Bernardo Bertolucci (1941-2018), talvez o mais internacional realizador italiano das últimas décadas, morreu no passado dia 26 de Novembro. Autor de grandes produções que recriavam episódios de história nacional e de filmes íntimos que se desenrolavam no espaço de um quarto, interligou como poucos cineastas o pessoal e o político.

Nascido numa família de intelectuais e artistas, Bertolucci cedo se destacou no meio. Recebeu prémios literários ainda jovem e, aos 20 anos, foi convidado por Pasolini, amigo da família, para ser assistente na rodagem de Accattone (1961). Um ano depois, após deixar os estudos universitários incompletos, filmou o seu primeiro trabalho, La commare secca (1962), precisamente baseado numa obra de Pasolini.
Visto hoje, La commare secca não parece de forma óbvia um filme de Bertolucci. Pensamos noutras referências, de Pasolini a Bergman, de Rossellini a Manoel de Oliveira. Filmado quase sempre em espaços exteriores, entre gente mais ou menos pobre de Roma, há uma certa aura neo-realista ali. Nos jogos de pequenas mentiras que vamos vendo nas histórias entrecruzadas dos potenciais suspeitos da morte de uma prostituta, é o fulgor da vida quotidiana, das suas crueldades e esperanças, que se desenrola aos nossos olhos. Não falta algum humor, mas já se adivinha também uma certa solidão, a representação da qual será apurada em alguns dos filmes mais icónicos. O fascínio da câmara de Bertolucci por rostos jovens e belos também se faz já aqui anunciar, bem como uma atenção particular a personagens infantis ou adolescentes, que são tratadas sem condescendência, como adultos.
O político não está ausente de La commare secca, mas seria referido mais explicitamente em futuros trabalhos e sempre através de uma exploração de ideias de desejo. Não será exagerado dizer que alguma da inspiração era autobiográfica. Por um lado, a própria experiência de psicanálise terá influenciado a sua obra. Por outro, a consciência política (que levara à sua filiação no Partido Comunista Italiano) e o alegado sentimento de culpa pela identidade burguesa é notória em vários dos seus filmes, a começar logo pela sua segunda longa, Prima della rivoluzione (Antes da Revolução, 1964). Como Bertolucci explicaria: “Eu era um marxista com todo o amor, toda a paixão, e todo o desespero de um burguês que escolhe o marxismo”. Amor, paixão, desespero, classe e política sendo, claro, temas constantes no seu cinema.
Se o preto-e-branco atmosférico do início de carreira já tinha momentos de assombro, a passagem de Bertolucci para a cor marca também uma importante passagem para a identidade de autor, ou não fossem os seus filmes mais conhecidos alguns dos mais extraordinários trabalhos cromáticos do cinema do século XX. Uma curta esquecida que hoje se encontra facilmente no YouTube parece já anunciar as paletes de filmes futuros. Il canale (1966) é um curioso olhar sobre o Canal do Suez. Ali a frota internacional permanece longínqua ao olhar e as casas coloniais vazias. É no pulsar da vida das pessoas locais – com pelo menos um plano a rimar com La commare secca – que a câmara se detém. A única longa documental, La via del petrolio (1967), alargou-lhe os horizontes, levou-o ao Irão e ao Egipto, entre outros lugares, e de certa forma sugere as contradições exploradas noutras obras: procurando a liberdade artística e a atenção social entre convenções impostas num filme encomendado pela petrolífera ENI.
Os anos 1970 e 1980 foram as décadas de maior exposição mediática de Bertolucci, a consagração como “autor global”, começando com aquele que é talvez o seu melhor filme, Il conformista (O Conformista, 1970). Visualmente arrebatador – mérito em parte do director de fotografia Vittorio Storaro, que iniciou aí uma longa colaboração com Bertolucci –, Il conformista foi e continua a ser um filme influente, gerador de admiração e de debate. Il conformista é também um filme internacional na sua execução, com cenas em Itália e França, actores dos dois países, e outras referências como uma cena num restaurante chinês de Paris.
