1.
Revejo as notas que escrevi no escuro, durante a projecção (lembro-me de escrever sem desviar os olhos da imagem). Agora, passado um mês, mais ou menos, só leio aqui traços tremidos (em princípio letras), disformes. Espalham-se em todas as direcções, traços cheios de buracos, espaços vazios, e também sobreposições, mal arrumados na folha de papel A5 dobrada em 4. Não consigo perceber o que escrevi.
Parece-me justo.
Talvez porque: ver o filme foi como ser derrubada por uma onda violenta (e é difícil falar, quanto mais escrever, quando se é derrubada por uma onda violenta). Depois porque é um filme cheio de camadas, literalmente e de maneira talvez mais explícita no som: são tantas as pistas sonoras que as salas estão a equipar-se com um sistema novo para poder projectar o filme e fico sempre na dúvida se o estou a ver inteiro – é um filme que põe portanto em causa a totalidade (desde logo a totalidade do filme enquanto objecto fechado) e por isso parece-me certo que das minhas notas não restem senão fragmentos. E, última razão, para já, relacionada com esta segunda: essas camadas são também linhas que formam um intenso emaranhado que ficaria destruído se as puxássemos todas (puxar o fio à meada é destruir a meada).
2.
Volto a pensar no filme do Godard quando leio a entrevista que a Maria Filomena Molder deu ao Observador. A certa altura Joana Emídio Marques pergunta:
“Joaquim Manuel Magalhães, um dos nossos grandes poetas vivos, que deixou de escrever em 2010, com o livro Um Toldo Vermelho, onde ele nos dá os poemas que ele acha que merecem ser salvos e como ele acha que merecem ser salvos. E no entanto a faca não corta o fogo e as cinzas são férteis. Virgílio também desejou queimar a Eneida. Isto é o exercício impossível de nos prepararmos para a morte?”
E Maria Filomena Molder responde assim:
“Sublinho “o exercício impossível”. E socorro-me para começar de Gilgameš, o homem que não queria morrer e que acabou por aceitar a sua mortalidade, em princípio o autor do primeiro poema. Contar o que se passou desde que o medo de morrer atormentou a alma de Gilgameš é uma das formas daquela aceitação, a poesia poderá ser isto. E socorro-me ainda de Broch que, por várias vezes escreveu, sobretudo em cartas, que se sentia como alguém que está a escrever à pressa para conseguir ainda colocar o seu livro na Biblioteca de Alexandria antes do fogo ser ateado. Esta é outra forma de aceitação, marcada a ferros com a consciência de que o poeta é como um sonâmbulo dotado de uma lucidez intacta ao tomar a seu cargo, sem reservas, aquilo que foi chamado a fazer por não se sabe quem, convicto de que as chamas irão sempre devorar aquilo que tiver feito. As chamas têm a ver com muita coisa, incluindo a indústria cultural.”
3.
Godard diz em off no segmento 4B das Histoire(s) du Cinéma: “queimem-se os filmes, são mercadoria” e depois acrescenta: “a arte [acho que também podíamos dizer “o cinema”] é esse incêndio, nasce com aquilo que queima”.
Em Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018) (como provavelmente desde as lições de Montréal) Godard parece estar a atear e a lidar depois com os restos deste incêndio.
Um incêndio que tem “a ver com muita coisa, incluindo a indústria cultural” – as cassetes de vídeo a que continua a recorrer para escrever a sua história do cinema (pelo menos desde essas lições de Montréal que foram uma espécie de ensaio para as Histoire(s)), e a explosão de pistas no som (que fazem com que as salas tenham de comprar e equipar-se com um novo sistema de som), ardem nesse incêndio.
4.
Uma das últimas imagens d’O Livro de Imagem – na verdade na minha memória é sempre a última, embora o filme não acabe aí – é o plano do homem que vacila, que tomba no Le plaisir (O Prazer, 1952) do Max Ophuls. Esse plano rima com outros planos d’O Livro de Imagem (rima que é uma das suas tais linhas), planos especialmente silenciosos (num filme que o é pouco), silêncio interrompido por um toque de piano, raro, também ele vacilante (é assim que me lembro). Essas rimas (de corpos que vacilam, de homens que pedem que se lhes minta), esse silêncio, mas sobretudo o plano do homem em queda do Le Plaisir, fazem-me lembrar este texto do Michaux (transcrevo-o):
VIDA DÚPLICE
Deixei crescer em mim o meu inimigo.
