Apagam-se as luzes.
Ouve-se o apito de referência para o projeccionista.
Começamos, como sempre, no escuro.
E Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018) começa.
O que o filme oferece é uma torrent(e) de sons, formas e cores (porque a ideia de imagem é aqui reduzida, a espaços, aos seus elementos mais básicos, primitivos, fundacionais).
É Godard como o temos visto, mas é também já outra coisa: há um desespero triste que atravessa tudo aquilo, uma urgência desiludida (um grito de esperança rouco, quase acabado, à beira da morte).
As imagens de cinema cruzam-se com os horrores do terrorismo exibidos pela Al Jazeera: Ray, Ophuls, Aldrich, Vigo, Godard, Montesquieu, Rossellini, Delacroix, Hitchcock, Godard, Malraux, Brecht, Rozier, Pasolini, Cocteau, Meliés, os dois Marxs, Dostoiévski, Godard, Vertov, Faulkner, Hugo, Bach, Buñuel, Rimbaud, Prokoviev mas também vídeos de bebés do Youtube, pornografia, Godard, lives de manifestações, execuções e decapitações terroristas, bombas e explosões, Balzac, Lang, Deren…
O costume, Godard.
E no entanto tudo isto surge segundo uma lógica de interrupção onde a forma dominante é, à falta de palavra melhor, a “informidade”.
Le livre d’image é informe e enfermo, aliás, informe porque enfermo.
O ecrã é tomado por uma doença, e Godard é esse parasita que se alimenta das imagens, deixando-as ratadas a apoderecer, expostas aos fungos (e aos fundos, escuros).
A película encolhe, avinagra-se, vira para o rosa (e para o vermelho, e todas as outras cores – satura-se e nós saturamo-nos com elas, no seu puro caudal polifónico).
Os sons surgem distorcidos, como a própria voz do realizador, tomada de um catarro gosmento.
Todo o cinema surge de-cadente.
Tudo cai, aproximando-se perigosamente do chão.
Godard estilhaça o ecrã, estilhaça a imagem.
Deslizando para a abstracção, para uma musicalidade visual.
Há frases que surgem como relâmpagos que tudo iluminam, mas por breves segundos, deixando-nos, de novo, no breu caótico de uma montagem feita zapping do mundo.
Relâmpagos como flashs de máquinas fotográficas, que imobilizam e – numa fracção de segundo – descrevem o mundo como algo, finalmente, perceptível.
Um filme qual livro de aforismos que pegou fogo e alguém lançou na água.
Dessas frases há uma que sussurra qualquer coisa como “montar ao ritmo da respiração”.
Só que Godard está velho, 88 anos, e todo o filme arfa com(o) ele, cansado.
Mas mesmo assim sempre a tentar dizer coisas, incompreensíveis, por entre as pausas da respiração.
Le livre d’image é um filme sempre à procura de se recompor, tanto no sentido de ganhar fôlego, como no sentido de re-compor as imagens, os textos, os sons, as ideias.
Tudo está à mercê dessa máquina trituradora de citações, e tudo acaba triturado por ela.
Há uma mão, com um dedo, e outros quatro.
Cinco dedos como cinco fadas, como cinco capítulos e depois uma conclusão e dois epílogos.
Cinco dedos, e o primeiro é o “remake”, ou melhor, é o “rim(AK)e”.
Porque refazer é rimar (rime) com uma metralhadora (AK47).
A representação é metralhada, e cada bala ressalta, matando inocentes espectadores.
O terrorismo como bela-arte.
Uma arte que só se concretiza na sua destruição, implodida na sua própria grandiloquência.
O horror está nos gestos, e a paz na sua representação – “Há um contraste real entre a violência do acto de representar e a calma interior da própria representação“.
O horror da paz está na forma.
A paz é informe.
Há que destruir a forma: reformatar (o disco) e desformatar (a janela).
Datamoshing.
Godard instala-nos num ecossistema de sons, formas e cores onde vale tudo – um faroeste audiovisual.
