Revisitamos o mês passado para escrever cápsulas sobre alguns dos filmes que tinham passado despercebidos, como Dogman (2018) de Matteo Garrone, L’amant double (O Amante Duplo, 2017) de François Ozon e Under the Silver Lake (O Mistério de Silver Lake, 2018) de David Robert Mitchell. Além disso, há ainda lugar para um novo olhar sobre um dos filmes que foi alvo de atenção por altura da estreia em Dezembro, Girl (2018) de Lukas Dhont. Ricardo Gross, Luís Mendonça, Bernardo Vaz de Castro e João Araújo dizem de sua justiça.
Por esta altura não faz sentido ter preocupações com spoilers, e deixarei às claras a razão de Dogman não ser para mim o filme que podia ter sido. O filme é Marcello, Marcello é o “dogman” (cuidador de cães), e é no protagonista que reside um problema de coerência que toma conta do filme. As suas acções não podem obedecer a um critério que entra em conflito com o que a personagem mostra de si mesma. Como é que Marcello pode decidir ficar com as culpas de um assalto, que porá em risco o seu negócio e que o afastará dos cães e da filha, a outra razão maior da sua alegria? Quando sai da prisão, ele vai procurar resgatar o dinheiro devido pela parte que lhe cabe de cumplicidade e silêncio. Mas não ficara claro que isto fosse o mais importante. Mais tarde, privado desse dinheiro, irá vingar-se do homem que sobre ele exercia uma coacção com que Marcello parecia ter aprendido a viver.
Quando Marcello mata Simoncino, tomado por uma coragem que só pode ter origem no tempo que durou o cárcere (e que o filme opta por ocultar do espectador), vai depois procurar chamar a atenção dos vizinhos para o crime, como forma de recuperar uma estima que o roubo deitara por terra. Marcello acabará sozinho, com um cadáver aos pés e um cão em redor. É um final patético que faz justiça à figura, pese embora o caminho de episódios incoerentes que conduziram até ali. Ficamos com uma personagem perdida, que seguiu um destino que mais parece corresponder aos caprichos do realizador, e que uma outra preocupação com as suas razões ajudariam à compreensão e à empatia do espectador. Assim, o filme gera uma sucessão de eventos, de situações que conduzem a uma reacção emocional pavloviana. Um sentido para a humanidade de Marcello não é o que impera em Dogman. O filme dá-se aos bocados e trata-nos como cães. Vale pelas partes boas.
Ricardo Gross
O cinema de Ozon está cada vez mais lúdico, “gozão”, perverso e, a espaços, pervertido. O De Palma francês? Eis, enfim, um verdadeiro “hitchcocko-palmaniano”? Apetece caracterizá-lo assim, se tivermos em mente não só este seu subestimadíssimo L’amant double como o igualmente subapreciado (espécie de guilty pleasure) Une nouvelle amie (Uma Nova Amiga, 2014) ou, indo bem mais atrás, Swimming Pool (2003). O cruzamento com o autor de Body Double (Testemunha de um Crime, 1984), Dressed to Kill (Vestida para Matar, 1980) ou Raising Cain (Em Nome de Caim, 1992) é óbvio desde logo porque estes filmes – acima de tudo este que teve estreia discreta nas salas nacionais – se baseiam num “jogo de identidades”, estilhaçando as categorias estáveis da mente sobre o que é real e o que é imaginado, o que é reflectido e o que é reflexo.
O dispositivo psicanalítico é trabalhado com as cartas todas em cima da mesa, com o jogo à vista, desde os primeiros minutos. Entramos no orifício vaginal que é encadeado, pela montagem, num “big swallow”, com a boca da protagonista (magnífica e corajosa interpretação de Marine Vacth). Tudo está neste encadeamento dado, com um sentido de humor assaz provocador, pela montagem. O filme – o seu “dilema imanente” – faz-se entre a boca que beija, que seduz e que… baise e o útero que se revira tomado por uma dor insuportável. Entre a boca e o útero está a mente. Ela é trabalhada por um enigmático psicanalista (outra interpretação notável, a de Jérémie Renier) que afunda a protagonista na descoberta da sua (dela e dele) verdadeira identidade. L’amant double é um sensual – na realidade, hiper-sexualizado – jogo de espelhos em que a mente e o corpo de Vacth são transformados numa arena para inesgotáveis metáforas visuais sobre os limites da psique – com um momento de body horror, que se tornará quiçá de culto, digno de um The Brood (A Ninhada, 1979) de David Cronenberg. Parece, de facto, que o “thriller de palmaniano” tem futuro.
