Os walshianos olham para algumas estreias de Novembro que quase nos passaram despercebidas: do “formalismo exuberante e onanista” de Gaudagnino à franqueza e espírito anarquista de Sandi Tan (uma estreia Netflix), passando pelos estereótipos de McQueen e a “toalha feita à mão” de Aleksei German Jr.
Creio que talvez seja um erro, ou pelo menos uma leitura apressada, separar a versão original de Suspiria (1977) de Dario Argento e esta de Luca Guadagnino com base numa simples oposição entre uma narrativa e uma forma. Este raciocínio implicaria catalogar o filme de Argento de acordo com uma história coesa, um witch tale com corpo de giallo (talvez com pedaços de corpo, pois o filme de Argento não é todo ele um giallo) e o filme de Guadagnino como uma obra que coloca à frente de tudo um formalismo exuberante e onanista. Contudo, tal não me parece corresponder à verdade. E não o é, porque, convém não esquecê-lo, a obra-prima do mestre do terror italiano tinha alguns plot holes e era ela própria de um formalismo maravilhosamente exasperante. Mas então o que é que tira brilho (e terror) a este retake de Guadagnino? Aquilo que faz do filme de 77 um filme impactante é precisamente o facto de ele se construir sobre uma linha de subtil equilíbrio entre a sua forma e o seu conteúdo. Quer dizer, ele constrói uma dada situação narrativa – à qual não falta sequer uma mitologia própria, gótica, política, policial -, que vai tendo os seus altos e baixos ao nível do grau de tensão e surpresa sobre o espectador, e é depois sobre esta manta que Argento coloca as cores, o sangue, a música, em momentos claros, precisos, delineados.
O que se perde com o Suspiria dos tempos modernos é precisamente essa subtileza, esse equilíbrio. Talvez pelo peso da responsabilidade (ou mesmo pelo ensimesmamento de Guadagnino que viu aqui a possibilidade de “criar arte”, de “esculpir o novo”) o que era leve passa a pesado, o que era subtil, pornografiza-se. Tudo é curto, grosso e evidente. Quer mensagem verbal, quer mensagem pictórica, chamemos-lhe assim. Um bom exemplo é a forma como o filme de 2018 tenta tornar evidente o subtexto político da narrativa: as facções políticas no exterior e no interior da escola de dança, a clandestinidade das bruxas e a clandestinidade dos resistentes políticos. Esta abordagem política, assim clarificada, no fundo o que faz é “formalizar um conteúdo latente” na obra de Argento. E se a mensagem precisa aqui de uma dada forma, clara, o inverso também é verdade. Ao contrário das set pieces no original, aqui o formalismo parece querer tomar um espaço de conteúdo. Um corpo substancial, uma filosofia apressada da forma que aqui é explorada até à exaustão e que se prende com o uso do corpo e da dança associado a uma escrita cinematográfica. Talvez Suspiria precisasse de um realizador menos romântico (mas já não era o miscast do realizador, e por razões semelhantes, o problema do retake de Halloween?), alguém que não visse no terror um short cut para o inefável. Que percebesse que mesmo o gótico era assunto do quotidiano, de lamas, de escuridões, de castelos associados à vida de pessoas. A câmara de Guadagnino acaba por dançar por este Suspiria, tornado coreografia interminável, como uma entidade tomada por uma musa da inspiração a tempo inteiro. E a comprová-lo são as várias cenas à mesa, dentro e fora da escola, onde as palavras não são concedidas às suas personagens. Ouvimo-las mas não das suas bocas, provindas antes da voz da banda sonora. Um mistério que logo se desfaz pois quem fala pela banda som, assim como pela banda imagem, é o grande demiurgo Guadagnino.
Carlos Natálio
O cinema de Steve McQueen descaracteriza-se de filme para filme e chegará o dia em que ninguém se lembrará de quem realizou um dos títulos mais corajosos e labirínticos do novo século, sobre a mente masculina e sobre a dependência ligada a uma fractura afectiva auto-imposta, que é Shame (Vergonha, 2011). Íamos com relativa esperança e com bastante receio para o novo Widows. Havia abertura à capacidade de o filme poder surpreender numa versão no feminino de outra obra máxima, esta da década de 1990, o Heat (Heat – Cidade Sob Pressão, 1995) de Michael Mann.
Widows esgota o capital de nervo e chapa amolgada acumulado no prólogo, que filma um assalto sabotado (onde os protagonistas são os companheiros das futuras viúvas), através de uma narrativa também em mosaico que troca a densidade psicológica e o rigor da mise en scène do filme de Mann, por um compêndio de estereótipos que chama constantemente à atenção para a vulnerabilidade da condição feminina, decorada com o subtexto inter-racial que se extasia em mostrar a beleza puramente estética que existe no aproximar de epidermes muito claras e muito escuras. Steve McQueen passa uma pistola Glock a cada uma das suas heroínas e deixa a nu que quer ele quer elas falharam as aulas de tiro.
