Uma das características mais bonitas de se observar no cinema de Alfonso Cuarón é a relação simbólica estabelecida entre as personagens e o mar, particularmente nos últimos momentos dos seus filmes. Era à beira-mar, de olhos fixos no horizonte, que os amantes separados de Great Expectations (Grandes Esperanças, 1998) se reconciliavam; era em alto-mar, numa canoa que se aventurava de maneira incerta pela neblina, que as figuras cruciais de Children of Men (Os Filhos do Homem, 2006) avistavam o portentoso navio de resgate; era do mar, no que era o fim de uma angustiante jornada de regresso à Terra, que emergia a astronauta perseverante de Gravity (Gravidade, 2013); e era no mar da praia paradisíaca de Y Tu Mamán También (E a Tua Mãe Também, 2001) que nos despedíamos da bela Luisa, com um mergulho em êxtase acompanhado da frase em off “La vida es como la espuma, por eso hay que darse como el mar.” É evidente a visão positiva que o cineasta acarreta sobre este corpo de água, já que é nele que os seus heróis encontram valores como o perdão, a esperança, a liberdade e a auto-afirmação. Ora, o clímax do seu mais recente filme, Roma (2018), também está ocupado pela presença marítima que, embora seja aqui vista pela primeira vez na obra do realizador como uma entidade violenta e de perigo extremo, não deixa de salientar, não apenas um, mas todos os valores referidos anteriormente, pelo gesto final da protagonista. Parto deste pormenor autoral para dizer que, se Roma é o filme mais insólito de Cuarón, não deixa por isso (ou talvez por isso) de ser o culminar do seu cinema até aqui.
Deixemos o mar para partir para a terra, onde não é deixada de transparecer a importância medular do elemento aquático. O primeiro plano de Roma consiste num plongée apontado a um pátio de formas adamantinas, pertencente à casa da família para a qual trabalha Cleo (Yalitza Aparicio), uma empregada doméstica de raízes mixtecas. Neste enquadramento, filmado num preto-e-branco límpido que sugere menos a nostalgia do que um olhar em reavaliação, a textura é predominada pela água a percorrer o pavimento num ritmo sereno e em movimentos ondulantes, uma metáfora para a evocação de um fluxo de memórias passageiras decorridas na transitoriedade de uma época distante. É o plano que virá à cabeça no decorrer do clímax, e entre um e outro, da água ensaboada à espuma marinha, Cuarón abrange em simultâneo o proletariado e a burguesia, o indivíduo e a sociedade, os sentimentos internos e o contexto político que os circunda (a Guerra Suja do México, cuja anarquia e devastação reencenadas assemelham-se às ruas distópicas de Children of Men), todos com as suas marcas em busca de regeneração, aceitação e resiliência.
É dos aspectos mais interessantes que o filme expressa, o desejo do cineasta em abolir barreiras étnicas e sociais que estremam hierarquicamente a comunidade mexicana, a começar pelos paralelos traçados entre a história de Cleo e da sua patroa, ambas deixadas ao abandono pelo egocentrismo dos respectivos parceiros e em busca da força matriarcal asseveradora da independência, entrelaçando a gravidez indesejada da primeira com a vulnerabilidade emocional e desadequação da segunda ao domínio doméstico (toda a caracterização construída a partir do desajuste da patroa com o Ford Galaxy do marido, superado com a aquisição de um novo automóvel que vem representar a autonomia feminina e a instituição da nova união familiar). É, portanto, a faceta adulta do muito dickensiano A Little Princess (A Princesinha, 1995) onde, também sob a influência trágica de uma guerra, a divisão socio-económica de classes era observada pelo doce ponto-de-vista da juventude.
