Procuro agarrar o filme e aquilo que me co-moveu durante as suas mais de duas horas de duração. O que fica desta experiência? Respondo rápido e sem hesitar: o mundo. A gigantesca e colorida imensidão do oceano que envolve as personagens. A câmara filma esta imensidão muitas vezes à distância, enaltecendo uma espécie de “espaço negativo” líquido. James Wan filma este décor como fizera com seu anterior super-blockbuster Furious Seven (Velocidade Furiosa 7, 2015), em que – como bem descreveu o Ricardo Vieira Lisboa aqui – captou a acção em planos extremamente largos que reduziam os veículos ao tamanho de micro machines.
Para lá da grande escala, deste décor-mundo que é o grande espectáculo cinético e verdadeiramente “imersivo” do filme, Aquaman (2018) é uma epopeia à antiga, que desenha um larguíssimo arco narrativo, que vai da infância do futuro “rei dos Sete Mares” até à sua idade adulta, com o romance proibido dos pais em pano de fundo. Este romance será de lágrima fácil, mas ela (a lágrima, digo) só se sente no rosto em terra, porque ela é sempre levada/lavada no fundo dos oceanos. É uma epopeia com lágrima no canto do olho, certo, mas também é um grandioso filme de aventuras desenrolado não só no tal majestoso mundo submarino, mas também à superfície, viajando entre paisagens de terra firme.
A sequência de acção mais empolgante tem lugar na Sicília. Aí percebemos melhor o que já antes Wan produzira mais discretamente: a constituição de uma “câmara-peixe” que se move em qualquer habitat sem conhecer obstáculo, produzindo em continuidade (sem corte) a ideia clássica de montagem alternada. Isso acontece em profundidade, numa pura alternância espacial que a câmara acompanha como quem nada voando ou voa nadando, sobre os telhados das casas rústicas da ilha italiana. É uma das perseguições mais intensas alguma vez filmadas.
Em Aquaman a pequenez magnificamente sugerida pela découpage de Wan, sobretudo na cidade de Atlântida, anda de mãos dadas com a densidade viril do seu protagonista. Façam o favor de comparar, por exemplo, o Dwayne “The Rock” Johnson em Furious Seven com a figura do actor nos outros filmes desta série. Perceberão como se confere densidade – monumentalidade – à sua presença. Nos filmes de super-heróis isto é algo que falta, este lado simultaneamente corpóreo e maciço dos seus protagonistas (de plástica existência e discurso delico-doce, raramente a sua presença mete respeito). Jason Momoa é um bloco de aço pouco misericordioso na hora de atacar, ainda que se mova com uma ligeireza apenas comparável ao seu jovial sentido de humor.
Pois aqui está um exemplar filme de super-heróis, pleno da féerie de “um outro mundo” maravilhosamente encantado e de algum drama “deste mundo” que acedemos por uma lágrima, o primeiro e o último dos oceanos.
São relativamente felizes as comparações com alguns clássicos de aventuras da era moderna, como Star Wars ou Indiana Jones. Ainda assim, o que Wan consegue aqui outros cineastas seus contemporâneos procuraram de outro modo. Nesse sentido, antes de Spielberg ou Lucas, pensei muito mais em M. Night Shyamalan, e nos seus filmes After Earth (Depois da Terra, 2013), The Last Airbender (O Último Airbender, 2010) e Lady in the Water (A Senhora da Água, 2006). Porquê? Por causa da importância dada aos elementos naturais, à narrativa sentimental (pai e filho) e à tentativa de – aliviando-nos do peso metafísico ou cínico dos mais recentes franchises de super-heróis – retornar à linguagem da fábula ou das histórias de encantar.
Por outro lado, lembrou-me um filme que, com o passar dos anos, estará cada vez mais datado, “fora de moda”, que é Avatar (2009) de James Cameron. É verdade que Aquaman não é tão politicamente ousado – ainda que nos alerte para a poluição dos mares – mas o sense of wonder e a criação de mundos misturados com sequências de acção extraordinariamente corpóreas, “maciças” e monumentais põem estes filmes em diálogo. É por estas águas que o cinema de Wan se move, na direcção de um cinema das atracções que encontra os motivos do seu grandioso espectáculo em coisas tão simples como “personagens mais décors mais uma muito bem-vinda lamechice”.
O drama tem o peso de uma lágrima que corre no rosto, entre a terra e o mar. É por causa deste peso, que aparentemente é igual a nada, que o filme flui, ganha densidade, faz e desfaz mundos… e nós voltamos a ser espectadores espantados – não é isso que, sempre e renovadamente, esta super-Hollywood nos vai prometendo sem nunca ficar perto de cumprir? Pois aqui está um exemplar filme de super-heróis, pleno da féerie de “um outro mundo” maravilhosamente encantado e de algum drama “deste mundo” que acedemos por uma lágrima, o primeiro e o último dos oceanos.