Estreado este ano no festival de Cannes, Girl (2018) chega às salas portuguesas já com uma bagagem de prémios e boas críticas: vencedor do prémio de Melhor Actor (Victor Polster) da secção Un Certain Regard, a Caméra d’or (prémio máximo para a primeira obra), a Queer Palm e o prémio FIPRESCI da crítica internacional. Girl fala-nos de Lara, uma bailarina adolescente que luta com um corpo que não corresponde à sua identidade (num ambiente em que esse mesmo corpo é posto constantemente à prova, a escola de dança). No entanto parece-me que os dois motivos de maior interesse no filme prendem-se no modo como o Lukas Dhont trabalhou o espelho e o subgénero do body horror (no jogo entre identidades e imagens projectadas).
O filme introduz várias vezes o objecto espelho dentro da narrativa e dentro a composição dos planos. No entanto a forma como o realizador trabalha sobre a ideia de reflexo surge de dois modos muito distintos. Um deles passa pelo olhar da protagonista que, quando se observa nos espelhos (do quarto, da casa de banho…), encontra na imagem reflectida um corpo com o qual não se identifica, procurando por isso mesmo ocultar ao espelho partes que não considera suas de modo a que possa construir perante o espelho (isto é, perante o olhar do outro) uma imagem que não corresponde à concretude da sua fisionomia.
Mas o espelho surge também no filme doutro modo muito distinto (e cujos “contornos semióticos” são bem mais discretos). Várias são as vezes em que, nos estúdios de dança onde Lara estuda, Dhont opta por enquadrar a acção de tal modo que, enquanto observamos o esforço físico dos vários alunos, a câmara vê-se tomada por um movimento à retaguarda revelando-nos que afinal a imagem que víamos era o reflexo dessas mesmas acções. Esta última opção (que o realizador repete várias vezes ao longo do filme) é reveladora do próprio olhar do cineasta perante a sua protagonista: enquanto esta vive um conflito entre a imagem que procura “reflectir” e a dessincronia (posto em ideologia médica, disforia de género) dessa imagem com o corpo que possui, já o olhar do filme sobre ela é um que confunde alegremente (mais que confundir é um olhar que com-funde) o “real” e o seu reflexo. Ou melhor, é um olhar onde não chega a existir uma contradição entre o corpo e a sua imagem (entre o sexo e o género – oposição que, já se sabe, é mais espinhosa do que aparenta, vide Judith Butler).
O terror não está na invasão do corpo, o terror é o corpo.
Ao contrário doutros filmes sobre as vivências trans (documentais ou ficcionais, pouco importa), estas são retratadas num ambiente particularmente cruel para com a pessoa cuja relação com o género não é normativa. Em Girl a integração social de Lara é aparentemente suportável (sim há bullying e sim há um constante recordar da diferença). O seu drama é, acima de tudo, um drama interno: um sofrimento de uma rapariga que não consegue aceitar perante si mesma o corpo que possui senão através de uma cirurgia de confirmação sexual – sendo que essa incapacidade de aceitar o seu corpo tem raízes, é claro, na definição de padrões de beleza e de feminilidade que não incluem o corpo de Lara. Mas o modo como o espelho “reflecte” este choque entre corpos e as suas representações é particularmente certeiro na forma como descreve a situação de muitas pessoas trans, colocando a tónica no tema da performance de género como construtor de uma identidade. Não é pois por mero acaso que um dos últimos planos do filme apresente a re-unificação entre o corpo e a sua imagem reflectida numa janela, como se – finalmente – fosse possível para Lara uma aproximação entre essas duas realidades.
Mas enquanto via o filme pensei muito mais no modo como o filme trabalha segundo os arquétipos do filme de terror, em particular o sub-género do body horror. Nessa tipologia de filmes que teve a sua manifestação mais marcantes durante os anos 1980 – nomeadamente no cinema de David Cronenberg – o terror vinha da mudança. O corpo que se supunha “perfeito” – uma unidade ontológica intocada e sacralizada – via-se ameaçado por entidades exógenas (alienígenas, robots, mutações genéticas resultantes de experiências científicas, insectos, doenças e a lista poderia continuar) que o vinham perturbar, deformando-o, reconfigurando-o, resignificando-o. Ora bem, perante Girl apetece inverter esse sub-género e falar de um horror of the body (procurando uma tradução, passamos de um terror corporal para um corpo de terrores). A apropriação de alguns dos tropos recorrentes do cinema de terror por Lukas Dhont (as unhas que caem, a pele que sofre, a mutilação… – não esquecendo que este é um filme sobre dança, prática artística muito habituada ao martírio do corpo, nomeadamente dos pés, vide Darren Aronofsky) é feita em sentido inverso: o terror não está na mudança, está sim na continuação, na persistência, na permanência.
Lara não teme a alteração do seu corpo, pelo contrário, ela deseja-a – o medo é que tudo fique igual, inalterado, esse é o verdadeiro papão. O terror não está na invasão do corpo, o terror é o corpo (e portanto há que aniquilá-lo para expurgar o mal que ele carrega). E se falava em apropriação inversa do género cinematográfico (pelo realizador) também podia falar de apropriação inversa do género (por Lara), uma vez que é essa destruição do físico que possibilita uma re-apropriação de Lara sobre o seu próprio corpo. Tanto ao nível do massacre dos pés através do exercícios de bailado (de modo a inaugurar uma nova identidade profissional) como do massacre do próprio sexo (de modo a fazer concordar um género e um sexo). É necessário, para a protagonista, terraplanar-se, fazer do seu corpo uma tábua rasa onde possa reiniciar uma história pessoal. Mas esse processo é, como já se percebeu, auto-destrutivo e como tal arrepiante – especialmente para aqueles, como eu e o realizador, vivem alegremente dentro das suas formas (pondo em termos próprios, pessoas cis). Mas é exactamente na construção dessa empatia que Girl se encontra (com o espectador, desencontrando-se, talvez, com quem procura representar).