A propósito da estreia do mais recente filme de M. Night Shyamalan, vale a pena recuperar o delicioso texto do walshiano Luís Mendonça sobre The Conjuring 2 (The Conjuring 2 – A Evocação, 2016). Escreveu o Luís: “Vamos lá ver: o que é que se pede de um filme? Diriam muitos cinéfilos: que conte uma boa história, que tenha boas interpretações, que saiba coser – e cozer – os vários momentos da narrativa. Dizem esses muitos cinéfilos e dizem muito bem. Mas não, isso não é tudo. É preciso algo mais? Sim (…). Porque o que verdadeiramente deve relevar num filme é o seu cinema.” Este “cinema”, como o Luís enumera (e muito bem), envolve “soluções de realização, iluminação ou montagem, que não se deixam tornar cativas da tendência novelizadora do cinema contemporâneo”, em suma, a exploração e possível expansão do vocabulário cinematográfico de forma original a partir do conteúdo sobre o qual um filme trabalha, indo muito além daquilo a que Hitchcock designava pejorativamente como “fotografias de pessoas a falar”. Agora, há várias razões para se gostar de um filme, e o cinéfilo que parte para uma sala com critérios de qualidade pré-definidos, ao invés de deixar a obra falar por si e revelar os seus méritos, corre o risco de perder por mero capricho valores cinematográficos que desconhecia ou, caso acabe por ficar rendido à obra, de ter de admitir a incoerência do seu discurso daí por diante. Mas que não se menospreze isto, a relevância daquilo que se pode denominar de maneira sucinta como as “ideias de cinema” que habitam num filme. E se são elas que principalmente contam, então Glass (2019) é um manual cheio delas.
Trata-se do derradeiro filme da trilogia Eastrail 177, a qual havia começado com o sussurrado Unbreakable (O Protegido, 2000), onde um segurança hidrofóbico, David Dunn (Bruce Willis, subtilíssimo), sob a influência de Mr. Glass (Samuel L. Jackson, recordável pela extrema fragilidade da sua estrutura óssea e a sua obsessão com bandas-desenhadas) descobria a sua força e invulnerabilidade excepcionais, assim como uma aptidão extra-sensorial para ver pelo toque crimes cometidos. Nesse filme (um dos melhores do cineasta), era um trabalho de câmara a mover-se alongadamente numa atmosfera sombria e chuvosa que prevalecia. À sua quietude, seguiu-se 16 anos depois o verborreico Split (Fragmentado, 2016), onde a câmara largava a sua inventividade para se submeter à figura desdobrada em 24 personalidades de Kevin Wendell Crumb (James McAvoy), sendo a mais relevante “a Besta”, um sociopata antropofágico com força, agilidade e capacidades locomotoras sobre-humanas. Em Glass, todos são reunidos num hospital psiquiátrico sob a tutela de uma médica que lhes tenta persuadir de que a noção que têm das suas identidades extraordinárias provém de distúrbios mentais. É sobre este enredo auspicioso que Shyamalan desenvolve a sua expressão cinematográfica de maneira inteligente e diversificada, com um estilo e ritmo próprios que não pertencem nem à languidez atmosférica de Unbreakable nem à extravagância esquizofrénica de Split.
O destaque dado a Glass desde o título não é aleatório: ele é um profeta (…), os escritos religiosos em que acredita estão registados em histórias aos quadradinhos e, como todos os profetas, a sua grande tarefa é a de espalhar uma crença.
Por onde começar? Kevin, sob a personalidade de uma criança, a falar e a andar de patins ao redor de quatro cheerleaders aprisionadas, à medida que sucessivas panorâmicas de 360º o acompanham numa única cena sem cortes, com a câmara ao nível dos olhos das raparigas, transmitindo a claustrofobia, a impressão de encurralamento e a indefensabilidade sentida por elas; depois, na primeira batalha entre David e Kevin, o plano subjectivo invertido quando este último está agarrado ao tecto com a cabeça para baixo, assim como a steadycam presa ao corpo do primeiro [num uso semelhante ao que Aronofsky dava em Requiem for a Dream (A Vida não é um Sonho, 2000)] que, ao balancear, simultaneamente imerge o espectador na luta e fornece a sensação de confusão sentida por David; a cena portadora de uma peculiar credibilidade no quarto do hospital de Kevin, onde a câmara acompanha de forma contínua algumas das suas múltiplas personalidades, transitadas pelos sucessivos flashes dos holofotes com que vive aprisionado; o zoom célere que perfura o enquadramento dentro do enquadramento quando David e Kevin se reconhecem nas portas dos seus quartos no hospital à medida que estas se fecham, quebrando a noção de grande distância que havia entre eles por esta abolição parcial de profundidade; toda a magnífica cena na sala cor-de-rosa (de notar como a camisola da psiquiatra está em perfeita consonância cromática com o cenário, mostrando visualmente como domina aquele espaço) com, entre outros elementos, o dolly zoom abrupto sobre o rosto de Kevin enquanto é confrontado violentamente com um flashback, e o plano subjectivo oblíquo quando Glass, com o rosto inclinado, é olhado pela médica; o match cut entre o vidro circular da cabine de um carrossel onde Glass em criança olha para o céu, após a quebra de alguns ossos, e o olho dele já em adulto no hospital, ligando a condição da sua fragilidade entre um momento e o outro; a abolição parcial da profundidade de campo quando Kevin enfrenta os guardas do hospital em plano de fundo desfocado, enquanto o primeiro plano é ocupado pelo rosto de Glass a afastar-se calmamente da violência, salientando a sua apatia diante das mortes face àquilo que encara como a sua missão… E isto são só alguns exemplos destas ideias de cinema que nunca se vêm exploradas por mero exibicionismo técnico, ocorrendo a fusão orgânica de cada opção estilística e conteúdo exposto naquele que é o filme mais experimental de Shyamalan até agora.
