A história da entrada de Jean-Luc Godard para a crítica de cinema já é conhecida. Um jovem intelectual e ávido leitor de livros que, ao tornar-se frequentador assíduo da Cinemateca francesa e do cineclube CCQL (Cinéma-Club du Quartier Latin), conheceu os futuros colegas da nouvelle vague Maurice Schérer (recordado pelo seu pseudónimo, Éric Rohmer), François Truffaut, Jacques Rivette e Claude Chabrol. Era hábito alguns irem ver juntos 3 ou 4 filmes na Cinemateca num dia e saírem de lá noite cerrada, caminhando pelas ruas parisienses até aos respectivos lares a discutirem os filmes que tinham visto. Foi Schérer quem permitiu a primeira publicação de um texto de Godard (sob o pseudónimo de Hans Lucas) na revista La Gazette du Cinéma, em 1950, quando este tinha apenas 19 anos. Em 1951, surgiriam os Cahiers du Cinéma que contariam com a colaboração de Godard a partir do ano seguinte.
O propósito deste artigo foi o de reunir alguns dos momentos mais conhecidos do cineasta enquanto crítico para os Cahiers… (por exemplo, a defesa entusiasta “Se a realização é um olhar, a montagem é um batimento do coração”, a ultra-citada “E o cinema é Nicholas Ray.”) contextualizados nos textos respectivos, assim como dar a conhecer alguns que nos parecem igualmente reveladores da sua lucidez analítica [a crítica a The Wrong Man (O Falso Culpado, 1956)] e da forma apaixonante como falava dos realizadores que defendia (Renoir, Bergman, Nicholas Ray outra vez). Destacamos a relevância de Defesa e ilustração da découpage clássica, onde Godard responde às teorias influentes de André Bazin (o qual preferia o plano-sequência e o uso da grande profundidade de campo à montagem) pela oposição da necessidade de provocar uma resposta emocional no espectador à duração temporal de cada plano (“il faut vîvre plutot que durer”), pela defesa do uso do campo/contra-campo em Otto Preminger e pela colocação inusitada de Howard Hawks (“le plus grand artiste américain”) à frente de Robert Bresson e Orson Welles, realizadores muito acarinhados pelo teorista. Fizemos uma batota em O que é o cinema? (pertencente à revista Les Amis du Cinéma nº1, Outubro de 1952), dado que como achámos o excerto seleccionado bastante pertinente, mas não nos foi possível encontrar o texto original, optámos por traduzir a versão inglesa disponível em Godard on Godard.
Embora o realizador tenha continuado a escrever esporadicamente para os Cahiers…, decidimos pôr textos até 1959, o ano imediatamente precedente ao de À bout de souffle (O Acossado, 1960). Finalmente, o leitor não se espante pela ausência de excertos entre 1952 e 1956, dado que neste período Godard deixou a França para trabalhar na Barragem Grande-Dixence, o que lhe permitiu ganhar dinheiro para fazer as suas primeiras curtas-metragens, Opération Béton (1955) e Une Femme Coquete (1956), e, consecutivamente, dar origem ao percurso fílmico inovador, inventivo, poético, iconoclasta, investigador, controverso, radical, filosófico, experimental, audaz, enfim, godardiano, que revolucionou para sempre a(s) história(s) do cinema.
Defesa e ilustração da découpage clássica
“Esta é a condição da dialéctica cinematográfica: é mais importante viver do que durar. É inútil matar os sentimentos para se viver mais tempo. (…)
Considere-se o método de Otto Preminger, a paráfrase hábil e precisa que este vienense faz da realidade, ver-se-á que o emprego do campo/contra-campo, que a preferência do plano médio ao invés do geral, demarca a vontade de reduzir o drama à imobilidade do rosto, porque o rosto não é apenas uma parte do corpo, é a prolongação de uma ideia que se tem de capturar e revelar. Um rosto belo, como escreveu La Bruyere, é o mais belo dos espectáculos. Conhecemos a bonita lenda que diz que Griffith, comovido pela beleza da sua atriz principal, inventou o plano fechado, de maneira a captá-la com maior detalhe. Paradoxalmente, então, o plano fechado mais simples é o mais afectante. (…)
Basta considerar, certamente, o desenvolvimento do maior artista americano – refiro-me a Howard Hawks – para ver quão relativa é esta ideia de classicismo. Da arte de Only Angels Have Wings (Paraíso Infernal, 1939) à de His Girl Friday (O Grande Escândalo, 1940), The Big Sleep (À Beira do Abismo, 1946), até mesmo de To Have and Have Not (Ter ou Não Ter, 1944), o que é possível ver? Um gosto cada vez mais preciso pela análise, um amor por essa grandeza artificial ligada aos movimentos dos olhos, por uma maneira de caminhar, enfim, saber como ninguém que o cinema pode ser orgulhoso, e uma recusa em ganhar lucro com isso [como eu acusaria Orson Welles de fazer em Macbeth (1948) e Robert Bresson no Journal d’un curé de campagne (Diário dum Pároco de Aldeia, 1951)] para criar o anti-cinema, mas sim, através de um conhecimento mais rigoroso de seus limites, fixar as suas leis básicas.”