Ricardo Gross
Creio que talvez não seja possível compreender um filme como Dovlatov (2018) de Aleksei German filho, sem termos uma mínima noção da obra de Aleksei German pai. Desde logo, por uma questão de contexto: porque se tratou de um cineasta que apenas fez 5 longas em 46 anos de trabalho e que foi muito fustigado pela censura. Não é de estranhar que esse “subtema parental” tenha discorrido para o filho, designadamente na forma como um regime político acaba por tolher a criatividade dos artistas, aqui em concreto, a dos escritores, Sergei Dovlatov (Milan Maric) e Joseph Brodsky (Artur Beschastny). Também como aconteceu com German pai e com os seus próprios protagonistas – estamos aqui ainda no campo dos não heróis, daqueles que sistematicamente se recusam a servir as glórias do passado. Como vemos no filme, com os comentários depreciativos e satíricos na reportagem que escreve para um jornal literário sobre a presença dos grandes escritores, Gogol, Dostoiévski, Tolstói, Puschkin, ou melhor sobre os actores pobres diabos que os encarnam numa produção cinematográfica de propaganda. Ou mesmo mais tarde ao recusar embarcar num épico grego que representaria o grande objectivo de vir a ser publicado no seu país. Estamos ainda neste Dovlatov seguindo o trilho do pai, e suas personagens engolidas pelo quotidiano que, mais do que agirem, procuram observar. Aliás, é esta a personagem que o próprio escritor contrapõe como sua ao chefe do jornal, quando este lhe chama a atenção que aos seus escritos lhe faltam ou um herói ou um anti-herói, segundo o mecanismo básico da literatura dramática.
Mas a relação com German pai também deve ser salientada a um nível mais formal. Podemos aqui ver os mesmos planos sequência constantes, os planos atravancados de gente e objectos, um certo espaço para um onirismo, um colectivo que vai mascarando a acção principal (alguns planos parecem uma versão de “onde está wally?” vertida para “onde está Dovlatov?”), toda a gente fala, interrompe, passa atrás, à frente, no meio. Uma dança, uma mise-en-scène vendaval que o filho herda do pai. Mas então, qual seria o espaço inovador de Aleksei German Jr.? Talvez na forma como converte aquilo que era dado com sentido de humor (ainda que dorido) pelo seu pai, para o que acho ser uma atmosfera mais tipicamente soviética (isto é, introspectiva, mellow). Como se abusasse de um certo decadentismo romântico, uma autocomiseração pelo génio incompreendido, como se restasse apenas a Aleksei German Jr. a referida ironia como metáfora descendente, que aqui e acolá torna latente um pormenor querido, uma boneca… por favor. Afastamo-nos então do fellinianismo realista do pai, e temos antes uma daquelas toalhas feitas à mão que se vendem nas lojas de artesanato, cheias de rendas, de pormenores, mas que admiramos mais pelo trabalho que ali está envolvido (o calo nas mãos do artesão, a sua condição precária, muitas vezes) e menos no efeito estético que estas podem provocar numa mesa decorada. Dovlatov é uma dessas tapeçarias para a qual acabamos por olhar sobretudo por tal rendilhado, ou, quanto muito, pelo sofrimento impotente das suas personagens.
Carlos Natálio
Este é um filme sobre a história de um outro filme, uma primeira obra irreverente realizada por um grupo de adolescentes num Verão em 1992 numa improvável Singapura, sob a supervisão do seu professor americano de cinema, num assomo de inspiração nouvelle vague e que na junção de diferentes influências americanas e europeias abria portas para novas ambições e liberdades, em particular num país tão conservador que até a pastilha elástica era proibida. Há apenas um problema: o filme nunca foi terminado, as muitas horas de filmagens nunca foram editadas e desapareceram entretanto. O filme, mesmo sem nunca ter sido visto, ficou na memória de quem esteve envolvido na sua rodagem, figuras para as quais esta aventura ingénua permanece como uma espécie de lenda urbana. Esta é também a história de Sandi Tan, a argumentista e protagonista desse filme-mito de 1992 (também de título “Shirkers”) e sobre uma viagem ao passado a tentar resgatar as memórias, ligações e imagens perdidas, espoletada pela recuperação da película gravada há vinte e cinco anos. Shirkers conta em paralelo a história da tentativa punk de um pequeno grupo de amigos em fazer um filme segundo as suas regras, e a história do posterior desaparecimento e ressurgimento do filme – em ambos os casos, é uma viagem profundamente autobiográfica para Sandi Tan, um vestígio do que poderia ter sido e de um futuro alterado.
As imagens do filme de 1992 que pontuam este filme são verdadeiramente fascinantes, divertidas, absurdas e maravilhosamente vívidas, uma mistura da imaginação vibrante de Wes Anderson e da franqueza de Larry Clark ou Harmony Korine, embutidas de um espírito anarquista low budget – mas isto antes sequer de cada um destes autores referidos fazer o seu primeiro filme. O primeiro mistério deste filme é mesmo a sua origem – vemos as filmagens gravadas em 1992 mesmo antes de sabermos que as imagens foram recuperadas, e mesmo depois de sabermos o que aconteceu, surge a insinuação que foram perdidas para sempre – estaremos então a ser iludidos por uma recriação imaginada agora do que teriam sido essas memórias, numa aproximação ao mecanismo utilizado por Sarah Polley em Stories We Tell (Histórias que Contamos, 2012)? O segundo mistério é relativo ao desaparecimento do filme original, e em particular do papel do tal professor de cinema (o segmento menos esclarecido do filme), um americano fugidio que é retratado no filme como alguém que usou a sua influência junto deste grupo de adolescentes como forma de legitimação e escapar com algum dinheiro – uma espécie de conman ou um artista incompreendido? No entanto, nesta dupla investigação ao passado, sobressai que o verdadeiro mistério reside nas consequências que esta história teve junto de Tan. A narração em off, entre entrevistas e imagens de arquivo, recorda com nostalgia este período de transição em que tudo era possível, retrato de um grupo possuído na altura com o tal espírito de mudar o mundo, que acaba por dissipar-se com o desaparecimento do filme. Porém, nem todos recordam com o mesmo entusiasmo esse período, e o final do filme marcou mesmo um afastamento entre Tan e amigos mais próximos. Este filme é assim também uma espécie de acto de expiação, uma forma desta enfrentar os demónios do passado, e sobretudo de começar de novo, de recolocar o cinema como a coisa mais importante do mundo.
João Araújo