Há no filme um equilíbrio cénico que contrasta com os desequilíbrios e repressões das suas personagens, centradas num fascista insignificante e sexualmente reprimido na missão para emboscar o seu antigo professor universitário. Uma rede de relações de domínio e submissão é tecida ao longo do filme numa antologia de planos magníficos onde o espaço é meticulosamente captado e quase mais importante que as palavras ditas. Há muitas por onde escolher, mas deixemos aqui uma imagem da cena da dança, em que o protagonista (exímio Jean-Louis Trintignant) é cercado pelo colectivo que rodopia, cuja alegria, espontaneidade e liberdade “vencem” a moral podre, o seu calculismo e a própria prisão interior daquele.
Retratos complexos de masculinidade continuaram a marcar os filmes seguintes de Bertolucci, como Strategia del ragno (A Estratégia da Aranha, 1970) onde a memória histórica do fascismo em Itália voltava a assumir importância crucial. Mas seria Last Tango in Paris (O Último Tango em Paris, 1972) com Marlon Brando e Maria Schneider (com, respectivamente, 48 e 19 anos na altura) que catapultaria Bertolucci para a ribalta mundial. O filme dividiu opiniões à época e continua a fazê-lo hoje. Aclamado como obra-prima erótica e denegrido como uma fantasia machista, Bertolucci seria por ele condenado por um tribunal italiano a pena suspensa e a perder os seus direitos cívicos por cinco anos, o que o impediu de votar. A comissão de censura ordenou a destruição de todas as cópias do filme.
Já nos anos 2000, Maria Schneider diria que se sentiu humilhada e “um pouco violada” na rodagem daquela que é porventura a cena mais famosa do filme, pois Bertolucci não lhe disse exactamente o que iria acontecer. O sexo foi simulado (contra o que Bertolucci queria) mas o abuso foi real para Schneider e era aparentemente a honestidade da sua reacção de humilhação que Bertolucci admitiu que procurava. Sem surpresas, a colecção de obituários de Bertolucci não ignora este facto. É que tal como Bertolucci tão eximiamente explorou as relações e contradições entre o pessoal e o político, também nós, seus espectadores, não devemos negar-nos a essa interrogação sobre as condições de produção de Last Tango in Paris e as relações de poder ali subjacentes. Chocante era, em 2018, ninguém achar perturbador o que se passou.
Last Tango in Paris deverá continuar a ser o mais “infame” filme de Bertolucci, mas estilisticamente não é um capítulo demasiado atípico da sua filmografia. Tem qualidade pictórica de um mestre de luz e cor – a influência da pintura em Bertolucci já havia sido notada antes e aqui a referência directa é Francis Bacon. O retrato de trauma e conflito interior são levados a um extremo, mas não eram novos.
A escala da ambição foi alargada no filme seguinte, o seu monumental Novecento (1900, 1976) – tão longo (5h30) que o corte imposto para distribuição enraiveceu Bertolucci. Recheado de estrelas de vários países (incluindo Robert De Niro, Gérard Depardieu e Dominique Sanda), Novecento, tal como seria mais tarde The Last Emperor (O Último Imperador, 1987), é uma evocação da história de um país no século XX. No caso de Novencento é o regresso de Bertolucci a Itália, à região ide Emilia-Romagna onde nasceu, para fazer a crónica da primeira parte do século e a ascensão do fascismo através da história de dois amigos de classes diferentes. O retrato familiar seria menos megalómano mas não menos complexo nos dois filmes seguintes, La Luna (1979) e La tragedia di un uomo ridicolo (A Tragédia de um Homem Ridículo, 1981).
No final dos anos 1980, com The Last Emperor, o cinema de Bertolucci internacionaliza-se numa escala até então sem precedentes na sua obra. A adaptação das memórias do último imperador da dinastia Qing leva-o até à China, tendo sido o primeiro estrangeiro autorizado a filmar na Cidade Proibida. Através da figura de Puyi, Bertolucci revisita a história da China do século XX sem trair o seu estilo de interligar política e intimidade. Falado em inglês, protagonizado por asiáticos e com actores de vários países no elenco, The Last Emperor marcou a consagração de Bertolucci em Hollywood, onde o filme arrecadou todos os nove Óscares para que foi nomeado.