–Cahiers du Cinéma nº 15, Setembro de 1952, p.28-32
Montagem, minha bela inquietação
“Se a realização é um olhar, a montagem é um batimento do coração. Antever é próprio de ambos: mas o que uma procura antever no espaço, a outra procura no tempo. Suponha-se que um homem repara, na rua, numa jovem que o atrai. Ele hesita em segui-la. Um quarto de segundo. Como transparecer esta hesitação? A mise en scène responderá à questão “Como deverei aproximar-me dela?” Mas, de maneira a ficar explícita a questão “Irei amá-la?”, é-se forçado a conceder importância ao quarto de segundo durante o qual nascem as duas questões. (…) Este exemplo mostra como falar em mise en scène automaticamente implica falar em montagem. Quando os efeitos de montagem ultrapassam os de mise en scène em eficácia, a beleza dos últimos é duplicada, o imprevisto a desvendar segredos pelo seu charme numa operação análoga ao uso de quantidades desconhecidas na matemática.”
–Cahiers du Cinéma nº 65, Dezembro de 1956, p.30-31
O que é o cinema?
“O génio de Flaherty, afinal, não está assim tão distante do de Hitchcock – Nanook a caçar a sua presa é como um assassino a perseguir as suas vítimas – e reside em identificar o tempo com o desejo que o consome, a culpa com o sofrimento, o medo e o remorso com o prazer, e em fazer do espaço o terreno tangível do desassossego. A arte atrai-nos apenas pelo que revela do nosso eu mais secreto. É este tipo de profundidade a que me refiro. (…) Portanto, à questão “O que é o cinema?”, responderia primeiro: a expressão de sentimentos sublimes.”
– Godard on Godard, 1972, p.31
Nada mais que o cinema [Hot Blood (Sangue Cigano, 1956)]
“Se o cinema deixasse de existir, Nicholas Ray, sozinho, dá a impressão de poder reinventá-lo e, mais do que isso, de o querer. Enquanto é fácil imaginar John Ford como um almirante, Robert Aldrich em Wall Street, Anthony Mann nos trilhos de Belliou la Fumée ou Raoul Walsh como um Henry Morgan contemporâneo sob os céus das Caraíbas, é difícil ver o realizador de Run for Cover (O Fugitivo, 1955) a dedicar-se a uma actividade que não a cinematográfica. Um Logan ou um Tashlin, por exemplo, poderão sair-se bem no teatro ou no music-hall, Preminger enquanto romancista, Brooks como professor, Fuller como político, Cukor um agente de imprensa – mas não Nicholas Ray. Se o cinema deixasse subitamente de existir, a maioria dos cineastas não estaria perdida. Nicholas Ray sim.”
–Cahiers du Cinéma nº 68, Fevereiro de 1957, p.42-44
Dicionário de cineastas franceses [Jacques Tati]
“Com ele, o neo-realismo francês nasceu. (…) Ele é capaz de filmar um plano na praia simplesmente para mostrar que as crianças que constroem castelos na areia são capazes de abafar o barulho das ondas com os seus gritos. Ele também filmará uma paisagem simplesmente porque nesse instante uma janela se abre numa casa no plano-de-fundo, e uma janela que se abre, bem, é engraçado. É isto que interessa a Tati. Tudo e nada de uma só vez. (…) Feito por qualquer outro, Jour de Fête (Há Festa na Aldeia, 1949) e Les vacances de Monsieur Hulot (As Férias do Sr. Hulot, 1953) não seriam nada. Tendo-se tornado com estes dois filmes o melhor realizador francês desde Max Linder, Jacques Tati poder-se-á tornar com o terceiro, Mon Oncle (O Meu Tio, 1958), simplesmente o melhor.”