Luís Mendonça
Talvez seja uma irritação crescente ou mesmo a consolidação de um dogma pessoal face a determinado cinema contemporâneo, mas a sua crescente violência impele-me sistematicamente a reiterar o tema. O problema não é a violência em si, mas antes a banalidade como essa violência é exposta, fruto da disseminação de uma cultura afundada em imagens fantásticas e catastrofistas. Quanto mais a lógica sensacionalista dos media impera, mais determinada corrente cinematográfica se julga no dever de produzir imagens “impactantes”. Este fenómeno é hoje uma competição declarada entre produtores de imagens na tentativa de produzir a derradeira imagem, aquela que será soberana e por isso pateticamente superior sobre todas as outras. Esta procura maquiavélica ignora os meios, porque drenada pelos fins serve-se dos sujeitos e da sua condição para os explorar através do denominador mínimo de ética possível.
Sobretudo em situações vulneráveis como seria de esperar de um processo de transição de sexo, este objecto trasveste-se também ele de intenções superiores para dar livre exercício ao voyeurismo mais néscio a que assisti nos últimos anos. Tal como quando a televisão expõem as vítimas, o interesse não está em redimir a sua história, mas antes em capitaliza-la, torná-la rentável e consumível para um público aparentemente desejoso de horror. Este filme é um autêntico inventário, onde tudo se vê, porque a dor da existência do seu personagem deve ser a dor do espectador. Somos assim confrontados com unhas que se partem, com quedas no chão fortemente sonorizadas, com rastos de sangue que emergem de fitas que se puxam do pénis que se quer esconder, até que por fim assistimos ao desespero final que conduz ao corte a frio desse mesmo pénis. Para quê? Pelo simples prazer do “choque”, de um choque também ele ausente das virtudes sonhadas.
Bernardo Vaz de Castro
As expectativas eram altas para o realizador de It Follows (Vai Seguir-te, 2014), um dos melhores filmes de terror da década. Depois do sucesso desse filme é fácil imaginar que estamos longe do baixo orçamento e olhar ingénuo de The Myth of the American Sleepover (2010), um drama agridoce sobre o abandono da adolescência, como se agora fosse preciso justificar o maior investimento. Mas a verdade é parece que Mitchell não sabe bem o que fazer com os recursos e a liberdade à sua disposição, resultando num filme que, por vezes próximo de um neo noir misterioso, por vezes comédia absurda, é desequilibrado na sua falta de foco. O filme segue Sam, um crónico jovem underachiver (Andrew Garfield num registo positivamente surpreendente), desempregado e sem dinheiro para pagar a renda ou o carro e pouco preocupado com isso, um solitário que passa a maior parte do tempo fechado no seu apartamento a fantasiar com encontrar um propósito. Certo dia, ao espiar a piscina do condomínio a partir da sua varanda [evocação de Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954)], enamora-se de uma atractiva loira com quem passa um dia e que depois desaparece sem deixar rasto, em paralelo com a descoberta de uma curiosa zine numa loja, que ele julga conter as respostas para um mistério que ainda não conhece. Sam parte para uma série de aventuras por uma Los Angeles afectada por memórias de outros tempos, passando por monumentos cinéfilos como o observatório Griffith ou as colinas de Hollywood.
Uma amálgama de referências cinematográficas e derivação de obras sobre personagens sem rumo, como The Big Lebowski (O Grande Lebowski, 1998) ou Inherent Vice (Vício Intrínseco, 2014), o filme não tem uma voz própria, apesar de, na sua sucessão bizarra de sequências desconexas de fantasias lascivas e paranóias alucinadas, acabar por se tornar de certa forma fascinante pela excentricidade a que se atreve. É pois um filme frustrante, porque é “preguiçoso” na falta de uma perspectiva consistente, mas ao mesmo tempo, repleto de ideias interessantes, especialmente na parte visual do filme (por oposição ao argumento ou desenvolvimento de personagens). O maior problema do filme é precisamente continuar a fazer o mesmo que crítica e denuncia, como os velhos hábitos de Hollywood e o olhar masculino obcecado com imagens de jovens actrizes, ou o deslumbramento por uma cultura pop descartável e ideais vápidos de beleza e sucesso – são ideias ao mesmo tempo desmontadas e repetidas pelo filme. Se pensarmos na história do desaparecimento de uma figura sem rasto, a alusão a Vertigo (1958)é a mais óbvia (até pela banda-sonora e uma sequência de perseguição à distância), mas aqui o maior paralelo é mesmo com Blowup (História de Um Fotógrafo, 1966) de Michelangelo Antonioni, com a procura por um corpo desaparecido, por respostas, a encontrar paralelo na crítica a um mundo vazio de significado, obcecado com materialismo e desgostoso com o estado das coisas… só que estes anos todos depois, Under the Silver Lake acrescenta muito pouco a não ser as aventuras risíveis de um white privileged man – o que é uma pena, porque Mitchell já mostrou antes que consegue, a partir de referências a outros filmes e códigos cinematográficos, construir algo entusiasmante.
João Araújo