Há uma luz que nunca se apaga neste filme do franco-tunisino Abdellatif Kechiche. Podia ser a do sol que banha os contornos da cidade de Sète, no sul da França, e às portas do Mediterrâneo, mas o sol obedece aos limites que definem o que é dia e o que é noite. Podia ser ainda uma luz divina, e o filme abre com duas frases em epígrafe, uma da Bíblia, outra do Corão, sobre a luz enquanto manifestação de Deus, que surge quando e sobre aquilo que ele bem entende. A luz de Mektoub, My Love: Canto Uno (Mektoub, Meu Amor: Canto Primeiro, 2017) é sobretudo de uma terceira natureza, e provém do coração do protagonista, Amin (Shaïn Boumedine), que um dos amigos descreve, de modo tão casual que pode até passar despercebido ao espectador, como alguém que manteve intacto o coração de criança. Essa luz reflecte-se no que é filmado e que quase sempre corresponde ao que Amin observa. Ele limita-se a observar, com um olhar que outra personagem diz ter algo de especial, de profundo, quando procura que Amin participe de um jogo de sedução de que o rapaz como sempre se manterá arredado.

Amin regressa de Paris para as férias do Verão de 1994, junto dos familiares e amigos. O primeiro plano acompanha a sua deslocação de bicicleta até à casa onde espera encontrar Ophélie (Ophélie Bau), a sua grande amiga, quase uma irmã, que é a primeira pessoa que quer rever. Amin escuta os sons de alguém que está a ter sexo e pela fresta da janela observa Ophélie na cama com Tony (Salim Kechiouche). Uma belíssima e intensa cena de sexo, Kechiche tornou-se um especialista com o seu filme anterior, La vie d’Adèle (A Vida de Adèle, 2013), e mostra-se uma vez mais inspirado. Apesar de ficarmos depois a saber que Ophélie se encontra noiva de outro rapaz, não existe tom moralizador da parte de Amin quando conversa a sós com a rapariga. Para Ophélie, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. A jovem não sente culpa em tirar partido dos prazeres da vida, enquanto espera pelo regresso do namorado, um militar em missão. Mais tarde, outro momento de Mektoub, My Love ecoará aquela bela cena de sexo retirada ao mundo natural. O nascimento de duas crias de uma ovelha, que se liga a Ophélie de um ponto de vista prosaico, porque as ovelhas pertencem ao pai dela, que é pastor, mas também simbolicamente enquanto manifestação no feminino, de um impulso que se liga à vida, como o prazer sexual também é, e pode ser gerador dela.
A luz de Deus manifestar-se-á enquanto vida espontânea, saudável e plena de esperança no comportamento sensual e sentimental dos mais jovens, e Abdelatif Kechiche continua a ser o seu profeta.
O nascimento das ovelhinhas é igualmente testemunhado por Amin, que permanece longas horas no estábulo, para fotografar esse momento que servirá de documentação visual num dos projectos que o ocupam. Amin serve às mesas em Paris, mas escreve argumentos para cinema, no que é forte indício de que a personagem será pelo menos parcialmente autobiográfica em relação à história pessoal de Abdelatif Kechiche. É mais uma situação em que o vemos passivamente embevecido com o que o rodeia. Registando sem tomar parte. É assim que Amin está na vida, desperto para a beleza das raparigas na praia, para a sensualidade delas também quando dançam, para o calor que se desprende das relações familiares na comunidade árabe daquela cidade, mas nunca tomando parte activa e mesmo recuando para o interior do maravilhamento alheado quando alguém apela à sua maior participação. Já Tony, o rapaz que mantém o tal relacionamento sexual com Ophélie, que víramos no começo do filme, e que procura ir para a cama com o maior número de raparigas possível, está em contraste absoluto com a figura de Amin. E o filme também não o julga por isso. Os comentários dos outros, em particular das raparigas que testemunham o seu comportamento de predador sexual, ou que por ele são deixadas, ficam como nota de rodapé em cenas onde o mar e o sol, os corpos, a juventude e a música atribuem uma conotação sensual que é o mais relevante.
Mektoub, My Love, anuncia já para este ano um Canto Due. O primeiro filme adapta o romance La Blessure La Vraie, de François Bégaudeau, e Kechiche manterá as personagens daquele Verão de 94 na continuação. As expectativas são as maiores, assim como é grande a curiosidade para ver como evoluirá a personagem de Amin: que intervenção terá no seu destino (mektoub), até aqui transportado por uma candura que tem tanto de humano como eventualmente de divino? A luz de Deus manifestar-se-á enquanto vida espontânea, saudável e plena de esperança no comportamento sensual e sentimental dos mais jovens, e Abdelatif Kechiche continua a ser o seu profeta. Neste sentido, a “verdadeira ferida” só poderá revelar-se quando a juventude tem o seu fim.