–Cahiers du Cinéma nº 71, Maio de 1957, p.63
O cinema e o seu duplo [The Wrong Man]
“As mudanças de plano são condicionadas única e simplesmente por mudanças de pontos-de-vista. Por exemplo, quando as duas senhoras da companhia de seguros têm de escolher Balestrero numa linha de suspeitos, um realizador menor teria usado um travelling lateral à medida que elas contam ‘Um, dois, três, quatro’, alternando entre as mulheres e a polícia, até pararem em Fonda, que é o quarto indivíduo da linha. Mas desta forma só teríamos os pontos-de-vista separados das mulheres, da polícia e do falso culpado. Hitchcock dá-nos os pontos-de-vista reunidos. Ouvimos, mas não vemos, as mulheres a contarem até quatro, a câmara vira as costas a Fonda para enquadrar o chefe da polícia num plano médio, cujos olhos se deslocam quatro vezes sucessivas. Enquadrar o inspector num plano fechado seria também um erro, pois não é o seu ponto-de-vista que importa (os seus olhos movem-se com um desprendimento profissional, sem expressão) mas sim de Balestreto, de quem se imagina que esteja assustado precisamente por esta resposta mecânica.
Mais do que uma lição moral, The Wrong Man é a cada minuto uma lição de mise en scène. No exemplo que citei, Hitchcock foi capaz de reunir o equivalente de diversos planos fechados num único, dando-lhes uma força que não teriam individualmente.”
–Cahiers du Cinéma nº72, Junho de 1957, p.35-42
Bio-filmografia de Jean Renoir [Elena et les hommes (Helena e os Homens, 1956)]
“Dizer que Renoir é o mais inteligente dos cineastas vai dar ao mesmo que dizer que ele é francês da cabeça aos pés. E se Elena et les hommes é ‘o’ filme francês por excelência, é porque é o filme mais inteligente do mundo. Arte ao mesmo tempo que a teoria da arte. A beleza ao mesmo tempo que o segredo da beleza. O cinema ao mesmo tempo que a explicação do cinema.
A nossa bela Elena não é mais que uma musa do departamento*. Sem dúvida. Mas uma que busca o absoluto. Pois ao filmar Vénus entre os homens, Renoir, pelo espaço de uma hora e meia, sobrepõe o ponto-de-vista do Olimpo ao dos mortais. Diante dos nossos olhos, a metamorfose dos deuses deixa de ser um slogan de bazar para se tornar num espectáculo de comédia profundamente comovedor. Pelo mais esplêndido dos paradoxos, com efeito, em Elena, os imortais procuram a morte. Para se estar seguro para viver, tem de se estar seguro para amar; e para se estar seguro para amar, tem de se estar seguro para morrer. É isto que Elena descobre nos braços dos seus homens; e esta é a estranha e dura moral desta fábula moderna disfarçada de opera buffa. (…) À questão ‘O que é o cinema?’ Elena responde: ‘Mais do que o cinema.'”
–Cahiers du Cinéma nº78, Dezembro de 1957, p.59-86.
*La Muse du département é um romance de Honoré de Balzac sobre uma mulher provinciana, bonita e inteligente, presa a um casamento por conveniência e que se apaixona por um jornalista parisiense.
Para além das estrelas [Bitter Victory (Cruel Vitória, 1957)]
“Havia o teatro (Griffith), a poesia (Murnau), a pintura (Rossellini), a dança (Eisenstein), a música (Renoir). Agora há o cinema. E o cinema é Nicholas Ray. (…) Bitter Victory não é uma reflexão da vida, é a própria vida tornada em filme, vista por trás do espelho onde o cinema a intercepta. É de uma vez o mais directo e o mais secreto dos filmes, o mais subtil e o mais bruto. Não é cinema, é mais do que cinema. (…)
Como é que alguém pode falar de um filme assim? De que adianta dizer que o encontro entre Richard Burton e Ruth Roman sob o olhar de Curt Jurgens é editada com um brio fantástico? Talvez esta tenha sido uma cena onde os nossos olhos se tenham cerrado. Pois Bitter Victory, como o Sol, faz-nos fechar os olhos. A verdade cega.”
