Algumas notas finais sobre o Porto/Post/Doc, festival que decorreu na última semana de Novembro até 2 de Dezembro e cujo palmarés – que premiou The Kamagasaki Cauldron War (A Guerra do Caldeirão de Kamagasaki, 2018) de Leo Sato com o Grande Prémio, Fausto (2018) de Andrea Bussman com uma Menção honrosa e Hamada (2018) de Eloy Domínguez Serén com o prémio para melhor realizador da Competição Internacional entre autores emergentes – pode ser consultado aqui. Nesta segunda parte, um olhar sobre três dos filmes em competição e um filme português com estreia marcada para Janeiro: Bisbee’17 (2017) de Robert Greene, Closing Time (Encurtar o Tempo, 2018) de Nicole Vögele, Putin’s Witnesses (As Testemunhas de Putin, 2018) de Vitaly Mansky e Terra Franca (2018) de Leonor Teles.

Bisbee’17 (2017) de Robert Greene
Certa manhã em Julho de 1917,numa pequena cidade mineira no Arizona situada perto da fronteira com o México, centenas de trabalhadores em greve, na sua maior parte imigrantes, são reunidos como gado pelas forças policiais locais, forçados debaixo de um sol tórrido a marchar quilómetros até à estação de comboio mais próxima, onde são colocados em vagões e depois enviados para o deserto do Novo México, abandonados à sua sorte. Isto não é ficção mas um facto, e que permaneça ofuscado pela história é apenas testamento da brutalidade dessa época subjugada à exploração económica. Não é no entanto esquecido pelos habitantes locais, e uma ferida aberta ainda, por cicatrizar, no seio desta população, pela ligação directa como descendentes ou familiares dos envolvidos: os imigrantes e os trabalhadores forçados à deportação, e por oposição, os homens que juntaram-se às forças policiais para expulsar os grevistas. Não falta mesmo a retórica sobre “os dois lados” terem as suas razões – ironicamente, e tristemente, na altura em que marcava-se o centenário deste acontecimento, em Charlottesville aconteciam quase na mesma altura (Agosto de 2017) os confrontos que culminaram na afirmação presidencial que igualava dois lados. A ligação entre o presente e o passado, nas vidas daquela comunidade, e entre o passado e o presente, pelos paralelos com a situação política actual, é assim um dos trunfos do filme.
Greene explora esta fractura temporal e na comunidade recorrendo a dois “andamentos”: acompanhando os ensaios que a comunidade leva a cabo para assinalar o centenário com uma recriação da marcha, e em momentos encenados, dirigidos especificamente para a câmara, entrevistas seguidas de recriações através de números elaborados (por exemplo, um musical ou um filme de tribunal, ou ambos). É como se Greene, através desta diferença entre pontos de vista, aproveitasse para explorar o espaço entre a ficção e o real, e em particular do poder da recriação para obrigar os participantes a comentar a própria encenação, a questionar se são iguais ao seu papel ficcional – repare-se como Greene deixa correr alguns segundos antes ou no fim de cada entrevista antes de cortar. Greene detém-se em particular sobre duas histórias: uma filha de um ajudante de xerife que condenou ao exílio o próprio irmão, procura juntar os dois depois da morte, contrariando a realidade; um jovem aspirante a actor, filho de emigrantes mexicanos entretanto também deportados, persegue o sonho americano enquanto tenta compreender a sua posição na sociedade americana. A recriação final da marcha é impressionante pelo pesar emocional, e quando no fim alguém diz algo como “esta deve ter sido a maior sessão de terapia de grupo de sempre”, o filme assume-se como um espelho para as personagens descobrirem a sua imagem, como se precisassem de reviver o passado para o compreender.

Closing Time (Encurtar o Tempo, 2018) de Nicole Vögele
Esta é uma obra que pode ser considerada como exemplo do documentário como filme-meditação, uma bela experiência transcendente ancorada em pequenos momentos do quotidiano. É um filme poético, pela forma como se baseia num registo quase fotográfico e sem diálogos em que as imagens criam a sua própria narrativa, e por isso é um filme frágil, de ligações entre as imagens e de ligação com a empatia do espectador pelo que é retratado, e por isso ainda um filme em que tudo está à mostra sem jogos de malabarismo. Demora mesmo algum tempo até aparecerem figuras humanas no filme – as primeiras imagens, da natureza, mar e chuva, preparam o espectador para o embalo -, mas quando estas surgem já estamos cativados e cativos da cadência do filme. Apesar da narrativa do filme ser escassa em termos tradicionais, seguimos algumas histórias através de dois pares de personagens: um jovem casal que gere um salão de jogos, e outro que cuida de um pequeno restaurante. O título do filme refere-se aos momentos que antecedem o fecho destas lojas, aos últimos preparativos e primeiras limpezas para deixar tudo pronto para o dia seguinte, à companhia do último cliente tardio que acaba por se tornar familiar, numa rotina que sublinha a passagem do tempo.
