência de um amor que resultava, na verdade, de uma vil orquestração. Mas se Scottie aceita, dentro do possível, o esclarecimento, Livia resiste. No fim do plano que descrevi, quando Livia pergunta “porque dizes estas coisas? Para me magoar, ou para te magoares a ti?”, ela está perfeitamente enquadrada numa pintura pendurada na parede atrás dela, numa sugestão clara de que – tal como em Boito – a Livia de Visconti não aceita o chamamento de Mahler à realidade, tendo ficado presa no reino da representação para sempre (entenda-se o para sempre de Livia como o eterno retorno à sua história com Mahler, que está na origem do filme, isto é, no efeito de rememoração e de storytelling que lhe dá forma).
Segue-se o monólogo de Mahler, que é de suprema importância na já mencionada desmontagem do melodrama que está contido dentro do filme, e neste ponto do comentário convém regressar à sequência inicial, na qual a condessa afirma não gostar de melodramas que acontecem fora do palco. Como vimos, esta afirmação é desmentida pouco depois, logo desde a sequência do passeio nocturno por Veneza, que marca o início de um filme dentro do filme, uma ópera/melodrama (note-se a iluminação altamente artificial e o ângulo em picado da câmara, como se filmasse um palco) em que Livia Serpieri é heroína romântica e Franz Mahler herói romântico. Esse filme em segundo grau é da ordem do filme dentro do filme a que assistimos em Vertigo (a primeira parte, até à morte de Madeleine); porém, em Senso, e se tomarmos em linha de conta o parentesco com Ema Bovary (bem como com o texto de partida, em que este aspecto é mais explícito de que em Visconti), Livia tem uma responsabilidade maior na orquestração da história de amor, porque voluntariamente se entrega a ela para fugir a uma existência corriqueira e desapaixonada.
Ao assistirmos ao desenvolvimento desse melodrama no decorrer de Senso, compreendemos que Mahler tem, durante todo o tempo, perfeita consciência da peça em que actua, adaptando-se e readaptando-se a ela do modo que mais lhe convém, a cada situação. A sequência que aqui analiso é o culminar de tudo isto, o momento em que Mahler desmonta, perante a condessa, o melodrama que esta inventou, e no qual ele entrou voluntária e conscientemente, criando assim um regime de co-autoria (em que ele ocupa a segunda posição). O que acontece nesta sequência é a confluência de duas linhas que vinham atravessando todo o filme: a melodramática (ie., o que diz respeito à convivência dos amantes) e a realista (o que se relaciona com tudo o que está fora da esfera dos amantes). Neste esquema, há personagens que pertencem inteiramente à dimensão realista do filme, como o primo revolucionário Ussoni, e há a figura da condessa, que pretende pertencer inteiramente à dimensão melodramática (da fantasia). Por seu turno, Mahler anuncia, no monólogo, que se encontra numa espécie de zona indefinida. Ao passo que a condessa imergiu no seu melodrama, Mahler descobriu que as duas dimensões são inconciliáveis, porque se regem por regras distintas e mesmo contraditórias: se ele está, no final do filme, num estado de absoluta fragilidade, é porque a sua conduta no melodrama acabou por ter um impacto na sua existência no mundo real com o qual ele não consegue lidar. Franz acaba por ser, por isto, uma personagem moral, porque consciente da sua depravação, bem como da sua responsabilidade nesse processo.
