0. Ground Zero
(Histoire d’O / Histoire d’Eau)
‘‘Cada olho negoceia por si mesmo’’
Jean-Luc Godard, Histoire(s) du Cinéma(1989-1999)
Recorre o Mistério do Homem-Pássaro:
que Ovo segura?
De novo, cá está Godard das mãos aos olhos
decalcando Judex ou segurando o signo dessa primeira forma elíptica:
o zero, o ovo, o olho, a órbita
circulamos para percorrer com o foco,
habitamos com os olhos
em terras de sempre ver
em céus de ver mais e
o resto, imaginamos:
das águas primordiais
de onde tudo brota
a matéria chega torrencial
das mãos aos olhos, um ponto de partida:
resta uma possibilidade de ordem
e interpretações abundantes
como horizontes distendendo
[não há pontos finais.]
1. O sentido é o que existe entre duas imagens *
*MONDZAIN
À hora em que a civilização existe por imagens,
O Criador de Imagens interrompe a sua Criação:
O Criador constrói a barca – Film socialisme.
O Criador navega à bolina – Adieu au langage.
Agora, o Criador já não não adiciona novas imagens ao caudal das imagens.
Ele colecciona imagens.
Ele colecciona imagens pequenas e grandes.
Ele colecciona imagens fixas e em movimento.
Ele colecciona imagens que ama e que detesta.
Ele colecciona imagens assinadas pelo homem e pela máquina.
Ele colecciona imagens famosas e secretas.
Ele colecciona imagens profissionais e anónimas.
Ele colecciona ilustrações televisivas e insígnias do cinema.
Ele colecciona campanhas publicitárias e posts de redes sociais.
Ele colecciona imagens e, defronte destas,
todos os dias, ele formula questões.
Depois
há dias de abrir o álbum de recortes e
-há que olhar como quem vê
recordando como
TODO O CRIADOR
É UM MANIPULADOR.
tal como Film socialisme
Le livre d’image redesenha
um Mediterrâneo em moldura expansiva:
(passa-se aqui como ali)
este é o mar da deriva ocidental
o mar que engoliu os saques e diluiu os sangues
o mar onde se cruzam as línguas e as peles
o mar do refúgio e do recâmbio
um mare tão nostrum que lh’encerramos as baías
: do lado de lá há a Guerra e cá
fechamos os olhos e os portos e ali
ficam a morrer as barquetas
sobrelotadas até ao naufrágio
as águas estão a ficar vermelhas
(não ouvem chorar as praias?
os mares engolem os anónimos
os corpos da execução sumária
navegam os cadáveres dos bichos e do PVC
diluem venenos ~ óleos ~ petróleos
conhecem o gosto amargo do sobreconsumo
(não ouvem chorar as praias?
o túmulo mediterrânico ganha voz nas imagens sujas e
: o velho continente submerge
como um navio pesado de si
e
o mesmo mar arterial que viu Napoleão flutuar
Leões de Pedra sobre esqueletos de madeira
(uma era saqueada por outra dá em museu)
hoje
vê nascer fascismo
onde ontem
nasceu democracia
e
entre artefactos e línguas mortas
resta um chão esgotado como um cemitério
cansadas ~ devolutas ~ decadentes
as coisas caem sobre as coisas
e os vivos esses
definhando no chão
enlaçados por políticas mortas
: memória
vestígios da civilização
que já não se é
permanecem
à distância
[…]
QUO VADIS EUROPA?
perguntam GODARD, SOKUROV, VON BAGH, BRENEZ, MIEVILLE, BATTAGGIA, ARAGNO,
e mais quem se deixar atravessar pelo perguntar:
Como reagimos às
imagens do terrorismo
que nos chegam todos os dias?
Porque finge a informada Europa que não sabe
o que acontece às pessoas
do lado de lá do Mediterrâneo?
o horror é a mercadoria:
o desastre de uns é o entretenimento de outros
o sangue vale dinheiro.
L’OR
L’ORDRE
L’ORIGINE
2. Pensar com as mãos
‘‘A verdadeira condição do homem é pensar com as mãos.’’
Jean-Luc Godard (Le livre d’image)
Godard organizou LE LIVRE D’IMAGE em cinco capítulos como os cinco dedos da mão e é de si que ouvimos que penser avec les mains (título de uma das suas Histoire(s)) é a verdadeira condição do homem.
Onde há representação, há civilização:
Cada imagem traz mãos em si inscritas.
- Cada imagem é uma criação significante;
- Cada imagem é um sub-produto humano;
- Cada imagem é a sua própria biografia calada;
3. Crónica Carmim
Uma imagem é o vestígio do agenciamento activo do humano: há uma razão de ser em cada imagem. (Qual razão? A pergunta é essa, sempre.)
[a morte do cinema]
Lia-se na sala de projecção ocupada pela equipa de produção (encabeçada por Fritz Lang), em Le mépris (O Desprezo, 1963):
‘‘IL CINEMA È UN’INVENZIONE SENZA AVVENIRE.’’
Louis Lumière
Recordam-se?
Em Capri, no meio do Mediterrâneo, uma claquete anunciava a adaptação por Fritz Lang da saga de Ulisses, agora em Technicolor. É Godard quem, eterno iconoclasta, manipula marcas > figuras > ícones > cores, recolocando a cultura pop num centro por si designado, assim sublinhando a qualidade encenada da realidade. Se a mimesis procura replicar o real, anunciar [como bom discípulo de Brecht] essa distância à verosimilhança é legitimar o espaço necessário para o poder estudar:
As imagens de Godard dizem mais sobre o gesto de representar do que sobre o objecto representado?