A certa altura do filme, assistimos à história de um cão que vai todos os dias à mesma hora a uma esquina à procura do antigo dono, e alguém diz que o cão, apesar de tentar, vai gradualmente esquecendo-se da existência do dono. Nesta obra sobre o tempo, de pequenas histórias, lugares e transformações que decorrem numa cidade anónima, é como se o filme procurasse mostrar como as histórias destas pessoas também anónimas vão sucedendo-se de forma efémera, e que a presença destas pessoas é gradualmente esquecida pela cidade à medida que outros tomam os lugares dos seus habitantes anteriores – somos todos iguais afinal, de passagem. O filme constrói-se a partir de planos fixos que, ora nos dirigem o olhar para detalhes significativos, ora nos fornecem o espaço para sermos nós a embutir significado e procurar os detalhes em cada enquadramento. Perto do final o filme sai do casulo que foi tecendo: sempre de noite até aí, de repente surge um plano de um nascer do sol, e o filme foge em direção à montanha e ao campo até chegar outra vez às ondas com que começou – é o fechar de um ciclo, e talvez outro tome o seu lugar.

Putin’s Witnesses (As Testemunhas de Putin, 2018) de Vitaly Mansky
Vitaly Mansky tinha-nos deixado um dos melhores filmes das edições anteriores com Under The Sun (Debaixo do Sol, 2015), um documentário sobre o regime norte-coreano, mas também sobre o poder da encenação e da ilusão do audiovisual como meio de apresentar uma imagem fabricada. Nesse filme, Mansky era levado a visitar vários eventos representativos de um próspero estilo de vida norte-coreano, ocasiões que eram orquestradas como uma operação de relações públicas para convencer o resto do mundo – Mansky desfazia a propaganda mostrando-nos imagens dos bastidores, do que acontecia quando os “actores” pensavam que a câmara estava desligada. No caso de Putin’s Witnesses, o realizador é mesmo um dos principais “actores”, já que acompanhou de perto, no seu trabalho para a televisão russa, a transição do poder na Rússia na mudança de século e a ascensão de Vladimir Putin, e esteve mesmo envolvido no processo de construção da figura de Putin, e até da sua humanização perante a opinião pública. Este é por isso também um filme de expiação, ou, pelo menos, de questionamento do seu papel enquanto documentarista. Não surpreende então que as primeiras imagens sejam de Mansky com a sua família em casa numa véspera de ano novo, incrédulos com o espectáculo político que se desenrolava na televisão: Boris Iéltsin anuncia que irá afastar-se para ceder o poder a Putin e este prepara-se para entrar em directo na televisão a poucos minutos da meia-noite. Tudo preparado ao pormenor para ter o maior impacto. Mansky tenta não só perceber o seu papel no meio disso, mas também desmontar o que fica por mostrar nestas encenações políticas: o lado cínico e calculista desta construção.
O filme recorre a um arquivo enorme de imagens registadas por Mansky nessa altura em que acompanhava de perto as figuras mais importantes da política russa, uma colecção historicamente valiosa e que é até desarmante pelo nível de proximidade que lhe era permitido: assistimos a um jantar familiar na casa de Iéltsin, observamos Gorbatchov a confraternizar com velhos amigos e estamos presentes numa sala de hotel onde Putin acompanha com a sua equipa de campanha os primeiros resultados eleitorais, uma equipa de aliados que serão depois afastados e perseguidos mais tarde como Mansky ilustra numa das melhores sequências do filme. Vemos uma visita de Putin a uma antiga professora, uma photo-op aqui desmontada como em Under the Sun, com a exibição dos preparativos à volta desta ocasião e de que Mansky faz parte – na verdade, esta visita acabou por ser incluída num documentário para a televisão como uma peça humanizadora de Putin. Putin’s Witnesses coloca todos em julgamento – não haja dúvidas que não é só o próprio Mansky, como os aliados de Putin que são depois afastados e perseguidos, como os que o colocaram no poder, mesmo como o próprio espectador, cuja distância equivale a apatia cúmplice. No entanto, falta claridade ao filme e Mansky parece perdido nas encruzilhadas que encontra. Porém, o que é mais desconcertante em relação ao filme é o facto de este nunca conseguir chegar perto de Putin, à medida que caminha para um confronto entre os dois: por um lado, Mansky procura nas imagens ou algo que não tenha visto da primeira vez ou alguma réstia de humanidade em Putin mas não há nada; por outro, apenas a necessidade de Putin ter a última palavra e tentar convencer o outro que a razão é sua. É como naquela cena na sede de campanha em 2000: já estão todos ali lado a lado e ao mesmo tempo já estão todos perseguidos e afastados, numa dupla existência – é apenas o princípio e está já lá tudo, pronto a entrar em ebulição.

