A estreia de Le livre d’image (O Livro de Imagem, 2018) de Jean-Luc Godard é um pretexto tão bom como qualquer outro para revisitar a filmografia do autor. Para o dossier “Godard, Livro Aberto” motivado pelo seu novo trabalho e marcando os cinquenta anos do “1968 global”, este texto detém-se sobre La chinoise (O Maoísta, 1967), filme de transição de Godard e icónico da sua década.
O título La chinoise oferece, desde logo, diferentes leituras. Literalmente traduzível como “a chinesa”, é por vezes referido como um termo para Maoismo e pode também designar algo que não se percebe (“c’est du chinois pour moi”). Podemos entrever no filme um pouco de todos estes sentidos: movido por uma personagem feminina (ainda que não chinesa), evoca uma experiência de maoismo francês e pode deixar o espectador confuso sobre a posição do autor – como atestaram as reacções virulentas dos jovens marxistas que o inspiraram. O moto do filme está expresso numa frase escrita nas paredes de uma divisão da casa onde ele se passa: “É preciso confrontar as ideias vagas com imagens claras”. Revisitando La chinoise, as imagens são claras, as ideias permanecem algo vagas, e todas parecem intrigantemente experimentais. Um filme que é, ao mesmo tempo, um artefacto histórico do momento francês e do momento global dos anos 1960 e uma exploração sobre fazer cinema e sobre fazer revolução.
Rodado e estreado em 1967, La chinoise é normalmente tido como filme-premonição, antevendo os eventos de 68 em França. No centro da trama, um grupo de jovens improvisa uma célula revolucionária, Aden Arabie (nome emprestado a uma obra de 1931 de Paul Nizan), num apartamento parisiense na ausência dos proprietários, os pais de uma deles. Ali fazem a sua própria educação: discutem teoria em aulas que dão ou recebem de outros camaradas, dramatizam o seu apoio aos vietnamitas em guerra e estudam citações de Mao pelo seu Pequeno Livro Vermelho (omnipresente na casa). Não há grande espaço para discordância, no entanto. Perspectivas alternativas são caladas com gritos de “revisionismo” e o grupo começa a desintegrar-se quando opta por passar ao terrorismo.
Quando o rodou, Godard tinha 36 anos e, por muito que acreditasse partilhar o mindset dos jovens revolucionários que retrata, há um certo olhar desconfortável, por vezes até paternalista, que é evidente a espectadores actuais. Os estudantes que o inspiraram demarcaram-se de La chinoise imediatamente.
La chinoise, “un filme en train de se faire”, é sobre história a ser feita, desenrolando-se com os acontecimentos. Em Janeiro de 1967 já 4000 cópias do Pequeno Livro Vermelho tinham sido vendidas em Paris e La chinoise foi concomitante com uma certa “moda Mao” que tomou conta de França nesse ano – visível até em produtos da sociedade de consumo supostamente antípoda da pureza revolucionária advogada por Mao. O apelo do Pequeno Livro foi verdadeiramente global e é hoje estudado como tal. La chinoise permanece um dos mais famosos “artefactos” da época, e raro é o trabalho de história sobre maoismo em França que não o refira. No Festival de Veneza, o escritor e crítico de cinema Jean de Baroncelli viu nele o “filme mais importante, apaixonante e revolucionário” no festival, merecedor do Leão de Ouro. Não o ganhou, mas venceu o Prémio Especial do Júri ex-aequo com La Cina è vicina (1967), de Marco Bellocchio.
Embora La chinoise não seja completamente estranho à obra anterior de Godard, é talvez o filme onde se começa a notar uma certa mudança que radicaria poucos anos depois na sua fase de colaboração com Jean-Pierre Gorin. Gorin era já conhecido de Godard quando La chinoise foi filmado e terá sido o jornalista a abrir-lhe a porta de acesso aos estudantes maoistas da École Normale Supérieure. Foi precisamente nesta instituição de elite que o maoismo francês mais foi abraçado no período correspondente à Revolução Cultural na China (1966-1976).
