A Terra inteira perpetuamente
embebida em sangue
não é senão um imenso altar
em que tudo o que vive
deve ser imolado,
indefinidamente,
incomensuravelmente.
Jean-Luc Godard, Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018)
No documentário/entrevista Morceaux de conversations avec Jean-Luc Godard (2007), conta Godard que, no fervor do momento pré-Maio de 68, numa época de forte contestação contra a destituição do director da Cinemateca Francesa, Henri Langlois, propôs duas coisas caso, de facto, a saída se confirmasse: vender todo o espólio da instituição e investir o dinheiro dessa venda na produção de filmes destinada à geração mais nova ou, como alternativa, queimar todos os filmes da Cinemateca, provocando, deste modo, uma espécie de reset na história do cinema. Não sabemos se estas propostas eram para se levar a sério, mas em Godard nunca sabemos ao certo o que é blague e o que é o mais solene e convicto manifesto. Por outro lado, Godard, à entrada da década de 1970, tornara-se um cineasta incinerador, destrutivo, apocalíptico. O filme de todas as mudanças terá sido o seu “monster movie” Week End (1967), mas o gesto revolucionário dá conta de si verdadeiramente a partir da sua fase maoista, no seio do chamado Grupo Dziga Vertov. Com Jean-Pierre Gorin, Godard renuncia à ideia de autor – rasura a sua própria assinatura – e investe num cinema com as mãos – com um punho vertoviano, melhor dizendo – completamente implicado, engajado mesmo, com a realidade. Morre a fantasia pop e os sonhos húmidos da cinefilia. Enterra-se o amor ao cinema, ao mesmo tempo começa a ganhar forma uma outra paixão ardente. Escrevem-se aqui, nestes filmes – num deles, Le vent d’est (1970), Gorin e Godard ensinam o espectador a produzir um cocktail molotov -, as primeiras linhas de um livro de imagens que se reabre agora, depois de arrancado das profundezas de um lamaçal de tentativas-erro, fecundos e inspiradores actos de destruição-ressurreição, que resumem o cinema do suíço dos últimos 50 anos.
Não tínhamos saído de Adieu au langage (Adeus à Linguagem, 2014) imbuídos do mesmo espírito devorador, implacável locomotiva de imagens, que toma conta deste Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018). A entrada na barbárie e no horror da história é rápida e implacável: o omnipresente Godard abre-nos as páginas deste filme de montagem que é uma manta de retalhos de imagens e sons – um som escultural, que cai sobre nós como um muro – que se fundem, confundem, palpitam, borbulham, implodem num fluxo sem fim. Não temos, então, tempo para nos ambientarmos à temperatura – alta temperatura, um calor faustino! – destas águas pantanosas. Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio? Não, este gesto radical, disruptivo, este tom apocalíptico, é um regresso, principalmente a Histoire(s) du cinéma (1989). Revisitamos episódios da história do século XX e da ainda incipiente do século XXI através de imagens de arquivo e excertos de filmes, filmes de Godard e de outros, de alguns dos seus mestres na grande tela, tais como Roberto Rossellini, Serguei M. Eisenstein, Jean Vigo, Max Ophüls, Pier Paolo Pasolini, Jacques Tourneur, Aleksandr Dovzhenko, etc. e etc. A tapeçaria multimédia não muda muito desde as suas monumentais Histoire(s), mas a relação, essa, parece ter mudado – sabemos que o cinema de Godard, pelo menos desde esses anos de alta temperatura revolucionária, faz-se no “entre”, no “e” que consubstancia qualquer rapport.
Não sabemos a certa altura de onde vem a voz, que palavras imola ela. Mas há sempre a mão que, numa bandeja, nos dá o flambê da história. Tudo em chamas, a arder, perto de inconsumptível.
