Um filme que entra estranhamente na cabeça e no corpo de quem o vê. É preciso algum tempo para o fazer circular dentro e fora de nós, como um órgão vibrante, sub-reptício, a fazer girar a roda de emoções em volumes variáveis. Fica a certeza de que uma vez visto não se esquece. Há nele uma força magnética, dínamo perfeito onde corre uma energia alternada e única. Godard constrói (e destrói) algumas ideias-tema que atravessam zonas que lhe são recorrentes ao percorrer as muitas mises en abymes do cinema. Vai à matéria que o inaugurou, à película (que se toca, manipula, e arde também), vai à mão, aos 5 dedos, (o nº 5 releva-se), e mais às suas eternas e metonímicas razões. É elevado e simples o mote que enuncia: “Penser avec ses mains”. E as imagens vêm, saltam, sucedem-se, alteradas, reformatadas, saturadas, veladas, vêm de todos os lados, um fértil viveiro da cultura de toda a ordem e de todo o tempo. Mais os sons que circulam, ou melhor, que vivem no filme, vozes off, a plasticidade sonora é outro corpo gigante em combustão. Há os filmes clássicos evocativos, e os de agora, alguns dos seus próprios filmes, um arquivo significante duma organização imaginária que clica em nós, inquietos à procura da memória daquelas imagens, em que ponto tocam o alarme racional-emocional. E aí está Godard no seu terrível esplendor a marcar pontos, zonas de turbulência, a fazer disparar um gráfico indomável, a conectar, pluralizar, a fazer a montagem, a collage, assemblage, a construir (destruir), as suas laboriosas teias, como já tinha feito no Histoire(s).
O filme corre, “mixa”-se entre forma e conteúdo, com síncopes, zonas noir, polaridades – belo-horror, morte-paixão, guerra-poesia, amor-dor, lei-segredo… Pinturas, música, Youtube, poesia, TV, Daesh, execuções, explosões, guerra, a sobrevivência, o Ocidente, o Oriente, tudo vai entrando no caldeirão desta poção-filme, pouco livro, pouco filme, (e as duas coisas possivelmente, ou outra coisa ainda), onde “O saber vê”. Um filme monstro, porque lhe cabe tanta coisa: fantasma, movediço, organizado segundo uma lógica à Godard, e sempre nova. O fragmento estala, rebenta com a força que anima as imagens em luta, coloca o cinema a falar, a rebentar pelas costuras, a sonhar ser Rei, a não sonhar mais ser Fausto, a entrar no espelho de Orfeu, a estar neste e noutros mundos, a mostrar a desesperança. Um mundo letal, um filme mortal. Voilà, arrepia mesmo.
Vêm vozes, a de Godard funda, cavernosa, no limite audível, segreda. Capítulos, como num livro, organizam-se, instáveis e sem medida de conteúdo: Remakes; Les Soirées de Saint-Pétersbourg; Ces fleurs entre les rails, dans le vent confus des voyages; L’esprit des lois; La région centrale, e L’Arabie heureuse.
É um filme que se ouve muito, que grita para dentro, é frio e analítico, é berrante e quente, às vezes em chamas. Godard, explora, reflecte, intui. O mundo árabe toma um lugar importante, muito analítico, especulativo, sem nunca fechar, définir (finir), em nenhuma definição, para não compelir a qualquer percurso obrigatório. Apesar do tom profético e lapidar, Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018) abre-se numa corrente, torrente de coisas mortas e vivas. Perfeitamente expandido leva-nos às questões centrais, à guerra, às leis, ao mundo árabe, ao passado, às possibilidades, ao homem, máquina de morte (e vida), à história, juntam-se temporalidades anacrónicas, vê-se uma história de décadas a derrapar para o presente. Filme possuído a mostrar, a demonstrar, a expressão visível da imagem viva que vibra, que se faz activamente pelo efeito que é figura de marca, ostensivamente exuberante, e por fim, perturbadora.
Conectam-se nomes nesta abundante ordem de referências, de Brecht a Rimbaud de Scott Walker a Cossery, Miéville e Borzage, Hitchcock, Lang, Renoir, Rosselini, Franju, Eisenstein, Ford, Pasolini, Ray, Vidor, Cocteau, Deren, Ophuls… é com Ophuls, e Le plaisir (O Prazer, 1952), que Godard remata o filme com a dança e a queda do homem com máscara: ça tourne, ça tourne – e o malaise volta a disparar.
Desperta ainda (fora do filme) o poeta Mallarmé na vanguarda dos novos sentidos da linguagem que desfilam no Le livre d’image, na defesa da fala simultânea e do espaço de dimensões múltiplas, onde se unem e contrariam escritas distintas, onde nenhuma é irrepetível: “o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”, sintetiza Barthes. E, outra vez, Mallarmé, “Le monde est fait pour aboutir à un beau livre”/“O mundo é feito para acabar num belo livro”. Belo? É belo o Le livre d’image? Atroz e envolvente, pegajoso, estilhaçado, lapidar. É belo sim.
“O poema é a única bomba”, disse, ainda, Mallarmé.