Ver e ouvir um filme de Jean-Luc Godard. Ler um ensaio de Stanley Cavell. Pensar com os dois: politicamente, religiosamente, cinematograficamente. Em “Prénom: Marie”, Cavell toma como objecto Je vous salue, Marie (Eu Vos Saúdo Maria, 1985), mas a reflexão estende-se a outras obras de Godard, em particular à longa-metragem anterior, Prénom: Carmen (Nome: Carmen, 1983). Era o acerto do filósofo americano com o cineasta franco-suíço, depois das críticas que tinha dirigido ao seu cinema anos antes. Como a obra cinematográfica de Godard se refaz, também a obra filosófica de Cavell se reelaborava. São obras como labirintos em expansão.

“En ce temps là.” Ou seja, “naquele tempo”, expressão bíblica que, quando é lida, tanto evoca o passado como se refere ao presente, tempo fechado e aberto. Ou seja: neste tempo. Lemos sempre quando lemos, sem conseguirmos escapar às malhas mais ou menos apertadas da história. A narrativa de Je vous salue, Marie desenrola-se na actualidade, em Genebra, cidade onde Martinho Lutero iniciou a Reforma Protestante. Não é por acaso. Quem duvidar, pode reparar na música de J. S. Bach, o grande compositor luterano. O filme lê as Escrituras como se fosse a primeira vez. Mas a sua dimensão iconográfica, melhor dizendo, carnal, é profundamente católica. “Fui criado como um protestante, mas não pratico. Tenho, no entanto, muito interesse no catolicismo”, disse Godard. As instituições católicas não devolveram o interesse. Talvez até vissem nesta declaração mais uma provocação. O Papa João Paulo II juntou a sua voz à de outros católicos para afirmar que o filme “distorce e calunia o significado espiritual e o valor histórico e fere profundamente o sentimento religioso dos crentes e o respeito pelo sagrado e pela figura da Virgem Maria”.
Entretanto, a controvérsia esfriou e as palavras e as imagens do filme mantêm o seu poder desafiante. Cavell nota que, apesar do seu tom quotidiano, da sua pequenez, a obra criou um escândalo e que o cristianismo, ele próprio, tem sido um meio de o criar. É uma religião escandalosa, onde o corpo é elemento central, como mistério e dádiva, como imagem. “Não sou uma pessoa religiosa, mas sou uma pessoa fiel. Acredito nas imagens.” Godard, de novo, com duas frases que ligam a fidelidade à crença, de alguma maneira negando a negação de que ele não é religioso.
O cristianismo pôs a humanidade a olhar e a ler as manifestações divinas no mundo como iconografia. Há limites para o que o olhar pode desejar? O que acontece ao desejo de Deus quando esses limites são impostos? Se com as imagens se fez teologia visual, a teologia por si só abriu um espaço mais amplo para as questões sobre o corpo de Maria. Excluir a púbis do corpo é falar de um corpo incompleto, sem existência. No filme, Maria (Myriem Roussel) é um corpo-alma, um corpo que, em muitos momentos, está cansado da alma até ao apaziguamento: “Sou a alegria, a que é alegria e não tem de lutar contra ela, nem ser tentada, a não ser ganhar mais uma alegria.” E depois respira, a mão sobre a barriga, enchida, esvaziada, enchida, esvaziada – imagem da pneuma que toma forma na respiração e na vida contagiante.

“Não fazer filmes políticos, fazer filmes politicamente.” É um princípio associado ao trabalho do Grupo Dziga Vertov, em que o voluntarismo do comunismo maoísta era transposto para a experimentalismo cinematográfico. Não fazer filmes religiosos, fazer filmes religiosamente: podia ser outra forma de dizer essencialmente o mesmo. Cavell recorda que nas décadas de 1960 e 1970 Godard foi uma figura importante na cena intelectual americana, quando a política dividia profundamente. É uma época e um lugar que talvez pareçam distantes de Je vous salue, Marie e Prénom: Carmen, dois filmes com nomes de mulheres no título lançados um a seguir ao outro. Quão distantes? Depende de como se olha para a obra anterior, intui Cavell. Uma hipótese é que quem alinhava com a política militante dos filmes anteriores, com o alistamento da arte ao serviço da política, sentiu um recuo, um desapontamento, com a aparente evasão da política. Outra hipótese é que quem não se identificava com a postura política de Godard e tenha sentido o seu “ódio por uma sociedade odiosa e exploradora como uma cobertura para a sua frieza e o seu isolamento espirituais” acolheu melhor a aparente mudança redentora destes filmes da década de 1980.
Nos dois casos, questiona o filósofo, Je vous salue, Marie contraporia a uma política totalizadora uma religião totalizadora. Talvez não seja nada disto. Talvez Je vous salue, Marie não seja uma evasão da política, mas uma crítica da política ou daquilo a que Godard em determinada altura considerava que era a política. Cavell pergunta se conseguimos suportar o peso das palavras de Karl Marx: “A crítica da religião é o princípio de toda a crítica.” E o fim de toda a crítica? O fim, não no sentido de termo temporal, mas como horizonte. Tal como Marx também não se refere ao princípio simplesmente como começo temporal, mas como fundação. Para Cavell, a possibilidade é a de que o fim seja a crítica da crítica. Para Godard, também. A crítica da crítica é a crítica da afirmação de uma posição que permite analisar criticamente as ideias de outras pessoas, idealmente as de todas as outras pessoas, menos as nossas. “Este fim é tão fácil de adiar”, escreve o filósofo.
Godard não se coíbe de enfrentar este fim. Continua a articular em imagens e em palavras, com o corpo, a humanidade inquieta, a inquietação da humanidade, no limite, a humanidade como inquietação. São exigências de todos os tempos à arte e à filosofia, à política e à religião, para as quais nada do que é humano lhes deve ser estranho. Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018), filme pós-digital, confirma que o gesto humano pulsante que faz e organiza as imagens não basta para explicar o poder irradiante e incandescente que elas têm. É a sua densa (re)leitura ao longo dos tempos que lhes empresta esse poder.