O que muda então? Desde logo, a intensidade da combustão. Le livre d’image é um livro de imagens arrancado das chamas, um livro que se preparava para arder até à extinção na lareira da história (a da nossa memória como do nosso esquecimento). Há gestos de salvação, de resgate, mas não há energia para o esperado esforço de restauro. Este é um filme vindo das chamas e em processo de desintegração. Todo ele se constitui, quase como happening, num acto: o de dar a ver aquilo que, das chamas retirado, já havia ganho afeição à possibilidade do seu extermínio. A montagem, esse “beau souci”, como lhe chamou o Godard crítico de cinema, é solidária com toda esta possibilidade de fim. O cinema-cinerário está vivo e convida-nos à imersão num tempo presente, o de um fluxo de imagens em chamas que se mostram à nossa frente, que, vindas do projector, nos atacam pelas costas – sentimos sempre a presença demiúrgica, faustina, de Godard a “desenrolar” este livro desintegrado, “em desintegração” à nossa frente. “Burn, motherfucker, burn”.
O que faz queimar todo este livro de todos os livros, para todos os livros (a começar os da religião)? A mão, este “pensamento com as próprias mãos” que se anuncia/enuncia no começo. É dela que sai o movimento fusional, de recorte, corte, rasura, terror. “O terrorismo como bela-arte”, lê-se a certa altura, quando a mão já queimou tudo, quase indistintamente – mas este “quase” é um mundo. O que encontramos dentro deste forno incessante? Os tais filmes do cinema e da história, tais como Salò (Salò ou os 120 Dias de Sodoma, 1975) – amontoado de corpos – ou Paisà (Libertação, 1946) – corpos jogados ao mar como cagalhotos – ou Berlin Express (O Expresso de Berlim, 1948) – o comboio como película-organismo -, são envolvidos com imagens sobre os campos de concentração, imagens de terror produzidas pelo ISIS, imagens do mundo árabe (Quo vadis “Arábia Feliz”?), imagens de todas as guerras que são guerra nenhuma. Estamos num lugar, algures entre a ficção e o real, sobram poucas pistas sobre um caminho, um antes e um depois que possamos percorrer sem cairmos. Percorre-se o momento, habita-se o acto, um acto cinerário de mostração. Abrem-se, assim, vários percursos. Sucessivamente, mas sem princípio, meio e fim. Só fim.
Se as imagens e o discurso não são, de facto, novos em Godard, a velocidade com que se queima desde dentro das imagens, numa impaciência de morte, é, na maior parte do tempo, verdadeiramente siderante. O próprio som é objecto desta mão que tudo corta, recorta, desliga para ligar, liga para desligar. Godard é uma voz – a sua voz é um corpo-monstro, entenda-se – que murmura frases perto de incompreensíveis. O som gagueja, desmultiplica-se (uma espécie de 3D sonoro tal como Godard usou o 3D visual em Adieu au langage). Não sabemos a certa altura de onde vem a voz, que palavras imola ela. Mas há sempre a mão que, numa bandeja, nos dá o flambê da história. Tudo em chamas, a arder, perto de inconsumptível. O espectador não deve ter medo, deve arriscar cair neste fluxo, banhar-se várias vezes no mesmo rio e perder-se. Porque não há propriamente já pensamento nesta (des)montagem. Há sim um pensamento para lá do pensamento, qualquer coisa que vem depois do furacão. Uma mão que fala e faz falar a linguagem da destruição e que nos lança ao rosto os detritos que vai encontrando. O som é mutilado como as imagens. Portanto, o espectador só pode deixar-se levar se quiser sobreviver à sessão. O filme fala a linguagem da sobrevivência, que ainda é a linguagem da destruição, que é a linguagem do fragmento: “na realidade, dizia Brecht,só o fragmento tem a marca da autenticidade”.
A última imagem é a mais alta (re)apropriação do cinema de Godard. Será, quem sabe, a mais relevante desta derradeira fase da sua vida. A mão godardiana recorta e serve-nos na tal bandeja em chamas a sequência da história inaugural de Le plaisir (O Prazer, 1952), de Max Ophüls. A mais extática do mundo. Um homem mascarado – ele esconde a idade, tenta ludibriar a morte – entra num cabaret e dança até à exaustão. Rodopia, rodopia e dá um trambolhão. Le livre d’image – e todo o edifício godardiano – dá também o seu trambolhão final. Ouvimos na pista sonora um grunhido, uma tosse, depois, no escuro, ping: uma nota de piano. Eis, enfim, o último estertor do mais diabólico dos cineastas deste e de todos os séculos, contra este e contra todos os séculos?