Segundo Richard Brody no seu Everything is Cinema: The Working Life of Jean-Luc Godard, inicialmente, Godard terá querido filmar uma espécie de documentário com intelectuais envolvidos nas publicações do Partido Comunista Francês, os seus dissidentes aquando do cisma Sino-Soviético e as vozes novas do maoismo local, nomeadamente os membros da Union des Jeunesses Communistes Marxistes-Léninistes. No entanto, os grupos que abordou recusaram-se a participar em tal projecto de diálogo. Os ecos das dissensões ideológicas não deixam de permear o filme, nomeadamente expressos através da figura de Henri (Michel Séméniako).
O fascínio por Mao em La Chinoise é filosófico, mas também estético. Imagens do líder, outra iconografia chinesa e, claro, o vermelho dos livros são algumas das mais importantes “imagens claras” deste filme de muitas imagens. Claro que o apelo idealista das leituras feitas das palavras de Mao e a admiração pelos Guardas Vermelhos (jovens, pois os “anos 60 globais” pertenceram a jovens) que vemos em La chinoise nada tem a ver com o que se passava na China naquela altura. La chinoise não é, porém, um filme sobre ilusões, embora possa ser lido assim em 2019. É um filme sobre possibilidades ou sobre como elas foram imaginadas há cerca de meio século.
A actriz Anne Wiazemsky, então com 19 anos, teve um papel central neste filme. No Verão de 1966, teve explicações com Francis Jeanson, professor de filosofia, figura determinante no activismo em França a favor da Frente Nacional de Libertação argelina. Godard, que se casaria com Wiazemsky no ano seguinte, assistia às sessões. Wiazemsky entrou na Universidade de Nanterre, que viria a ser o epicentro do Maio de 68. Foi, supostamente, a falar com alguns dos colegas dela que ele conheceu quando a levava de carro às aulas, que Godard começou a desenvolver o projecto que viria a ser La chinoise.
Muito no filme é arte a imitar a vida e a piscar o olho a obras anteriores de Godard (e das suas múltiplas inspirações). Wiazemsky é Véronique, filha de ricos, estudante de filosofia em Nanterre. Véronique que evoca a homónima da curta Tous les garçons s’appellent Patrick (1957) e Veronica, a personagem de Anna Karina (com quem Godard fora casado até 1965) em Le petit soldat (O Soldado das Sombras, 1960). O filme foi gravado no apartamento de dois amigos de Godard que, tal como as familiares de Véronique no final, regressaram para encontrar as paredes preenchidas com escritos revolucionários. Durante a rodagem, Godard e Wiazemsky viveram naquela casa e as suas conversas pessoais acabaram reproduzidas em diálogos do filme. Séméniako era realmente um estudante e Lex de Bruijn um pintor. O senegalês Omar Blondin Diop, que surge numa das cenas do filme, era de facto maoista.
Essa relação-confusão arte-vida atinge o auge na celebrada cena do comboio, quando Véronique dialoga com o seu professor, nada mais que Francis Jeanson. Em resposta aos seus planos de fechar as universidades com bombas e suas justificações imprecisas, Jeanson insiste “e depois?”, impelindo-a a equacionar o que se segue às acções terroristas que ela advoga. Ao longo do diálogo, os argumentos de Verónique vão sendo rebatidos e esvaziados. A comparação dela de que a sua posição era similar às dos activistas argelinos em luta anticolonial é desfeita por Jeanson, tornando evidente que os planos assassinos de Verónique não representam a luta de uma maioria de oprimidos mas as ideias de um grupo que se arroga o direito de pensar e decidir pelos outros. Godard terá afirmado em 1967 que a sua posição estava mais próxima da de Verónique – aliás, ele ditou as deixas dela via auricular. Mais tarde, diria que Jeanson era mais convincente e exprimia a sua preferência subconsciente por meios de acção mais pacíficos.
