Contrariando a prática comum de não comunicar dados sobre a performance do seu catálogo exclusivo, a Netflix anunciou que, no final da primeira semana de estreia, mais de quarenta e cinco milhões de contas tinham visualizado Bird Box (Às Cegas, 2018) de Susanne Bier. Não se trata de uma derrota da gigante do serviço de streaming, pois esta muito selectivamente adianta números que não permite que sejam avaliados por uma entidade independente para a realização de análises comparativas. Revela, sim, que o operador se vai adaptando às condições do restante mercado e o público se posiciona perante as especificidades do serviço que lhe é proposto, enquanto proliferam avisos sobre o apocalipse que se avizinha.
Porém, quem carpe mágoas sobre a ditadura Netflix e a morte das salas de cinema, poderia também discutir o trabalho preguiçoso dos distribuidores nacionais, incluindo o facto recente de terem prescindido do lançamento em sala do melhor filme de 2018 para os Cahiers du Cinéma, o brilhante Les garçons sauvages (2017) de Bertrand Mandico, a favor da sua estreia na Filmin, plataforma de vídeo on demand, também conhecida como Netflix do cinema de autor. Outro sinal do ajustamento da Netflix é o facto de Bird Box, juntamente com Roma (2018) de Alfonso Cuarón e The Ballad of Buster Scruggs (2018) dos irmãos Coen, terem tido um lançamento limitado em sala para poderem aceder aos grandes prémios da indústria de cinema norte-americana. A estratégia tem resultados visíveis: Roma, após receber o Leão de Ouro no Festival de Veneza, que aproveitou os deserdados de Cannes por não terem autorizada a exibição em sala, foi contemplado com o Globo de Ouro para Melhor Realizador. No entanto, apesar das campanhas de promoção da Netflix e de ser protagonizado por Sandra Bullock, Bird Box está longe de acompanhar as condições de prestígio que os outros dois títulos reúnem.
Susanne Bier repesca um dispositivo que poderíamos considerar clássico, dada a profusão de títulos que o utilizam, sem mostrar destreza para gerir a tensão que o próprio dispositivo desperta.
Não faltam distinções à realizadora Susanne Bier, tendo recebido o Óscar para o Melhor Filme Estrangeiro com Hævnen (Num Mundo Melhor, 2010) e realizado Elskerdig for evigt (Open Hearts, 2002), um dos últimos filmes do quase esquecido Manifesto Dogma 95 lançado por Thomas Vinterberg e Lars von Trier, no entanto, a sua obra não é reconhecível ou amada/odiada como as de Alfonso Cuarón e de Ethan e Joel Coen. Por sua vez, Bird Box enquadra-se mais facilmente numa certa tradição Netflix. Primeiro, porque faz parte dos géneros fantástico, terror e ficção científica, que são uma das principais marcas do catálogo, nomeadamente os óptimos filmes e a série televisiva que Mike Flanagan dirigiu ou a celebérrima Stranger Things (2016– ) criada pelos irmãos Ross e Matt Duffer, cuja terceira temporada tem a estreia marcada para este ano. Segundo, porque é claramente direccionada para o segmento etário alvo do serviço, o apetecível público entre os quinze e os trinta e cinco anos, que tanto acomoda os adolescentes em férias escolares durante a semana de estreia, como os eternamente jovens e os thirtysomething que facilmente se identificam com produtos populares entre as faixas etárias mais jovens, algo que já levou um bando de malvados a cunhar o serviço como “Teenflix”. Os filmes de Cuarón e dos Coen vão além desse segmento, antes procurando o prestigio pela adesão de um público especializado. Também Stranger Things é um caso mais complexo no que toca ao público-alvo, criando nas camadas mais jovens o fascínio pelos subúrbios misteriosos atravessados por miúdos com cabelos cortados à tijela, mas que igualmente apela a um público na casa dos quarenta e cinquenta anos que consomem avidamente a memorabilia relativa à década de 1980, que a série evoca.