Como se pode ver pelo parágrafo anterior, há um uso intensivo do plano subjectivo e falso plano subjectivo, o que indicia que, mais do que querer fazer-nos testemunhas da acção, Shyamalan tenciona colocar-nos dentro dela, fazer-nos um elemento devidamente integrado em cada cenário e batalha, estando de frente ou dentro da cabeça das figuras-chave da sua narrativa. Com isto, consegue criar um filme imersivo e variegado nos seus pontos-de-vista, empático por um aglomerado de personagens ao invés de um protagonista fixo. “Mas é um filme de Shyamalan?”, perguntará o leitor mais autorista. Sim, se a ele se estiver a referir ao campo/contra-campo a 180º, à visualização de corpos por superfícies reflectoras [Cole pela maçaneta da porta em The Sixth Sense (O Sexto Sentido, 1999), os extra-terrestres no ecrã da televisão em Signs (Sinais, 2002), aqui Kevin num vidro de um armário ou David junto à parede do quarto], a cor enquanto elemento simbólico [o vermelho em The Village (A Vila, 2004) como símbolo de perigo, aqui o verde, o roxo e o amarelo que representam, respectivamente, o herói na personagem de David, o vilão na de Glass e a personalidade da Besta em Kevin, tudo explorado em elementos como o guarda-roupa, a direcção artística e a fotografia] e a concentração espacial da acção [a vila de The Village, o condómino de Lady in the Water (A Senhora da Água, 2006), aqui o hospital onde grande parte do filme decorre].
Mas, para além de tudo isso, há também aquele que é o tema de eleição da obra do cineasta: a fé, e como esta se associa à questão de identidade. Em Signs, o padre de Mel Gibson entrava numa crise de fé e identitária aquando da perda da sua mulher, só mostrada como transcendida no final, onde este se preparava para os deveres dominicais, tendo reencontrado a fé e o seu papel existencial enquanto membro da igreja. Similarmente, em Lady in the Water, o superintendente de Paul Giamatti só percebia a sua função de “curandeiro” quando a ninfa estava às portas da morte, e era num momento comunal onde todas as personagens se juntavam ao seu redor para um ritual litúrgico que ela miraculosamente regenerava. Em Shyamalan é então pela fé que os seus heróis definem quem são. Ora, aqui ela não abarca raízes episcopais nem é construída em torno de uma mitologia subaquática, ela é a de Glass: a da possibilidade da existência de super-heróis, super-vilões e todo o aglomerado de figuras e comportamentos que caracterizam as histórias de bandas-desenhadas. São esses dois contrastes explorados ao longo do filme, a fé completa neste universo ficcional (donde Glass e David haviam formado as respectivas identidades de arqui-vilão e super-herói) e uma realidade pragmática e secular na figura da psiquiatra que conduz ao questionamento da mesma e, consecutivamente, das identidades das personagens (nesta perspectiva, o título com que a walshiana Inês N. Lourenço baptizou o último Vai-e-Vem é bastante adequado, com só uma muito ligeira generalização que ajuda a estabelecer nominalmente o raccord com o filme, “broken glass – broken men”; “broken” quer dizer “ferido”, “quebrado” e, como vimos, o que interessa aqui é a questão de “quebra” identitária, assim como o cansaço, a marginalização e a opressão de que é vítima o trio). O destaque dado a Glass desde o título não é aleatório: ele é um profeta (Elijah – em português, Elias – é o seu nome original), os escritos religiosos em que acredita estão registados em histórias aos quadradinhos e, como todos os profetas, a sua grande tarefa é a de espalhar uma crença. Se é bem-sucedido ou não? Shyamalan responde com mais uma ideia de cinema, o longo movimento de câmara com que o filme termina, onde pela incomensurável alteração de escala se passa do particular ao universal.
E no meio disto tudo, ia-me esquecendo de referir a minha preferida: aqueles planos subjectivos turbulentos no lugar do rosto de David mergulhado numa pequena poça, com a água a ondular ao longo do enquadramento, enquanto olha para o lado e a mão da psiquiatra lhe é estendida. Não é uma poça que se sente, é o afogamento de alguém no meio de um oceano, cuja vida depende de uma mão segura provinda de um salva-vidas. Agora, deixem-me ser directo. Shyamalan andou durante mais de uma década a desapontar em projectos que pouca ou nenhuma justiça fizeram às suas capacidades. Mas se o cineasta que consegue tirar de uma pequena poça o peso de um oceano não merece ser ou voltar a ser considerado como um dos melhores a trabalhar no mainstream americano actual, então mais vale ficarmo-nos mesmo por fotografias de pessoas a falar.