A sinopse da edição britânica em DVD (distribuída pela Optimum) apresenta La chinoise como uma “sátira”, uma leitura talvez exagerada, pois essa intenção satírica não parece explícita – embora seja difícil não achar graça a certos momentos no filme. Quando o rodou, Godard tinha 36 anos e, por muito que acreditasse partilhar o mindset dos jovens revolucionários que retrata, há um certo olhar desconfortável, por vezes até paternalista, que é evidente a espectadores actuais. Os estudantes que o inspiraram demarcaram-se de La chinoise imediatamente. Considerando que Godard os representara como indivíduos ridículos, negaram que ali estivesse algo verdadeiramente marxista-leninista e chamaram-lhe um filme sobre jovens burgueses sob um novo disfarce, entre outras coisas. Poderia um filme verdadeiramente jovem e revolucionário ser feito por alguém como Godard?
Embora o diálogo com Jeanson seja normalmente o exemplo citado para explorar as contradições de La chinoise, notamos aqui uma outra personagem que, pela sua própria existência, interroga o edifício retórico dos jovens maoistas. Trata-se de Yvonne (Juliet Berto). Yvonne surge no filme como a representação do campesinato (que é, recorde-se, crucial na teoria maoista). Na cidade, Yvonne sobrevive como empregada da família burguesa de Verónique e ocasional prostituta. Estas formas de subsistência não são superadas pela revolução em potência do grupo de estudantes maoístas. Yvonne continua a lavar-lhes os pratos, engraxar-lhes os sapatos e servir-lhes o chá enquanto eles discutem ideias de libertação ou as escutam via “Radio Pékin”. É Yvonne, talvez até mais do que Jeanson, que torna evidente as contradições na prática dos projectos de Véronique e companhia.
A esta contradição de classe, óbvia no filme, se pode também referir a racial. Se solidariedade transnacional com as lutas anti-imperialistas – com particular atenção dada à Guerra do Vietname – era uma das características fundamentais da experiência dos anos 60 em contextos como o francês, La chinoiseé estranhamente limitado na sua execução. Revendo o filme em 2019, as dramatizações no apartamento de cenas da guerra do Vietname, em particular a encarnação de Juliet Berto/Yvonne de uma mulher vietnamita a ser vítima de um raide aéreo quase se aproxima da prática estereotipada (e discriminatória) de yellowface. Embora também possa ser lida como uma interessante identificação da camponesa francesa com a camponesa vietnamita, Juliet Berto não era propriamente nenhuma das duas (sem qualquer desmérito para a sua forte presença e talento). Figuras verdadeiramente campesinas e operárias estão largamente ausentes do filme, tal como as vozes não europeias e os corpos não brancos, com a excepção da breve aparição de Diop: são recortes, são slogans, são referidos mas não estão presentes. Ideias vagas. Como dizem os intertítulos, “les impérialistes sont encore vivants”. Pois, de facto.
É essa ambiguidade, intencional ou não, de La chinoise que o torna fascinante ainda hoje (ou sobretudo hoje?). Grace An considerou-o um filme que se desfaz do passado, ora mostrando a rejeição de pensadores e artistas canónicos, ora se autodestruindo, com os estudantes apanhados entre o passado do qual querem fugir e o futuro que não conseguem conceber por inteiro. Véronique afirma que, se tivesse coragem, bombardearia a Sorbonne, a Comédie-Française e o Louvre. Mais tarde, põe em marcha um plano para assassinar o ministro da Cultura russo, Mikhail Sholokhov (é escolhida para a tarefa através de um “um-dó-li-tá” a partir de uma leitura do Pequeno Livro). Sholokhov foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1965 e surge ali como símbolo não apenas da União Soviética (à qual a República Popular da China é contraposta favoravelmente) como também de uma tradição artística – o realismo socialista. De qualquer forma, não há uma rejeição total do passado. Na sua missão contra Sholokhov, Véronique começa por errar o alvo, porque lê mal o número do quarto no registo – sugerindo que a sua febre revolucionária não estava livre de enganos. No quadro onde se apagam os patriarcas intelectuais fica ainda Brecht. E ao longo do filme as múltiplas referências convocadas (como de costume no cinema de Godard) estão lá, são ditas, mesmo que para ser rejeitadas. Aliás, estão logo lá nos nomes do grupo central: Além de Véronique evocando o Godard passado, Jean-Pierre Léaud é Guillaume Meister e Lex de Bruijn é Kirilov, homónimos de personagens de Goethe e Dostoievski, respectivamente.