Em The Last Emperor, como noutros filmes seus até então, Bertolucci reflecte no grandioso através do íntimo: desejos e dúvidas de poder articulados através de desejos e dúvidas individuais. E também aqui há o retorno de um retrato de género bastante interessante. Na maioria dos filmes de Bertolucci os homens, mesmo em posições de domínio político, económico, ou físico, são na verdade fracos, até mesmo patéticos. As mulheres, embora sofram destinos trágicos, como em The Last Emperor, são corajosas, lutadoras e dignas, capazes de escolher quando os homens permanecem na sua indecisão.
Depois deste triunfo, nada mais atingiria escala similar na sua obra, embora Bertolucci continuasse as suas viagens fora da Europa, filmando The Sheltering Sky (Um Chá no Deserto, 1990) no Norte de África e Little Buddha (Pequeno Buda, 1993) na Ásia, ambos com actores americanos como protagonistas. O primeiro, adaptação do magistral livro de Paul Bowles, explorava as desventuras de um casal de amantes nos anos 1940 – um filme talvez menos conhecido do que deveria e que se presta a interessantes leituras pós-coloniais. Um filme de desespero e de solidão pessoal, contrastante com o mais esperançoso Little Buddha, uma reflexão sobre o familiar. Ambos trouxeram de novo o compositor japonês Ryuichi Sakamoto, após a sua memorável banda sonora para The Last Emperor.
As últimas longas de Bertolucci – Stealing Beauty (Beleza Roubada 1996), Besieged (1998), The Dreamers (Os Sonhadores 2003) e Io e te (Eu e Tu, 2012) – trocaram a imensidão das paisagens de viajante para o espaço de uma casa. Tirando Besieged (criticado pelo retrato eurocêntrico que faz das personagens africanas), todos os outros pertencem a jovens e às suas próprias jornadas de descoberta – com diferentes escalas de interacção com o mundo exterior, culminando em Io e te que é quase totalmente centrado em duas personagens – dois irmãos do mesmo pai (Jacopo Olmo Antinori e Tea Falco) – e passado na cave de um apartamento de Roma perto da residência do realizador. Io e te parece um medley morno de filmes anteriores de Bertolucci mas não deixa de ter momentos memoráveis, como a dança (novamente uma dança) lenta ao som da versão italiana de Bowie de “Space Oddity” (“Ragazzo solo, Ragazza sola”).
Esta obsessão com a juventude e as suas possibilidades quase infinitas é particularmente notória em The Dreamers. Um filme cinéfilo sobre um trio de cinéfilos, que não só volta a questões recorrentes na obra de Bertolucci (família, sexo, política, etc.) como revisita a sua própria memória cinéfila, incluindo mais homenagens ao velho amigo Godard, a quem Bertolucci, cerca de dez anos mais novo, já havia feito referência em outras anteriores: por exemplo o número de telefone dito pela personagem de Trintignant na cena de abertura de Il conformista era o de Godard ou os planos em Partner (1968) inspirados em filmes dele como La chinoise (1967).
O último filme de Bertolucci não foi concluído, mas notícias recentes informam que chegará aos cinemas num futuro próximo. The Echo Chamber parece continuar a tendência para os filmes “caseiros” da fase final da sua obra. Dificilmente será um grand finale, como poderia ter sido The Dreamers, um filme que é bem o epítome de algumas das preocupações centrais da obra de Bertolucci: a experiência individual em cada grande evento histórico colectivo. Essa escala humana está, no cinema de Bertolucci, indissociável de uma procura por beleza.
Numa época em que se questionam as possibilidades do global e recrudescem nacionalismos e opressões, há algo no cinema de Bertolucci que nos lembra a humanidade que une pessoas em diferentes contextos – mas também a desumanidade de que os homens são capazes.
Sem Comentários