“Um louco pode ir a toda a parte, tenho total liberdade de movimento e de palavra.”
Onde se incinera – em fogo vivo – o conceito de “erro”.
Não sabemos se a projecção está “bem” ou “mal”.
Uma pessoa levanta-se na sala e informa-nos, “eu já vi uma cópia do filme e nesta parte deveria haver som”.
Depois uma figura, no ecrã, suspira, como que em resposta.
Regressamos ao silêncio e as legendas de vozes inaudíveis continuam a debitar um texto desconexo, constantemente interrompido.
7.1, 5.1, 2.0, 3.1415, piiiiii!
Godard só autorizou legendar certas porções do filme, outras ficam ao abrigo dos conhecimentos linguísticos de cada espectador.
Não há um filme, há vários.
Não há uma versão do filme, há várias.
Cada sala re-compõe a re-mistura de som.
Umas faixas aparecem e outras desaparecem.
Cada espectador recolhe os seus fragmentos: aqueles que a sala lhe ofereceu e aqueles que conseguiu capt(ur)ar.
O “erro” torna-se a matéria do filme.
Godard decompõe a própria “ontologia da obra de arte”: Tu n’as rien vu à Hiro... Le livre d’image.
Ninguém viu “o” filme, porque este desfez-se no acto de se mostrar.
A película ardeu no projector – Frampton e Sharits ficariam orgulhosos.
Outro relâmpago, outro flash: “só o fragmento tem a marca da autenticidade” – diz que é Brecht, talvez seja…
Mas é isso mesmo: uma frase que congela o filme, que imobiliza a explosão, fixando cada pedaço esvoaçante no ar feito líquido viscoso.
A autenticidade de Le livre d’image é a torrente de pensamento, é o desvio como modus operandi – como os assassinos em série que sabem improvisar.
E aqui “desvio” é sinónimo do “erro”.
O filme é uma ode ao mal.
Porque o o horror – segundo Godard – é produtivo: “A guerra é pois divina em si mesma“.
Mas o “mal” não é maldoso e o “erro” não está “errado”.
Admitir o erro na totalidade ou admitir o fragmento da completude é abrir a obra ao mundo.
Uma partilha de olhares entre o vivo e o morto, entre o fresco e o putrefacto, entre o turbilhão criativo e o poder thrillesco dos objectos, vulgo filmes, quadros, textos, músicas, diálogos…
Cada raccord estilhaça qualquer vestígio restante da diminuta aura dos originais e a vasilha re-composta exibe-se na sua forma tosca, com pedaços em falta – furada e quebrada – revelando, de algum modo (mesmo que apenas parcialmente), a beleza e a feiura da sua forma ruinosa.
Como dizia um amigo no final da sessão: um filme construído segundo a intermitência que separa o deslumbre do what the fuck.
A certa altura a voz roufenha de Godard murmura – outro dos vários relâmpagos-flash – qualquer coisa como “já ninguém sonha em ser fausto, todos sonham em ser reis”.
Le livre d’image é um filme que vendeu a alma ao demónio.
Godard foi possuído por Mefistófeles e em troca pegou fogo à história e ao cinema.
Ou então a história e o cinema já estavam em chamas: um fogo que insufla a “paixão pela técnica e pelo progresso”.
E não é Mefistófeles o “inimigo da luz”, logo o “inimigo do cinema”?
O filme parece ser a prova de sangue desse pacto que Godard terá selado há 24 anos, agora feito carne digital para canhão.
A fúria destrutiva parece, no entanto, abrir a porta de uma segunda vida, ou de uma segunda morte.
Porque o dançarino dançou até desfalecer – já não é capaz de se re-compor.
“Transformar o nosso apocalipse num exército ou morrer, é tudo” – diz que é Malraux, talvez seja…
E caído no chão ainda estremece, todo ele estertores, choques eléctricos, relâmpagos-flash.
Acendem-se as luzes, são 14h30, fomos comer – pedi um bitoque.