As contradições estendem-se, pois, ao próprio processo criativo-destrutivo do filme. O que James Williams viu como caso de cinema “conscientemente performativo”, uma “meditação sobre o teatro” que permite “uma possível resolução de teoria e prática”. Um filme que se vê fazendo, com actores respondendo a perguntas de um Godard invisível, mas audível, com a outra câmara voltando-se para o director de fotografia Raoul Coutard a filmar, com a canção “Mao Mao” cantada por Claude Channes, escrita para o filme por Gérard Guégan a partir de frases de Mao. Um filme de montagem, como o próprio Godard o descreveu, que na sua sucessão, por vezes frenética, de imagens, as recria e, ao recriar, constrói algo novo. Imagens dentro de imagens, complementares ou contraditórias, como páginas de revistas e jornais na parede, planos de banda desenhada, pinturas murais, e fotografias de “ícones” a venerar ou a abater. Um filme também de cores (vermelho da China, tricolor da França) e de adereços – parafernália dessa teatralidade – e do entusiasmo real de muitos então.
Para Brody, o filme expressa uma tentativa de Godard apagar a sua própria bagagem cultural, culminando com a personagem de Jean-Pierre Léaud, no seu (explicitamente cinéfilo) “Teatro Ano Zero”, a levar com vegetais do público durante a performance final. Terá sido com La chinoise que a procura de Godard de outras maneiras de fazer cinema atinge um ponto de viragem, anunciando já as preocupações dos trabalhos que faria com Gorin no Grupo Dziga Vertov. Como o próprio nome do colectivo e a panóplia de referências em La chinoise atestam, o ideal demolidor dos protagonistas – a sua tentativa de “destruir o mundo velho”, um dos gritos de guerra dos Guardas Vermelhos chineses que eles admiravam, levado a extremos que hoje se conhecem relativamente bem – é desde logo subvertido. Não é possível “acabar de vez com a cultura”. Pelo contrário, a própria obra de Godard – incluindo Le livre d’image – é prova dessa mesma impossibilidade de libertação total das imagens dos outros. Nisso, La chinoise estava curiosamente próximo da arte da Revolução Cultural chinesa onde, por entre o discurso e prática de violência contra o “velho”, modelos artísticos anteriores foram readaptados e alguns, talvez ironicamente, até preservados.
Essa ambiguidade oferece diferentes leituras de La chinoise – como aliás será verdade para a maioria da obra de Godard, daí que as reacções possam por vezes ser bastante diversas, até extremadas. Essa multiplicidade de possibilidades no convite feito a pensar o cinema e o político continuam a existir nos trabalhos mais recentes de Godard, mas interrogamo-nos se daqui por cinquenta anos se olhará para Le livre d’image como hoje se olha para La chinoise, filme-símbolo de um certo tempo.
Urge também notar que Godard, gigante que é, não foi nos anos 60 nem é hoje o único cineasta a pensar a relação entre arte, sociedade e mudança. E sem ir mais longe que a geração Nouvelle Vague em França, interrogamo-nos, talvez provocadoramente, por que o belíssimo filme mais recente de Agnès Varda, Visages villages (Olhares Lugares, 2017) não mereceu tantas honras e atenção cinéfilas.