Bird Box começa pelo fim, com Malorie (Sandra Bullock) e duas crianças (Julian Edwards e Vivien Lyra Blair) a percorrerem um rio, à procura de um abrigo seguro. Por meio de flashbacks, percebemos que as personagens usam vendas nos olhos porque ao olharem para umas criaturas misteriosas ficam petrificados e são conduzidas a situações de suicídio. As criaturas nunca são mostradas ao espectador, pelo que este é colocado na mesma posição das personagens. Como os canários que eram soltos nas minas de carvão para detectar uma concentração mortífera de metano e dióxido de carbono, também a agitação dos pássaros, na gaiola a que o título alude, é a ferramenta para indicar a aproximação das criaturas às personagens desprovidas da visão. Não só existem na tradição do cinema de terror – What Ever Happened to Baby Jane? (Que Teria Acontecido a Baby Jane?, 1962) de Robert Aldrich ou See No Evil (1971) de Richard Fleischer – como na produção recente têm sido exploradas situações em que as personagens são privadas das capacidades sensoriais ou motoras – Don’t Breathe (Nem Respires, 2016) de Fede Alvarez, Hush (2016) de Mike Flanagan, parte do catálogo exclusivo da Netflix, ou A Quiet Place (Um Lugar Silencioso, 2018) de John Krasinski. Vem igualmente à memória uma das mais belas cenas de terror das últimas décadas, filmada com a personagem principal às escuras: Clarice (Jodie Foster) a caçar e a ser caçada pelo dispositivo de visão nocturna de Buffalo Bill (Ted Levine) em The Silence of the Lambs (O Silêncio dos Inocentes, 1991) de Jonathan Demme.
Susanne Bier repesca um dispositivo que poderíamos considerar clássico, dada a profusão de títulos que o utilizam, sem mostrar destreza para gerir a tensão que o próprio dispositivo desperta. Uma das principais causas para a frustrante quebra da tensão é o uso repetitivo do flashback, que se tornou num dos mais banais recursos narrativos na produção televisiva. Episódios inteiros de séries de televisão são construídos a partir deste recurso, permitindo engordar temporadas muitas vezes até à exaustão, o que poderá levar o espectador a questionar se Bird Box não é um luxuoso episódio piloto de uma série que nunca será realizada.
Mostrar ou não as criaturas? Bird Box opta pelo poder da sugestão, que Val Lewton bem explorou nos filmes que produziu para a RKO, não dando um corpo às ameaças. Anos depois de ter feito parte dessa unidade de produção, Jacques Tourneur viveu um dilema semelhante, em Night of the Demon (A Noite do Demónio, 1957), quando o produtor forçou a inserção da figura do demónio à revelia do realizador e do argumentista. Para Bird Box foi escrita e filmada uma cena em que o espectador vê uma criatura a confrontar a personagem de Sandra Bullock, porém, o incontrolável riso da actriz ao visualizá-la, obrigou a que a cena fosse eliminada na montagem final. Visto que as criaturas corporizam os mais profundos medos das personagens, Sandra Bullock veria um grande bebé esverdeado, o que confirma o reposicionamento do terror no coração da família – algo que tem filiação na produção contemporânea, como o caso do excelente The Babadook (2014) de Jennifer Kent, mas que também remete para o cinema de Larry Cohen que, na década de 1970, lançou um conjunto de títulos capitais para a temática da maternidade/paternidade: It’s Alive (O Monstro Está Vivo!, 1974) e It Lives Again (O Monstro volta a Nascer, 1978). Há demasiadas semelhanças entre o monstro que fustiga Bullock e os gigantescos bebés-monstros de Cohen, cujo corpo de trabalho, na época, foi justamente valorizado pelo influente crítico Robin Wood. A este respeito, Wood refere: “O cinema de terror insiste na impossibilidade (não apenas no facto de ser indesejável) de fundar a sociedade sobre a monogamia e a família, bem como sobre as suas inerentes características repressivas”.
No universo actualizado de Bird Box, Sandra Bullock é uma mãe solteira, asfixiada pelos fantasmas da maternidade e incapaz de afectivamente se ligar às duas crianças que tem de cuidar. Até à chegada ao abrigo, as crianças são tratadas por designações genéricas: “boy” ou “girl”. Enquanto afirmação do amadurecimento das funções da mãe, a aceitação consciente das suas responsabilidades, é no abrigo que as crianças recebem finalmente os seus nomes, tornando-as indivíduos plenos diferentes dos outros. Como um dos pais dos bebés-monstros de It Lives Again justifica, o nome é a primeira necessidade de uma criança, ou seja o primeiro passo para resgatar o monstro para a humanidade.
Sendo a descida pelo rio uma alegoria da maternidade, não deixa de ser uma visão conservadora, como alguém notou, e suportada por uma inoperante interpretação da realidade. O pedido feito às crianças para que, de olhos vendados, corram sem parar até chegarem ao destino, reafirma a condição da mãe guerreira e comprometida que pede aos filhos para lutarem incansavelmente para alcançar os fins, confiando nela. Numa época em que a maternidade e a paternidade se tornam mais exigentes, em que os pais aumentam o tempo, a energia e o dinheiro para criarem os filhos, esta é a realidade que Bird Box aceita como normalidade, sem a submeter a um tratamento crítico. Inesperadamente, é uma bird box challenge de gosto duvidoso, nascida nas redes sociais, em que os participantes de olhos vendados desempenham tarefas quotidianas, que grosseiramente vem questionar a validade da proposta. Aqui, a segurança do abrigo nunca pareceu tão distante.