Terra Franca (2018) de Leonor Teles
O melhor filme que vi no festival, além da retrospectiva de António Reis e Margarida Cordeiro [o monumental Painéis do Porto (1963) e o belíssimo Trás-Os-Montes (1976) numa magnífica cópia restaurada], foi a primeira longa-metragem de Leonor Teles. Não é descabido pensar numa ligação entre esse legado Reis-Cordeiro e este documentário de Leonor Teles pelo embelezamento de um quotidiano mundano e uma ligação poética à natureza, mesmo que a linguagem e o campo de jogo sejam diferentes. Este é um filme sobre um pescador, que na verdade é sobre uma família, que na verdade é sobre uma comunidade, mas também sobre muito mais, sobre todos nós. Lia antes de ver o filme o que o Luís Mendonça escreveu sobre Terra Franca aquando da sua exibição no Doclisboa, que era “um filme inteiramente ‘deste mundo’”, e no fim pensava como essa era uma descrição e um elogio perfeito: este é um filme que torna este mundo como algo d’outro mundo, e esse é o seu maior feito, transformar o vulgar em sublime, os “tempos mortos” de outros em tempos vivos para nós. Começamos com Albertino, sereno e solitário no comando do seu barco, saindo de casa ainda de madrugada para dedicar-se ao rio, onde se sente confortável na tarefa que repete todos os dias, filmado aqui como um herói que não desiste. Depois conhecemos a mulher de Albertino enquanto este espera que ela abra o pequeno café que gere, numa outra rotina elevada a um momento de estoicidade. Depois, a família, as conversas à volta da mesa com as filhas e a neta, e depois ainda a vida naquele bairro de pescadores, o convívio nos cafés com os vizinhos, os jogos de futebol na televisão, os passeios com o cão, a mudança das estações do ano e ao mesmo tempo o mundo que pouco muda.
A naturalidade com que são apresentados estes movimentos de repetição, que marcam a passagem do tempo como um metrónomo, habituam-nos aos diferentes elementos do quotidiano desta família. As ténues linhas narrativas que aparecem – a perda da licença de pesca de Albertino a certo ponto, um casamento que se avizinha – são menos importantes do que expandir uma ideia de continuidade e união, de uma efemeridade que faz parte da vida. Os pequenos momentos-quadro que se sucedem mostram, através dos planos e composições pictoriais, reminiscentes de uma melancolia solene partilhada por Edward Hopper e Yasujirô Ozu, um olhar de Leonor Teles que revela uma enorme sensibilidade na preocupação de criar retratos plenos de empatia e respeito pelas suas personagens, em ceder espaço à voz própria destas pessoas, e até com algum humor, na rábula do aspirador que pontua o filme, e também carinho, pela forma como acompanha Albertino enquanto este tenta preencher os seus dias enquanto espera poder voltar ao rio, muitas vezes solitário no enquadramento. A fotografia do filme é magnífica, em particular nos momentos em que regista Albertino isolado no seu mundo, quase nas margens, tal como o trabalho de edição que, na tal repetição, constrói um sentido de tempo próprio e fiel a este mundo, e o uso da música é notável na forma como preenche momentos de silêncio com um novo subtexto – fica na memória um “quadro” em que vemos um café com as janelas embaciadas pelo calor e um cão à porta, e a música segura esse momento no tempo. Para além destes elementos, fica um filme de coração aberto, cheio de esperança e um olhar de igual para igual – à medida que avança o filme, parece que a câmara já faz parte daquela família, ou melhor, já fazemos, somos mais um – e não se pode pedir muito mais.