É inevitável não falar do extraordinário trabalho de som de Roma e no grau vigorosamente imersivo com que foi planeado para salas com sistema 7.1 (caso do Monumental), com as várias pistas da sonoplastia a trabalharem a distância, o espaço, a perspectiva, a textura, enfim, toda a dimensão acústica dos elementos cénicos envolvidos em paisagens sonoras extremamente realistas com as quais o espectador se sente sitiado e no interior da acção. Visualmente, se o filme é notável pelo uso destro do plano-sequência (para além do preto-e-branco já referido), não deixa infelizmente de ficar prejudicado pelo recurso esporádico a panorâmicas de quase 360º (percorrendo integralmente as divisões da casa com cada pedaço de mobília devidamente registado) que distanciam o espectador emocionalmente da experiência em prol de um virtuosismo técnico supérfluo. É certo que é por elas que Cuarón, de forma sensorial e minuciosa, tenta preservar detalhadamente a identidade do meio da sua infância, mas não deixam de afectar a coesão do produto final como um todo. Porque se há dúvidas da delicadeza e humanismo com que Cuarón é capaz de olhar para as suas personagens, basta observar a cena do parto com Cleo em primeiro plano, enquanto a criança está no de fundo ligeiramente desfocada e acompanhada pelos médicos a efectuarem-lhe as manobras de reanimação. Cuarón não é um manipulador sádico que veria as suas personagens como animais feridos, obedecendo a uma qualquer necessidade perversa em colocar a câmara rente ao bebé, em imagens cruas e esteticamente desleixadas, entrecortadas com as da mãe a gritar e a espernear-se em nome de uma noção imaginada de pseudo-naturalismo. Ao invés, é dado ao espectador este espaço compartilhado pela mãe ao perto e a criança ao longe, onde é possível apenas imaginar os sentimentos que assolam Cleo enquanto observa impotentemente a precisão autómata com que os médicos exercem o seu ofício. A reacção obtida é emocionalmente forte, mas não a de choque gratuito, antes um pesar sincero que incrementa a nossa empatia para com a personagem pela projecção subjectiva do que supomos ser as suas emoções e pensamentos.
Associo este uso da profundidade de campo para terminar com a partilha da experiência do visionamento em que compareci, referindo aquele que me parece ser o aspecto mais louvável do filme: o de ser visualmente democrático. Estava a ter as mesmas reacções que um colega sentado ao meu lado, quando surge um plano fixo que regista o momento decorrido numa sala de cinema, onde o primeiro plano é ocupado por Cleo e o namorado a trocarem carícias, à medida que ela lhe insinua que está grávida. Neste instante, enquanto estou concentrado nos gestos deles, o meu colega começa-se a rir. Em plano de fundo o ecrã da sala passava um momento burlesco de La grande vadrouille (A Grande Paródia, 1966), uma comédia decorrida na Segunda Guerra Mundial. Poderia ter sido um caso único, mas momentos depois uma nova cena apresenta-se-nos com Cleo a descer as escadas de um edifício gasto, sem um corrimão que a acompanhe. Enquanto eu pensava, com um certo nervosismo, na possibilidade da queda da protagonista, o meu colega voltou a ter uma reacção semelhante. Na parte inferior do enquadramento dois patos estavam a acasalar. É então este um dos grandes méritos do filme: a possibilidade de permitir ao espectador o tipo de experiência que pretende levar de certas cenas, onde um conjunto de reacções díspares podem-lhe ser provocadas através da coabitação de diferentes elementos visualmente activos no mesmo enquadramento (esta democracia do espectador é também coadjuvada pela ausência de uma banda sonora não diegética, não condicionando o espectador a uma série de emoções pré-estabelecidas), sem com isso deixar de perder o essencial da narrativa. É por isso que, numa época onde as imagens obedecem a um qualquer regime autocraticamente emotivo e informativo de quem as impõe, Roma surge com a mesma frescura da brisa marítima que percorre a obra do seu cineasta. E por nunca deixar de ser uma ode à doméstica da sua infância podemos dizer que, seja por lágrimas ou sorrisos, com os olhos em primeiro ou em último plano, todos os caminhos vão dar à Roma de Cuarón.