Nos materiais que fui encontrando no meu espírito, nas viagens, nos estudos e na minha vida, deparei com muitos que me eram inúteis. Depois de anos e anos, vi que muitos desses materiais sem préstimo sobrariam, fizesse eu o que fizesse e fosse o que fosse que eu aprofundasse. Sem préstimo, mas presentes.
Isso contrariou-me, sem porém me perturbar, ignorando eu que havia medidas a tomar. Ia deixando para trás os materiais não utilizados, inocentemente, conforme os encontrava.
Da melhor maneira, eu utilizava os restos, como fazem todos os seres do mundo.
Ora, a pouco e pouco, edificando-se sobre estes escombros forçosamente sempre com ar de serem da mesma família (porque eu punha sempre de parte as coisas de um mesmo tipo), a pouco e pouco formou-se e cresceu em mim um ser incómodo.
De início não passava talvez de um ser medíocre, desses que a natureza se farta de dar à luz. Mas depois, erguendo-se por sobre a acumulação crescente de materiais hostis à minha arquitectura, conseguiu tornar-se meu inimigo em quase tudo; e armado por mim e cada vez mais. Eu ia assim alimentando na minha própria pessoa um inimigo cada vez mais forte, e quanto mais eu extirpava de mim o que me era contrário, mais força lhe dava a ele, e apoio, e alimento, para o dia seguinte.
Assim cresceu em mim, por minha incúria, o meu inimigo mais forte do que eu. Mas que fazer? Ele sabe agora, seguindo-me por todo o lado, onde encontrar o que o há-de enriquecer, ao passo que o meu medo de me empobrecer em seu proveito me leva a juntar-me a elementos duvidosos ou ruins, que não me fazem bem nenhum e me deixam indeciso nos limites do meu universo, ainda mais exposto aos golpes traiçoeiros deste meu inimigo, que me conhece como nunca adversário algum avaliou o seu. Eis pois onde param as coisas, as tristes coisas de agora, colheita sempre bífida duma vida dúplice, e isto por o não ter percebido a tempo.
Há qualquer coisa desta vida dúplice que o Godard assume neste O Livro de Imagem, não me consigo desviar dessa ideia (e também não a consigo resolver).
5.
“Na vida activa da mão, é provável que ela se estenda e contraia, assim como é capaz de se moldar ao objecto. Este trabalho deixou na concavidade das mãos, e aí se pode ler, senão os símbolos lineares das coisas passadas e futuras, pelo menos o traço e, como as memórias da nossa vida de outro modo apagadas, talvez também alguma herança mais distante. De perto, é uma paisagem singular, com as suas montanhas, a sua grande depressão central, os seus estreitos vales fluviais, às vezes cheios de obstáculos, correntes, cruzamentos, às vezes puros e finos como uma escrita. Pode-se sonhar com qualquer figura. Não sei se o homem que a questiona tem a oportunidade de decifrar um enigma, mas gosto que contemple com respeito essa orgulhosa empregada.” (do « Elogio da mão » do Henri Focillon que traduzi apressadamente para aqui)
Há uma violência operada sobre o próprio corpo, n’O Livro de Imagem. Uma fisicalidade violenta. Que está no uso dos fragmentos (“a autenticidade está nos fragmentos”, diz Godard a certa altura, citando Brecht), na explosão (que resulta num desmembramento) sonoro, nas imagens pobres, gastas, velhas, e no próprio corpo (o corpo de Godard) que se confunde com o arquivo.
O Livro de Imagem tem cinco segmentos cada um corresponde ao dedo de uma mão. “Pensar com as mãos”, incita Godard a certa altura, em off. E agora gostava de pôr aqui a fotografia de um dos cadernos de trabalho para O Livro de Imagem (escrito à mão) mas não encontro e não me lembro onde vi.
6.
“agora já ninguém quer ser fausto, todos querem ser reis” (voz off n’O Livro de Imagem)
Inês Sapeta Dias
Programadora da Videoteca – Arquivo Municipal de Lisboa, investigadora do IFILNOVA (da FCSH/UNL) e realizadora.
Sem Comentários