Da película ao vídeo > do analógico ao digital > do grão ao pixel > Godard avançou na cor até à saturação. Nunca tão contrastadas, em Le livre d’image as imagens foram repuxadas até ao borrão. As formas são vincadas pela cor. A velocidade de reprodução aumenta. O som agudiza:
tudo explode
Tudo nos recorda de que
nada há de natural nestas imagens
: elas são feitas por homens com as suas máquinas
Recolhendo imagens de fontes diversas, na sua disforme amálgama de fraca definição, Le livre d’image funciona como um catálogo de evocações:
As imagens correm no ecrã
tecem a mortalha que hoje
enreda de imagens o mundo
e a saturação passa a ser física
: largado no interior da ferida aberta
o espectador entontece de vermelho
Godard cai quente como o sangue
: A morte veste carmim
banalizada pelo excesso em que é mostrada
~ na televisão ~ na internet ~ no cinema ~
tudo arde
- restam esses rostos idos que a imagem ainda captou;
- restam grandes ditos que se deixaram em filmes e em livros;
- restam as homenagens (olhos para rever, vozes para recitar)
- restam mãos para transformar ~ replicar ~ fazer sobreviver mais um pouco.
Uma mesa-de-montagem para ordenar o mundo.
Ei-lo de novo de mãos na matéria,
transformando [mix plus]
: são sobreposições, são texturas, são retintagens
: são recortes, são inundações, são recordações
: são imagens a constituir-se ou a fragmentar-se
anunciada está
entre a chama e a cor nova
a destruição dos referentes:
descontextualizar = recontextualizar
assim se serve um pensamento em liberdade
delápide
da linguagem prévia
& já perto do fim
é Godard a ilustrar o seu exercício
citando Brecht:
“só o fragmento pode conservar a autenticidade”.
4. MOI / TOI = HISTOIRE
aqui
o decalque
não mostra apenas as linhas-mestras
Johnny Guitar, Saló, L’Atalante, À Beira do Mar Azul, Vertigo, Monsieur Arkadin, La Strada, Sicilia!, Los Olvidados, Sang des Bêtes, Paisà, La Grève, etc
não mostra apenas os grandes autores
Brecht, Ramuz, Malraux, Hölderlin, Tolstoi, Shakespeare, Michelet, Rosa Luxemburgo, etc
não mostra apenas os artistas maiores
Da Vinci, Giacometti, Artaud, etc
mostra os seus próprios filmes
& mostra
muito particularmente
a imagem viciada pelo horror.
< a mais comum das mercadorias consumida e transacionada pelo capitalismo >
hoje
(a imagens fazem parte de todas as vidas)
incessantes as câmaras de vigilância
incessantes as samplagens e os streams
incessantes os multicanais e as antenas e as câmaras e os ecrãs
incessantes as imagens
[…]
e com o projecto torrencial do mundo-feito-imagem em mãos
será sempre ruídoso o tratado sobre o ruído:
LE LIVRE D’IMAGE é um filme do século XXI.
A vida nunca foi tão contemporânea,
é como se dissesse Godard.
A imagem nunca assim serviu a contemporaneidade,
e nunca assim se serviu a contemporaneidade da imagem,
é como se dissesse Godard.
Este é o século das imagens
mas nem todas as imagens são deste século,
é como se dissesse Godard.
&
quando a produção de imagens
esmaga a sua capacidade de leitura,
há que retroceder
[to see the big picture]
: a civilização que existe mede a civilização que falta
: tudo é ensaio porque tudo é (entre) comparação
de ontem para hoje
LE LIVRE D’IMAGE
é uma arqueologia de sons ~ vídeos ~ textos
mesclados À GODARD (expanded)
filme-ensaio ou
panorâmica de pés assentes no presente
+ GODARD na sala-escura em voz off
debitando pistas
[…]
> LES ANIMAUX
à hora de diagnosticar a imagem contemporânea
Godard reune pelo retrato:
pessoas e animais estão no mesmo barco dos confinados
‘‘uma civilização que não trata dos animais não trata das pessoas’’
é como se dissesse Roxy Miéville ~ só lhe falta falar
filha legítima do cinema de Jean-Luc Godard e de Anne-Marie Miéville
& Star 3D de Adieu au langage
regressada em Le livre d’image
5. LES SIGNES PARMI NOUS
A mão criadora foi transformada em mão ordenadora.
A câmara-de-filmar foi transformada em mesa-de-montagem.
<PORQUE O CINEMA AGORA É OUTRA COISA>
Le livre d’image começa e acaba com imagens de mãos e
das mãos da criança árabe
(que brinca com uma bobine obsoleta de película a fingir de roda)
<PORQUE O CINEMA AGORA É OUTRA COISA>
suspende-se a intenção que atravessa todo o seu legado:
-há que haver uma revolução.
& dificultado pela tosse
é na rouquidão de uma voz de 88 anos que confessa
– quando éramos jovens nós esperávamos (…)
recorrente como um aviso,
regressa também o seu intertítulo
[que vem do título homónimo de Ramuz]:
OS SIGNOS ENTRE NÓS
(pedem mais olhar aos olhos)
Incessantes como comboios que se atravessam entre a luz e o negro,
as imagens trazem atrás de si outras imagens.
: o continuum
vai e volta e
nesse movimento
é a imagem que se (re)constitui.
do ovo ao olho:
em filme ou em livro / em texto ou em imagem
ficam ideias como instrumentos
(e são de quem as quiser agarrar)
‘‘Nunca se é demasiado triste para que o mundo possa ser melhor.’’
Anne-Marie Miéville, Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018)