O oficial diz, então: “Tenta compreender-me e ver-me como eu sou realmente [“As I am for myself”, dizia Judy em Vertigo], e não como uma figura da tua imaginação”, e continua: “A ideia que tens de mim é uma pura fantasia inventada por ti. Não tem nada que ver com o verdadeiro eu”. E prossegue num tom auto-depreciativo, chegando ao ponto em que se diz desertor e cobarde, afirmando, no entanto, não se importar com isso (o que é desmentido pelo seu estado emocional e pela natureza do discurso). Aponta depois para “um mundo que desaparece”, ao qual pertenciam tanto ele quanto a condessa, numa recolocação das personagens num contexto mais abrangente que o da “história de amor” entre ambos: símbolos (ele, um oficial do império austro-húngaro; ela, membro da corrupta – lembre-se o conde Serpieri – aristocracia italiana) de um mundo decadente, prestes a desaparecer perante novas forças, forças estas que Livia abandonou para se comprometer com um papel num melodrama em última instância moralmente repulsivo, sintomático das circunstâncias decadentes das existências de ambos os protagonistas. Enquanto Ussoni e os outros lutavam pelo novo mundo, Mahler e a condessa refugiaram-se em mundos imaginários e cristalizados, de escape; ela no do melodrama, ele – com o auxílio do dinheiro dela – no do vício e da passividade/imobilidade. Neste ponto, Mahler demonstra que as razões por detrás da sua renúncia são mais complexas do que seria aparente. Ele renunciou à guerra não tanto para garantir a sua vida, como se esperava no momento em que a condessa lhe deu o dinheiro, mas, de certo modo, para abandoná-la. Talvez Mahler renuncie à guerra por sabê-la perdida, por se reconhecer enquanto agente de um mundo velho, sem lugar no que se aproxima. Perante este cenário, o hedonismo é o seu último recurso, algo que o sentimento de culpa – que não é verbalizado, mas que adivinhamos nesta sequência – terá vindo problematizar.
Surge então uma linha de diálogo particularmente relevante: “E tu pensas da mesma forma que eu. De outro modo, não me terias dado dinheiro em troco de uma hora de amor”. O hedonismo que Mahler acabara de assumir passa a ter, neste momento, um reflexo na “entrega ao melodrama” da condessa. Subentender-se-á, então, que, se a condessa traiu a causa dos rebeldes, é porque esta nunca lhe pertenceu realmente, o que confirmará, talvez, que a sua entrega ao melodrama terá sido pelo menos parcialmente voluntária, como se de um estranho hedonismo masoquista se tratasse. Vencida pelo tédio, entregou-se ao romance ideal. “Eu não sou o teu herói romântico!”, grita Franz, “e não te amo mais. Precisava do dinheiro, é só isso”. Quando anuncia, por fim, que é um delator, e que tinha denunciado Ussoni no início do filme, a condessa grita. Porém, a razão deste grito terá menos que ver com essa denúncia do que com o reconhecimento, por parte de Mahler, de que ela o soubera desde o início, mas convenientemente ignorara, de modo a perder-se no seu sonho. Com o seu melodrama desconstruído, Livia encontra-se sem nada: a causa e o amor. Mas tal como a causa era apenas uma história onde ela procurara obter um papel heróico (porém secundário), e o amor era também uma narrativa onde ela desempenhara o papel de protagonista, aquilo de que Livia precisa, na ausência destas duas histórias, é uma forma de perpetuar o regime da ficção. Assim, como num folhetim (de certa forma, uma degeneração do género operático, sob o signo do qual se forma Senso), a história de amor sofre uma inflexão e transforma-se numa história de vingança.
Livia abandona Mahler e corre a denunciá-lo como desertor, e, ao fazê-lo, funde as duas linhas exploradas pelo filme e tidas em consideração ao longo deste comentário – a realista e a melodramática –, instrumentalizando a política (que havia sido completamente alheia à sua realidade durante quase todo o filme) para dar um desfecho ao seu melodrama: a morte de Franz Mahler. Neste final, tudo se funde: as humilhações sentimental e moral; as infidelidades sentimental e política; o fim de uma era e o início de uma nova, através da morte (literal e simbólica) de dois mártires (porque ela, com efeito, também morre); o fim de duas vidas, de um melodrama, de uma ópera, e de um filme que começou num palco, com Il Trovatore, e acaba noutro, o da execução, tanto lembrando Goya como, novamente com o recurso à iluminação artificial e o ligeiro picado, a execução de Cavaradossi em Tosca.
Referências
Boito, Camillo (1988). Senso: O Caderno Secreto da Condessa Lívia. Trad. José Colaço Barreiros. Lisboa: Quetzal.
Dostoiévski, Fiódor (2001), Noites Brancas: Romance Sentimental: Das Memórias de um Sonhador. Trad. Nina Guerra e Filipe Guerra. Lisboa: Assírio & Alvim.
Leatherbarrow, W. J. (2009), “Introduction”, in Fyodor Dostoevsky, A Gentle Creature and Other Stories. Trad. Alan Myers. Oxford: Oxford University Press. vii-xxiii.