–Cahiers du Cinéma nº79, Janeiro de 1958, p.44-45
Bergmanorama
“Na história do cinema há cinco ou seis filmes na história do cinema de que amamos fazer uma crítica simplesmente com as palavras, “É o mais belo dos filmes”. Porque não existe maior elogio. Porquê falar, com efeito, mais longamente de Tabu: A Story of the South Seas (Tabu, 1931), Viaggio in Italia (Viagem a Itália, 1954) ou Le Carrosse d’Or (A Comédia e a Vida, 1952)? Como a estrela-do-mar que se abre e fecha, eles sabem oferecer e esconder o segredo do mundo do qual são os únicos confidentes e fascinantes reflexos. A verdade é a verdade deles. Guardam-na no interior de si mesmos e, no entanto, o ecrã rasga-se com cada plano para espalhá-la aos quatro ventos. Dizer deles “É o mais belo dos filmes” é dizer tudo. Porquê? Porque sim. Só o cinema pode permitir esta forma de raciocínio infantil sem pudor. Porquê? Porque é o cinema. E porque o cinema é suficiente em si. (…) Cinco ou seis filmes, dizia eu, +1, pois Sommarlek (Um Verão de Amor, 1951) é o mais belo dos filmes. (…)
O cinema não é um ofício. É uma arte. Não significa trabalho de equipa. Está-se sempre só; tanto no plateau como diante da página em branco. E para Bergman, estar só significa levantar questões. E fazer filmes significa respondê-las. Nada poderia ser mais classicamente romântico.”
–Cahiers du Cinéma nº85, Julho de 1958, p.1-5.
Les quatre cents coups (Os quatrocentos golpes, 1959)
“Com Les quatre cents coups, François Truffaut entra tanto no cinema moderno como nas salas-de-aula da nossa infância. As crianças humilhadas de Bernanos, as crianças dominadoras de Vitrac, as crianças terríveis de Melville-Cocteau, as crianças de Vido, de Rossellini, numa palavra, as de Truffaut, expressão que será de uso corrente aquando a estreia do filme. (…) Com Les quatre cents coups, a câmara do realizador de Les mistons (Os Putos, 1957) estará, de novo, não à altura do homem como no pai Hawks, mas sim à da criança.”
–Cahiers du Cinéma nº92, Fevereiro de 1959, p.44
Super Mann [Man of the West (O Homem do Oeste, 1958)]
“Pois só há talvez três tipos de western, no sentido em que Balzac disse certa vez de que só há três tipos de romance: de imagens, de ideias, e de imagens e ideias, ou Walter Scott, Stendhal, e, enfim, o próprio Balzac. No que toca ao western, o primeiro tipo é The Searchers (A Desaparecida, 1956); o segundo Rancho Notorious (O Rancho das Paixões, 1952); e o terceiro Man of the West. Não quero dizer com isto que o filme de John Ford é um simples acumular de imagens bonitas, antes pelo contrário; nem que o de Fritz Lang se encontra totalmente desprovido de beleza plástica ou decorativa; não, o que quero dizer é que em Ford é a imagem que invoca a ideia, ao invés que em Lang se dá o oposto, e que com Anthony Mann passamos da ideia para a imagem para regressar, como Eisenstein queria, para a ideia.
Tomemos alguns exemplos. Em The Searchers, quando John Wayne encontra Natalie Wood e subitamente a agarra com os braços estendidos, passamos do gesto estilizado para o sentimento, de John Wayne subitamente petrificado a Ulisses reunido com Telémaco. Em Rancho Notorious, por outro lado, quando Mel Ferrer faz Marlene Dietrich ganhar na roda-da-lotaria, o súbito sentimento da intrusão da tragédia num saloon do Faroeste está menos reforçado que criado pelo pé de Mel Ferrer a parar a roda, e com isso passamos de uma ideia abstrata e estilizada ao gesto. Com Ford, uma imagem dá a ideia de um plano; com Lang, é a ideia de um plano que dá origem a uma imagem bela. E com Anthony Mann?
Se alguém analisar, em Man of the West, a cena onde um dos bandidos coloca a faca na garganta de Gary Cooper para forçar Julie London a despir-se, ver-se-á que a sua beleza brota do facto de ser baseada de uma ideia puramente teórica e num realismo muito preciso. Com cada contracampo, passamos com uma velocidade fantástica da imagem da Julie London a despir-se à ideia do bandido em vê-la nua. Portanto Mann só precisa de mostrar a rapariga em corpete para conferir a impressão de que lhe vemos a pele.”
–Cahiers du Cinéma nº92, Fevereiro de 1959, p.48-50
Anexo 1 (4 tops de Godard)
Anexo 2 (Brevíssimo excerto de uma entrevista)
“Cahiers: Jean-Luc Godard, você veio para o cinema pela crítica. O que deve a este percurso?
Godard: Todos nós nos Cahiers já nos víamos como futuros cineastas. Frequentar cineclubes e a Cinemateca era já uma maneira de pensar o cinema e sobre cinema. Escrever era já uma maneira de fazer filmes, pois a diferença entre escrever e realizar é quantitativa, não qualitativa.”
–Cahiers du Cinéma nº138, Dezembro de 1962, p.21-39